Mohamed Morsi, líder que morreu na prisão em 2019. |
Os adeptos da Irmandade Muçulmana foram bem além do Oriente Médio e alcançaram a Turquia e o Irã. Zevi Ghivelder, especial para a Gazeta do Povo:
No
dia 8 de abril deste ano, a Corte Criminal do Cairo condenou à prisão
perpétua por assassinato e terrorismo Mahmud Ezzat, 76 anos, chefe de
uma organização secreta chamada Irmandade Muçulmana. Conforme a
acusação, essas ações criminosas teriam sido cometidas em 2012, quando,
na esteira da Primavera Árabe, um golpe de estado, com grande apoio
popular e endossado pela Irmandade Muçulmana, derrubou o presidente
Hosni Mubarak. A rebelião resultou na vitória final de Mohamed Morsi,
eleito presidente do Egito num pleito democrático, após trinta anos sob a
ditadura de Mubarak. Depois de sobreviver na clandestinidade por mais
de oito décadas, finalmente a Irmandade Muçulmana, na qual Morsi era uma
figura proeminente, tinha chegado ao poder do mais importante e
populoso país árabe do Oriente Médio.
O
condenado Ezzat era adolescente quando se filiou à Irmandade Muçulmana,
uma organização fundada em 1928 por Hassan Al Banna (seu neto foi
acusado de estupro na França), então com apenas 22 anos de idade,
professor de ensino secundário da cidade de Ismailia, próxima do canal
de Suez.
A
motivação inicial de Banna foi a insurgência contra o colonialismo
britânico. Era uma proposição incipiente, mas que logo fermentou ao ser
complementada pela pregação da necessidade de um vigoroso ressurgimento
da religião islâmica que, segundo Banna, poderia elevar todo o Islã a um
patamar capaz de confrontar o Ocidente além de livrar o Egito da
opressão colonial, gerando uma liberdade que poderia se estender a
outros países da região.
Banna
a princípio não optou por dotar sua organização de rígidas diretrizes
políticas. Preferiu dar-lhe um cunho mais espiritual e passou a
empreender ações assistenciais que resultaram na adesão de milhares de
seguidores. Nessa moldura, era natural que o nacionalismo islâmico se
infiltrasse na Irmandade e promovesse atos de violência fora do controle
de Banna. O monarca Farouk, do Egito, temendo que a dita organização
pudesse ameaçar a estabilidade do trono, decretou sua ilegalidade,
obrigando a Irmandade a sobreviver na clandestinidade.
Em
1948, um de seus jovens membros, um estudante de veterinária,
assassinou o primeiro-ministro Nokrashy Pasha. A repressão foi de tal
maneira violenta, que Banna saiu a público e declarou: “Este rapaz não é
nosso irmão e muito menos um verdadeiro muçulmano”. Foi em vão. O cerco
à Irmandade foi desfechado com tal impetuosidade que em 1949 a
organização sofreu forte abalo com o assassinato do próprio Banna. A
Irmandade teve que se conformar em continuar vivendo nas sombras. Os
assassinos de Banna decerto haviam agido com a conivência das
autoridades egípcias e nunca foram encontrados.
Além do Oriente Médio
Porém,
àquela altura, a capilaridade da Irmandade era irreversível. A
organização apresentava um acentuado quadro da junção de duas vertentes:
iniciativas humanitárias independentes de filiações partidárias, tais
como formuladas por Banna nos primórdios da organização. Em paralelo
foram crescendo movimentos nacionalistas, autodenominados
revolucionários que passaram por mutações em diversos pontos do Oriente
Médio e alguns chegaram ao século 21 como, por exemplo, o Hamas na faixa
de Gaza e a fracassada oposição ao regime de Assad, na Síria.
Os
adeptos da Irmandade Muçulmana foram bem além do Oriente Médio e
alcançaram a Turquia e o Irã. No entanto, seu epicentro era, e continua
sendo, o Egito onde há muitos anos enfrenta recorrente divisão interna.
Parte dos integrantes da Irmandade quer a criação de um braço armado
terrorista, enquanto outra corrente permanece fiel ao caminho sem armas.
Esta prefere permanecer oculta e apenas tentar influir nos rumos de
diferentes países. A rigor, tem poucas chances de sucesso porque são
praticamente inexistentes verdadeiros processos democráticos nos países
do Oriente Médio e do Golfo Pérsico.
O
braço beligerante da Irmandade obteve fugaz primazia em 1981, quando
uma facção denominada Takfir Wal-Ajira planejou e executou o assassinato
do presidente Anuar Sadat. Foi um protesto contra o acordo de paz que
Sadat havia assinado dois anos antes com Israel e por ele ter dado
abrigo ao Xá do Irã, depois de deposto pelos aiatolás. Os terroristas se
vestiram com fardas do exército egípcio, obtiveram um veículo militar e
se juntaram ao desfile comemorativo da participação do país na guerra
do Yom Kipur, contra Israel, em 1973. Os terroristas alvejaram com
rajadas de metralhadoras os ocupantes do palanque oficial, matando o
presidente Sadat. O vice Hosni Mubarak, sentado ao seu lado, escapou por
milagre. Dentre os terroristas presos, cinco foram executados e vinte
condenados à prisão perpétua.
Nessa
circunstância, é óbvio perceber a repulsa de Mubarak à Irmandade
Muçulmana, quando assumiu o poder. Durante 30 anos a repressão foi
implacável e incessante. Os líderes da Irmandade foram impiedosamente
perseguidos e encarcerados.
Vitória democrática e ocaso
Porém,
depois de 84 anos sombrios a Irmandade Muçulmana começou a viver dias
radiantes em junho de 2012 quando Morsi, um de seus mais ativos líderes,
foi eleito presidente. Dois meses depois, no entanto, ele cometeu o
erro de ordenar transformações radicais nas cúpulas das forças armadas.
Foi a semente da insatisfação dos militares. Ao mesmo tempo, a nova
assembleia do país, contando com maioria da Irmandade Muçulmana, começou
a pressionar para que o país elaborasse uma nova constituição.
Houve
resistência por parte dos militares que afirmavam ser impossível um
partido com consolidadas raízes islâmicas poder dotar o Egito de uma
configuração democrática que viesse a incluir com justiça os direitos de
minorias como os coptas e os cristãos. O ambiente no Cairo era tão
tenso que uma revista americana publicou: “Parece uma reedição de São
Petersburgo em 1917”.
O
governo de Morsi e a primavera da Irmandade Muçulmana duraram pouco
mais de um ano, só até julho de 2013, quando Morsi e seus seguidores
foram depostos por um golpe militar comandado pelo general Abdel Fattah
Al-Sisi. Após um breve período de governo interino, logo ao tomar posse
definitiva o novo regime egípcio baniu a Irmandade Muçulmana e prendeu
seus mais destacados ativistas, acusando-os de terrorismo e assassinato,
dentre os quais o citado Mahmud Ezzat. O presidente Morsi também foi
arrolado e morreu no cárcere em 2019.
A
Irmandade retomou o caminho da clandestinidade no qual já dominava
todas as formas de sobrevivência. O governo Sisi atacou em duas frentes.
No plano interno, empenhou seus serviços de inteligência para detectar e
capturar a liderança da Irmandade. No plano externo, para erodir sua
credibilidade, desenvolveu uma campanha de falsas informações apontando a
existência de uma ligação entre a Irmandade e o fundamentalismo
islâmico em atos terroristas.
Ligação com o Irã
No
entanto, a Irmandade detém firme resiliência. Segundo os mais recentes
dossiês dos serviços de inteligência ocidentais vem ocorrendo uma
importante renovação em seus quadros dirigentes e também na sua
ideologia por conta de uma recente aproximação com o regime totalitário
do Irã.
Na
verdade a Irmandade já era ativa no Irã desde a década de 70, quando
vinha acompanhando de perto os aiatolás na sua cruzada para derrubar o
Xá e se apossar do poder. Mais do que isso, a Irmandade, com base em sua
longa experiência de expansão, assessorou o regime de Teerã para que
este absorvesse técnicas de infiltração em associações estudantis dos
Estados Unidos e sobretudo da Alemanha além de dominar a manipulação da
mídia. Este entendimento se solidificou em 2012, quando o presidente
Morsi fez uma visita oficial ao Irã.
Por
causa dessa aproximação, o mundo ocidental tende a considerar a
Irmandade Muçulmana como uma organização terrorista, mas esta percepção
não é compartilhada de modo informal pelos mais credenciados serviços de
inteligência, nem de modo formal pelo Departamento de Estado americano.
A Irmandade Muçulmana vai permanecer ativa nas sombras até que algo
substancial e transformador aconteça na vida pública do Egito e favoreça
sua volta para a luz do dia.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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