Pena que educação e saúde não pareçam ser áreas de interesse da liderança do País, lamenta o ex-ministro Pedro Malan no Estadão:
Em
seu fascínio por metáforas, Jorge Luís Borges escreveu: “Se não me
engano, os chineses chamam o mundo de as dez mil coisas ou – e isso
depende do gosto e da fantasia do tradutor – os dez mil seres”. Segundo
uma extensão dessa metáfora, atribuída a Lao-tsé, “a natureza trata a
miríade de seres como cães vadios”. Podem ser cruéis com “os seres” não
só os movimentos das águas, dos ventos, da terra e do clima, como vem
demonstrando ao mundo a covid-19.
Tem
sido extraordinária a resposta da ciência aplicada a desenvolver
vacinas eficazes, que reduzem mortes e a disseminação do vírus. Ainda
assim, as consequências econômicas, sociais e políticas da pandemia
estarão conosco por anos à frente, com particular relevância para países
em desenvolvimento, como o Brasil, nas áreas de saúde pública e de
educação. Desta trata este artigo, dadas suas relevância e urgência para
evitar que nosso futuro seja, mais uma vez, adiado.
Em
imperdível palestra (TEDx – Todos pela Educação), Priscila Cruz relata a
frase, dura e entristecedora, que ouviu quando, como voluntária,
ajudava alunos do ensino fundamental com dificuldades na aprendizagem:
“Tia, estou indo embora, educação não é para mim”. A frase não
surpreenderá quem tenha tomado conhecimento dos resultados da Avaliação
Nacional de Alfabetização ou do Indicador Nacional de Alfabetismo
Funcional; ou dos testes do Sistema Nacional de Avaliação da Educação
Básica (Saeb), ou ainda do desempenho de alunos brasileiros nos testes
do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa) da OCDE.
Houve
avanços, mas o quadro resta dramático. Na faixa etária de 15 a 17 anos,
cerca de 38% dos alunos que deveriam estar cursando o ensino médio (EM)
não o fazem, porque ou ainda cursam o ensino fundamental (EF), ou
abandonaram o EF antes de terminá-lo, ou concluíram o EF mas desistiram
de ingressar no EM, ou ainda porque ingressaram no EM mas o abandonaram
no 1.º ou no 2.º ano.
Em
2019, 30% dos “jovens” de 25 anos de idade não haviam conseguido
completar o EM. A maioria dos 70% que o fizeram se colocam no mercado de
trabalho sem adquirir as competências adequadas. Apenas cerca de 20%
dos jovens com EM completo conseguem entrar em curso superior. Nas
universidades federais, 30% dos que ingressam abandonam os estudos entre
o primeiro e o terceiro ano. Nas grandes universidades privadas, o
porcentual é de 60%. Grande número das pessoas com educação superior no
Brasil trabalha em atividades que só requerem competências de um
razoável nível médio. E enquanto entre nós 11% das matrículas de EM são
de educação profissional e tecnológica, na OCDE são 42%.
A
essas deficiências preexistentes se somam os efeitos da pandemia, que
as exacerbou. Serão cicatrizes traumáticas, em particular para o futuro
do número expressivo de alunos que já estavam ficando para trás antes da
pandemia. Não se trata mais de saber se a desigualdade educacional e de
renda se vai ampliar, mas, sim, como mitigar sua extensão.
Na
raiz de nossos problemas de pobreza e desigualdade de renda e riqueza
está a questão fundamental a ser atacada: a desigualdade de
oportunidades, que surge já no nascimento. É função de políticas
públicas nas áreas de educação (e de saúde) procurar reduzir esses
diferenciais nos anos iniciais de vida das crianças. Como é hoje
amplamente reconhecido por especialistas em educação no Brasil e no
mundo.
Barack
Obama afirmou repetidas vezes que educação de qualidade mundial era
pré-requisito para o sucesso de qualquer país. “Countries that
out-educate us today will out-compete us tomorrow”, explicava. Joe
Biden, em discurso proferido por ocasião de seus primeiros cem dias de
governo, adiciona algo relevante para um país como o Brasil. Estudos
conduzidos ao longo dos últimos dez anos por grandes universidades do
seu país, aponta Biden, mostram que acrescer dois anos de educação de
alta qualidade para cada criança de 3 e de 4 anos de idade, não importa
de que background, torna-as capazes de competir ao longo dos 12 anos
subsequentes e melhora exponencialmente suas perspectivas de graduação
posterior.
Pena
que educação e saúde não pareçam constituir áreas de interesse
construtivo da atual liderança política do País. Talvez o debate público
em 2022 possa levar candidatos a procurar, em prazo hábil, agregar
equipes competentes nessas áreas. E a promover discussão apta a permitir
diagnóstico sobre a situação atual, como a ela chegamos e,
principalmente, a descortinar como avançar com a necessária visão de
longo prazo sobre nosso futuro.
Não
são propriamente temas para sound bites, memes e tuítes. Trata-se de
tentar explicar como chegamos à quadra em que nos encontramos – por
falta de liderança esclarecida, empatia e capacidade de coordenação;
como resultado do negacionismo ante as evidências e recomendações
baseadas em ciência. Quadra em que quase meio milhão de brasileiros já
se foi e milhões são tratados – não apenas pelo vírus da natureza, mas
por ações e omissões de política pública – quase como a miríade de seres
das metáforas que abrem este artigo.
Mães: Pensemos nas que perderam os seus, nas perdidas pelos seus e nas que lutam pelo futuro.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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