A
pandemia da Covid-19 abalou vidas ao redor do mundo por mais de um ano.
Suas vítimas fatais atingiram mais de três milhões. Contudo, a origem
da pandemia continua incerta: os compromissos políticos de governos e
cientistas geraram nuvens densas de ofuscação que a imprensa tradicional
parece incapaz de dissipar.
No
texto que se segue, organizarei os fatos científicos disponíveis, que
contêm muitas pistas do que aconteceu, e fornecerei aos leitores as
evidências para que tirem as próprias conclusões. Tentarei então avaliar
a questão complexa da culpa, que começa com o governo da China, mas vai
bem além dele.
Até
o fim deste artigo, você poderá ter a prendido bastante sobre a
biologia molecular dos vírus. Tentarei fazer esse processo tão
confortável quanto possível. Mas não se pode evitar a ciência a respeito
agora, e provavelmente por muito tempo, uma vez que ela oferece o único
fio através do labirinto.
O
vírus que causou a pandemia é chamado oficialmente de SARS-CoV-2, mas
pode ser chamado abreviadamente de SARS2. Como muitas pessoas sabem, há
duas principais teorias sobre as suas origens. Uma é que ele saltou
naturalmente de animais silvestres para as pessoas. A outra é que o
vírus estava sob estudo em um laboratório do qual escapou. É muito
importante saber qual delas é o caso, se esperamos prevenir uma segunda
ocorrência.
Descreverei
as duas teorias, explicarei por que cada uma é plausível, e então
perguntarei qual delas dá a melhor explicação para os fatos disponíveis.
É importante notar que, até agora, não há evidência direta para nenhuma
das teorias. Cada uma delas depende de um conjunto de conjecturas
razoáveis, mas até o momento não está provada. Portanto, só tenho
pistas, não conclusões, para oferecer. Mas essas pistas apontam numa
direção específica. E, após inferir essa direção, delinearei alguns dos
fios nessa meada embaraçada de desastres.
Um conto de duas teorias
Depois
que houve o primeiro surto da pandemia em dezembro de 2019, as
autoridades chinesas relataram que muitos casos tinham ocorrido no
mercado de Huanan — um lugar que vende animais silvestres para consumo
da carne — em Wuhan. Para os especialistas isso lembrou a epidemia de
SARS1 de 2002 , na qual um vírus de morcego se espalhara primeiro para
civetas, um mamífero vendido nesse tipo de mercado, e das civetas para
humanos. Um vírus de morcego similar causou uma segunda epidemia,
conhecida como MERS, em 2012. Dessa vez, os hospedeiros intermediários
eram camelos.
A
decodificação do genoma do vírus mostrou que ele pertence a uma família
viral conhecida como a dos beta-coronavírus, à qual os vírus SARS1 e
MERS também pertencem. O parentesco entre eles apoiou a ideia de que,
como os outros, o SARS2 era um vírus natural que conseguira saltar dos
morcegos para outro hospedeiro e dele para humanos. A conexão com o
mercado de carnes, o único outro ponto de similaridade com as epidemias
de SARS1 e MERS, logo foi quebrada: os pesquisadores chineses
descobriram casos anteriores em Wuhan sem ligação ao mercado. Mas isso
não parecia importar, logo, esperava-se, muitas outras evidências
apoiando a emergência natural seriam encontradas.
Wuhan,
no entanto, é onde fica a sede do Instituto de Virologia de Wuhan, um
centro mundial de pesquisa de ponta para a pesquisa em coronavírus.
Então, a possibilidade de que o vírus SARS2 escapara do laboratório não
poderia ser descartada. Tínhamos na mesa dois cenários razoáveis de
origem.
Desde
o começo, as percepções do público e da mídia foram moldadas a favor do
cenário de emergência natural por declarações fortes dadas por dois
grupos científicos. Essas declarações não foram examinadas de uma forma
tão crítica como deveriam ter sido.
“Estamos
unidos para condenar veementemente as teorias da conspiração que
sugerem que a COVID-19 não tem uma origem natural”, um grupo de
virologistas e outros escreveram na Lancet em 19 de fevereiro de 2020,
quando era muito cedo para qualquer um ter convicções sobre o que tinha
acontecido. Cientistas “concluem em maioria absoluta que este
coronavírus se originou entre animais silvestres”, disseram eles, com um
sinal de alerta e um chamado para que os leitores apoiassem os colegas
chineses na linha de frente contra a doença.
A
contrário do que alegam os autores da carta, a ideia de que o vírus
pode ter escapado de um laboratório envolve acidente, não conspiração.
Certamente merecia ser explorada, não rejeitada sumariamente. Uma marca
definidora de bons cientistas é que estão dispostos a um grande esforço
para distinguir entre o que eles sabem do que não sabem. Por esse
critério, os signatários da carta da Lancet se comportaram como maus
cientistas: estavam assegurando ao público que fatos sobre os quais não
podiam saber com certeza eram verdadeiros.
Depois,
descobriu-se que a carta da Lancet fora organizada e rascunhada pelo
Peter Daszak, presidente da EcoHealth Alliance, de Nova York. A
organização do dr. Daszak financiou pesquisa com coronavírus no
Instituto de Virologia de Wuhan. Se o vírus SARS2 de fato escapou de
pesquisa que ele financiou, o dr. Daszak seria potencialmente imputável.
Esse grave conflito de interesses não foi revelado para os leitores da
Lancet. Em vez disso, a carta concluiu com "Declaramos ausência de
interesses em conflito".
Virologistas
como o dr. Daszak tinham muito a perder se fossem culpados pela
pandemia. Por 20 anos, na maior parte sem atenção do público, estiveram
brincando com algo perigoso. Em seus laboratórios, tinham a rotina de
criar vírus mais perigosos do que os que existem na natureza. Alegaram
que poderiam fazê-lo de forma segura, e que, ao antecipar a natureza,
poderiam prever e prevenir "transbordamentos" naturais, quando os vírus
migram de um hospedeiro animal para humanos. Se o SARS2 realmente
tivesse escapado de um experimento laboratorial desse tipo, uma
retaliação violenta seria esperada, e a tempestade de indignação pública
afetaria os virologistas em toda parte, não apenas na China.
"Desmoronaria o edifício científico de cima para baixo", disse Antonio
Regalado, editor da MIT Technology Review, em março de 2020.
Uma
segunda declaração que teve enorme influência em moldar as atitudes do
público foi uma carta (em outras palavras, um artigo de opinião, não um
artigo científico) publicada em 17 de março de 2020 na revista Nature
Medicine. Seus autores eram um grupo de virologistas liderados por
Kristian G. Andersen, do Instituto de Pesquisa Scripps. “Nossas análises
mostram claramente que o SARS-CoV-2 não é um constructo laboratorial ou
um vírus manipulado de propósito”, os cinco virologistas declararam no
segundo parágrafo de sua carta.
Infelizmente,
foi outro caso de ciência ruim, no sentido definido acima. É verdade
que métodos mais antigos de cortar e colar genomas virais retêm sinais
claros de manipulação. Mas os novos métodos, chamados de abordagens
“no-see-um” ou “inteiriças”, não deixam marcas definitivas. Nem outros
métodos de manipulação de vírus como a passagem em série, a
transferência repetida de vírus de uma cultura de células para outra. Se
um vírus fora manipulado, com um método inteiriço ou por passagem
serial, não há jeito de saber se este foi o caso. O dr. Andersen e seus
colegas estavam assegurando aos seus leitores algo que não poderiam
saber.
A
seção de discussão de sua carta começa com “É improvável que o
SARS-CoV-2 tenha emergido através de manipulação laboratorial de um
coronavírus similar a ele”. Mas espere, o líder não tinha dito que o
vírus claramente não foi manipulado? O grau de certeza dos autores
parece ter derrapado em vários graus no tocante à exposição do seu
raciocínio.
A
razão para a derrapagem é clara, uma vez que a linguagem técnica tenha
sido penetrada. As duas razões que os autores dão para supor que a
manipulação é improvável são definitivamente inconclusivas.
Primeira:
dizem que a proteína de espícula do SARS2 faz uma ligação muito forte
com o seu alvo, o receptor humano ACE2, mas faz de uma forma diferente
da que os cálculos físicos sugerem que é o melhor encaixe. Portanto, o
vírus deve ter surgido pela seleção natural, não pela manipulação.
Se
esse argumento parece difícil de entender, é porque é muito forçado. O
pressuposto básico dos autores, não dado por extenso, é que qualquer
pessoa que tente fazer um vírus de morcego se ligar a células humanas
poderia fazê-lo só de um jeito. Primeiro, calcularia o encaixe mais
forte possível entre o receptor ACE2 humano e a proteína de espícula,
com a qual o vírus se liga a ele. Depois projetariam a proteína de
espícula com base nisso (selecionando a sequência correta de resíduos de
aminoácidos que a compõem). Mas, já que a proteína de espícula do SARS2
não apresenta essa configuração ótima, diz o artigo de Andersen, ela
não pode ter sido manipulada.
Mas
isso ignora a forma com que virologistas de fato fazem proteínas de
espícula se ligarem a alvos escolhidos, que não é pelo cálculo, mas por
edição de genes de proteína de espícula de outros vírus ou pela passagem
em série. Com a passagem em série, a cada vez que a prole do vírus é
transferida para novas culturas de células ou animais, as partículas
virais mais bem-sucedidas são selecionadas até que emerja alguma que faz
uma ligação bem forte com as células humanas. A seleção natural faz a
parte mais difícil. A especulação do artigo de Andersen sobre projetar
uma proteína de espícula viral através de cálculos não tem relação com a
possibilidade de o vírus ter ou não sido manipulado por um dos outros
dois métodos.
O
segundo argumento dos autores contra a manipulação é ainda mais
artificial. Embora a maioria dos seres vivos usem o DNA como seu
material de herança, muitos vírus usam o RNA, o primo químico do DNA.
Mas o RNA é difícil de manipular, de forma que os pesquisadores que
trabalham com os coronavírus, que usam o RNA, primeiro converterão o
genoma de RNA para o DNA. Eles manipulam a versão de DNA, adicionando ou
alterando genes, e depois preparam o genoma de DNA manipulado para ser
reconvertido em RNA infeccioso.
Só
alguns desses alicerces de DNA foram descritos na literatura
científica. Qualquer pessoa que manipulasse o vírus SARS2 “provavelmente
teria usado” um desses alicerces conhecidos, segundo o grupo Andersen,
e, uma vez que o SARS2 não deriva de nenhum deles, conclui-se que não
foi manipulado. Mas o argumento é claramente inconclusivo. Alicerces de
DNA são bem fáceis de fazer, então é obviamente possível que o SARS2
tenha sido manipulado com o uso de um alicerce de DNA não publicado.
E
pronto. Esses são os dois argumentos oferecidos pelo grupo Andersen em
apoio à sua declaração de que o vírus SARS2 claramente não foi
manipulado. E essa conclusão, baseada em nada mais que duas especulações
inconclusivas, convenceu a imprensa internacional que o SARS2 não
poderia ter escapulido de um laboratório. Uma crítica técnica da carta
de Andersen acaba com ela com palavras mais duras.
A
ciência supostamente é uma comunidade autocorretiva de especialistas
que verificam constantemente o trabalho uns dos outros. Então por que
outros virologistas não apontaram que o argumento do grupo de Andersen
estava cheio de buracos absurdos de grandes? Talvez porque atualmente,
nas universidades, a expressão pode ter um custo muito alto. Carreiras
podem ser destruídas por pisar fora da linha. Qualquer virologista que
enfrente a opinião declarada da comunidade arrisca ter a próxima verba
recusada por um painel de colegas virologistas que aconselha a agência
de financiamento do governo.
As
cartas de Daszak e Andersen eram na verdade declarações políticas, não
científicas, mas mesmo assim foram eficazes de forma impressionante. Os
artigos na imprensa dominante repetidamente afirmaram que um consenso de
especialistas havia descartado o vazamento laboratorial como fora de
questão e extremamente improvável. Os jornais dominantes todos têm
jornalistas de ciência em suas equipes, como também têm as grandes redes
televisivas, e é de se esperar que esses repórteres especializados
possam questionar os cientistas e checar as suas asserções. Mas as
asserções de Daszak e Andersen seguiram na maior parte sem desafio
nenhum.
Dúvidas sobre a emergência natural
A
emergência natural foi a teoria preferida da mídia até fevereiro de
2021, quando aconteceu a visita da comissão da Organização Mundial da
Saúde à China. A composição da comissão e o acesso dela tiveram controle
pesado das autoridades chinesas. Seus membros, que incluíram o sempre
presente dr. Daszak, repetidamente afirmaram antes, durante e depois da
visita que o vazamento de laboratório era extremamente improvável. Mas
essa não foi a vitória da propaganda que as autoridades chinesas
queriam. O que ficou claro foi que os chineses não tinham evidência para
oferecer à comissão em apoio à teoria da emergência natural.
Isso
foi surpreendente, pois os vírus SARS1 e MERS haviam deixado pistas
abundantes no ambiente. A espécie hospedeira intermediária do SARS1 foi
identificada dentro de quatro meses da eclosão da epidemia, e o
hospedeiro do MERS, dentro de nove meses. No entanto, cerca de 15 meses
após o começo da pandemia do SARS2, e, presume-se, de uma busca intensa,
os pesquisadores chineses falharam em encontrar a população de morcegos
original ou a espécie intermediária para a qual o SARS2 poderia ter
saltado, ou qualquer evidência serológica de que qualquer população
chinesa, incluindo a de Wuhan, já tivesse sido exposta ao vírus antes de
dezembro de 2019. A emergência natural continuou sendo uma conjectura
que, por mais que fosse plausível no começo, não teve o menor sinal de
evidência apoiadora em mais de um ano.
E, enquanto este for o caso, é lógico prestar uma atenção séria à conjectura alternativa, que o SARS2 escapou de um laboratório.
Por
que alguém desejaria criar um vírus novo capaz de causar uma pandemia?
Desde que os virologistas ganharam as ferramentas para manipular os
genes dos vírus, têm defendido que poderiam antecipar uma pandemia em
potencial explorando com que facilidade um dado vírus animal poderia
saltar para humanos. E isso justificaria os experimentos laboratoriais
para melhorar a capacidade de vírus animais perigosos em infectar
pessoas, disseram os virologistas.
Com
essa justificativa, eles recriaram o vírus da gripe de 1918, mostraram
como o vírus quase extinto da poliomielite pode ser sintetizado a partir
de sua sequência de DNA publicada, e introduziram o gene da varíola em
um vírus aparentado.
Esses
aperfeiçoamentos de capacidades virais são conhecidos pelo nome brando
de experimentos de ganho de função. Com os coronavírus, houve um
interesse em particular nas proteínas de espícula, que cobrem toda a
superfície esférica do vírus e praticamente determinam qual espécie de
animal será o alvo. No ano 2000, pesquisadores holandeses, por exemplo,
ganharam a gratidão de roedores em toda parte ao projetar com engenharia
genética a proteína de espícula de um coronavírus de camundongo de
forma que ele só atacasse gatos.
Os
virologistas começaram a estudar coronavírus de morcegos com afinco
após a descoberta de que eram a fonte das epidemias de SARS1 e MERS. Em
especial, os pesquisadores queriam entender que mudanças precisavam
ocorrer nas proteínas de espícula de um vírus de morcego para que ele
possa infectar humanos.
Pesquisadores
do Instituto de Virologia de Wuhan, chefiado pela especialista de ponta
em vírus de morcegos dra. Shi Zhang-li, a “Mulher Morcego”, organizaram
expedições frequentes a cavernas infestadas de morcegos em Yunnan, no
sul da China, e coletaram cerca de cem coronavírus diferentes de
morcegos.
A
dra. Shi depois fez parceria com o Ralph S. Baric, um pesquisador
eminente de coronavírus da Universidade da Carolina do Norte. O trabalho
deles teve como foco melhorar a capacidade de vírus de morcego de
atacar humanos para "examinar o potencial de emergência (isto é, o
potencial de infectar humanos) de CoVs [coronavírus] de morcegos em
circulação". Com este fim, em novembro de 2015 criaram um novo vírus
tomando o alicerce do vírus SARS1 e substituindo sua proteína de
espícula com uma de vírus de morcego (conhecido como SHC014-CoV). Esse
vírus fabricado tinha a capacidade de infectar células das vias aéreas
humanas, ao menos quando testado em uma cultura laboratorial desse tipo
de célula.
O
vírus SHC014-CoV/SARS1 é chamado de quimera, pois o seu genoma contém o
material genético de duas cepas de vírus. Se o vírus SARS2 tiver sido
cozinhado no laboratório da dra. Shi, então o seu protótipo direto teria
sido a quimera viral SHC014-CoV/SARS1, cujo perigo em potencial
preocupou muitos observadores e provocou debates intensos.
“Se o vírus escapuliu, ninguém poderia prever a trajetória”, disse Simon Wain-Hobson, virologista do Instituto Pasteur em Paris.
O
dr. Baric e a dra. Shi se referiram aos riscos óbvios em seu próprio
artigo, mas defenderam que os riscos deveriam ter o contrapeso dos
benefícios de antecipar futuros transbordamentos virais. Comitês de
pesquisa, escreveram, “podem considerar estudos similares de construção
de vírus quiméricos baseados em cepas em circulação arriscados demais
para explorar”. Dadas as várias restrições implementadas às pesquisas de
ganho de função (GF), a questão havia chegado, na opinião deles, numa
“encruzilhada de preocupações com pesquisas GF; o potencial de se
precaver e mitigar surtos futuros deve ter o contrapeso do risco de
criar mais patógenos perigosos. Nas políticas a serem desenvolvidas
adiante, é importante considerar o valor dos dados gerados por esses
estudos e a possibilidade de esses tipos de estudos com vírus quiméricos
justificarem mais investigação versus os riscos inerentes envolvidos”.
Essa
declaração foi publicada em 2015. Olhando em retrospectiva a partir de
2021, pode-se dizer que o valor dos estudos de ganho de função em
prevenir a epidemia de SARS2 foi zero. O risco foi catastrófico, se de
fato o vírus SARS2 foi gerado em um experimento de ganho de função.
Por dentro do Instituto de Virologia de Wuhan
O
dr. Baric desenvolvera um método geral de projetar coronavírus de
morcego para atacar outras espécies e o ensinou à dra. Shi. Os alvos
específicos eram células humanas cultivadas em laboratório e camundongos
humanizados. Esses camundongos de laboratório, substitutos baratos e
éticos para seres humanos, são geneticamente modificados para carregar a
versão humana de uma proteína chamada ACE2, que cobre a superfície das
células que forram as vias aéreas.
A
dra. Shi retornou a seu laboratório no Instituto de Virologia de Wuhan e
voltou ao trabalho que tinha começado para modificar coronavírus
geneticamente para atacar células humanas. Como podemos ter certeza
disso?
Porque,
por uma reviravolta estranha na história, o trabalho dela foi
financiado pelo Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas
(NIAID), uma parte dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH) dos Estados
Unidos. E as verbas que financiaram o trabalho dela, cujos projetos são
abertos para consulta do público, especificam exatamente o que ela
planejava fazer com o dinheiro.
As
verbas foram atribuídas ao contratante principal, o dr. Daszak da
EcoHealth Alliance, que subcontratou a dra. Shi. Eis a seguir excertos
dos projetos para os anos fiscais de 2018 e 2019. "CoV" quer dizer
coronavírus e "proteína S" se refere à proteína de espícula dos vírus.
“Testar
previsões de transmissão interespécies de CoV. Modelos preditivos de
variedade de hospedeiros (isto é, potencial de emergência) serão
testados experimentalmente usando genética reversa, pseudovírus e
ensaios de ligação a receptores, e experimentos de infecção com vírus
por uma gama de culturas de células de diferentes espécies e camundongos
humanizados.”
“Usaremos
dados de sequência de proteína S, tecnologia de clonagem de agentes
infecciosos, experimentos de infecção in vitro e in vivo e análise de
ligação de receptor para estar a hipótese de que os limiares de
porcentagem de divergência nas sequências de proteína S preveem o
potencial de transbordamento.”
O
que isso significa, em linguagem não técnica, é que a dra. Shi se pôs a
criar novos coronavírus com a infecciosidade mais alta possível em
células humanas. Seu plano era pegar genes que codificavam proteínas de
espícula que possuíam uma variedade de afinidades medidas às células
humanas, da afinidade alta à baixa. Ela inseria esses genes de espícula
um a um em alicerces de alguns genomas virais ("genética reversa" e
"tecnologia de clonagem de agentes infecciosos"), criando uma série de
vírus quiméricos. Esses vírus quiméricos então eram testados de acordo
com sua capacidade de atacar culturas de células humanas (“in vitro”) e
camundongos imunizados (“in vivo”). E essas informações ajudariam a
prever a probabilidade de “transbordamento”, ou seja, o salto do
coronavírus dos morcegos para humanos.
A
abordagem metódica foi projetada para encontrar a melhor combinação de
alicerce de coronavírus e proteína de espícula para infectar células
humanas. A abordagem poderia ter gerado vírus parecidos com o SARS2, e,
de fato, criado o próprio SARS2 com a combinação certa entre alicerce
viral e proteína de espícula.
Não
se pode afirmar ainda que a dra. Shi gerou ou não o SARS2 em seu
laboratório porque seus registros foram postos em sigilo, mas parece que
ela estava certamente a caminho disso. “Está claro que o Instituto de
Virologia de Wuhan estava construindo sistematicamente novos coronavírus
quiméricos e avaliando a capacidade deles de infectar células humanas e
roedores que expressam o ACE2 humano”, diz Richard H. Ebright, um
biólogo molecular da Universidade Rutgers e especialista de ponta em
biossegurança.
“Também
está claro”, disse o dr. Ebright, “que, a depender dos contextos
genômicos constantes escolhidos para análise, essa linha de pesquisa
poderia ter produzido o SARS-CoV-2 ou um progenitor próximo do
SARS-CoV-2”. O “contexto genômico” se refere ao alicerce viral
particular usado como banco de ensaios para a proteína de espícula.
A
hipótese do vazamento de laboratório para a origem do vírus SARS2, como
deve ter ficado evidente agora, não é um mero aceno na direção do
Instituto de Virologia de Wuhan. É uma proposta detalhada, baseada em um
projeto específico financiado lá pelo NIAID.
Mesmo
se o projeto de pesquisa para obter a verba exigisse o plano de
trabalho descrito acima, como podemos ter certeza de que o plano foi
conduzido de fato? Para isso podemos nos apoiar na palavra do dr.
Daszak, que tem sido veemente em protestar nos últimos 15 meses que o
vazamento de laboratório é uma teoria da conspiração ridícula inventada
por críticos da China.
Em
9 de dezembro de 2019, antes de a eclosão da pandemia ficar conhecida
amplamente, o dr. Daszak deu uma entrevista em que falou efusivamente
sobre como os pesquisadores do Instituto de Virologia de Wuhan estavam
reprogramando a proteína de espícula e gerando coronavírus quiméricos
capazes de infectar camundongos humanizados.
“E
agora descobrimos, sabe, depois de seis ou sete anos fazendo isso, mais
de 100 novos coronavírus aparentados ao SARS, bem próximos ao SARS”,
diz o dr. Daszak no minuto 28 da entrevista. “Alguns deles entram em
células humanas no laboratório, alguns podem causar doença SARS em
camundongos humanizados modelos e são intratáveis com anticorpos
monoclonais terapêuticos e não dá para se vacinar contra eles com uma
vacina. Então, eles são um perigo claro e presente...”
Entrevistador:
“Você diz que esses são coronavírus diversos e que você não pode se
vacinar contra eles, e que não tem antivirais — então o que faremos?”
Daszak:
“Bem, eu acho... que os coronavírus — você pode manipulá-los no
laboratório bem facilmente. A proteína de espícula conduz muito do que
acontece com os coronavírus, no risco zoonótico. Então, você pode pegar a
sequência, pode construir a proteína, e trabalhamos muito com Ralph
Baric da UNC para fazer isso. Insere-se [a proteína] no alicerce de
outro vírus e faz-se um pouco de trabalho no laboratório. Então você
consegue ser mais preditivo quando encontra a sequência. Tem essa
diversidade. Agora o próprio passo lógico para as vacinas é, se você vai
desenvolver uma vacina para a SARS, as pessoas vão usar a SARS
pandêmica, mas vamos inserir algumas dessas outras coisas e conseguir
uma vacina melhor.” As inserções às quais ele se refere talvez incluam
um elemento chamado sítio de clivagem da furina, discutido abaixo, que
aumenta enormemente a infecciosidade viral em células humanas.
Em
estilo desconexo, o dr. Daszak está se referindo ao fato de que, uma
vez que se tenha gerado um novo coronavírus que pode atacar células
humanas, pode-se pegar a proteína de espícula e usá-la como base para
uma vacina.
Pode-se
apenas imaginar a reação do dr. Daszak quando ele soube do surto da
pandemia em Wuhan poucos dias depois. Ele, mais que ninguém, saberia
mais da meta do Instituto de Wuhan de fazer coronavírus de morcego serem
infecciosos para humanos, e também das fragilidades da defesa do
instituto contra a infecção de seus próprios pesquisadores.
Porém,
em vez de providenciar às autoridades públicas de saúde as abundantes
informações de que dispunha, imediatamente ele lançou uma campanha de
relações públicas para persuadir o mundo de que a epidemia não poderia
ter sido causada por um dos vírus turbinados do instituto. “A ideia de
que esse vírus escapou de um laboratório é besteira pura. Simplesmente
não é verdade”, declarou em uma entrevista de abril de 2020.
As medidas de segurança do Instituto de Virologia de Wuhan
É
possível que o dr. Daszak não soubesse, ou talvez soubesse demais, da
longa história de vírus escapando até mesmo dos laboratórios mais bem
administrados. O vírus da varíola escapou três vezes de laboratórios da
Inglaterra nos anos 1960 e 1970, causando 80 casos e três mortes. Vírus
perigosos vazaram de laboratórios quase todo ano desde então. Vindo para
tempos mais recentes, o vírus SARS1 se mostrou um artista da escapada,
vazando de laboratórios de Cingapura, Taiwan e não menos que quatro
vezes do Instituto Nacional de de Virologia em Pequim, China.
Um
motivo de o SARS1 ser tão difícil de lidar é que não havia vacinas
disponíveis para proteger os funcionários de laboratórios. Como
mencionou o dr. Daszak em sua entrevista de 19 de dezembro citada acima,
os pesquisadores de Wuhan também não conseguiram desenvolver vacinas
contra os coronavírus que tinham projetado para infectar células
humanas. Também não teriam defesa contra o vírus SARS2, se ele foi
gerado em seu laboratório, como seus colegas de Pequim não tinham contra
o SARS1.
Um
segundo motivo para o perigo severo dos novos coronavírus tem a ver com
os níveis exigidos de segurança laboratorial. Há quatro graus de
segurança, definidos do BSL1 ao BSL4, o BSL4 é o nível mais restritivo e
designado para patógenos mortais como o vírus Ebola.
O
Instituto de Virologia de Wuhan tinha um laboratório BSL4 novo, mas seu
estado de preparação deixou alarmados os inspecionadores do
Departamento de Estado que o visitaram a partir da embaixada de Pequim
em 2018. “O novo laboratório tem uma escassez séria de técnicos e
investigadores treinados apropriadamente que são necessários para operar
com segurança esse laboratório de alta contenção”, escreveram os
inspecionadores em uma mensagem de 19 de janeiro de 2018.
O
verdadeiro problema, no entanto, não era o estado de falta de segurança
do laboratório BSL4 de Wuhan, mas o fato de que os virologistas ao
redor do mundo não gostam de trabalhar em condições BSL4. É preciso usar
uma roupa espacial, fazer operações em cabines fechadas e aceitar que
tudo leva o dobro do tempo. Assim, as regras que atribuem cada vírus a
um dado nível de segurança eram mais relaxadas do que alguns consideram
prudente.
Antes
de 2020, as regras seguidas pelos virologistas na China e outros
lugares exigiam que experimentos com os vírus SARS1 e MERS fossem
conduzidos em condições BSL3. Mas todos os outros coronavírus de
morcegos poderiam ser estudados em BSL2, um nível abaixo. O BSL2 exige
precauções de segurança mínimas, como usar jaleco e luvas, não sugar
líquidos com uma pipeta, e pregar avisos de risco biológico. Mesmo
assim, um experimento de ganho de função conduzido em BSL2 poderia
produzir um agente mais infeccioso que o SARS1 ou o MERS. E, se
produzisse, os funcionários laboratoriais teriam uma chance alta de se
infectarem, especialmente se não vacinados.
Muito
do trabalho da dra. Shi em ganho de função de coronavírus foi realizado
no nível de segurança BSL2, como registrado em suas publicações e
outros documentos. Ela disse em uma entrevista à revista Science que “A
pesquisa com coronavírus no nosso laboratório é conduzida em
laboratórios BSL-2 ou BSL-3”.
“É
evidente que alguma parte ou todo esse trabalho estava sendo executado
com um padrão de biossegurança — nível 2 de biossegurança, o nível de
biossegurança de um consultório odontológico comum nos EUA — que
apresentaria um risco inaceitavelmente alto de infecção da equipe do
laboratório ao entrar em contato com um vírus que tenha as propriedades
de contágio do SARS-CoV-2”, diz o dr. Ebright.
“Também é evidente”, acrescenta ele, “que esse trabalho nunca deveria ter sido financiado e nunca deveria ter sido executado”.
Essa é uma opinião que ele defende não importa se o vírus SARS2 já esteve no interior de um laboratório.
Não
parece que era sem cabimento a preocupação com as condições de
segurança do laboratório de Wuhan. De acordo com uma ficha de fatos
emitida pelo Departamento de Estado em 15 de janeiro de 2021, “O governo
dos EUA tem motivos para acreditar que vários pesquisadores dentro do
IVW adoeceram no outono de 2019, antes do primeiro caso identificado do
surto, com sintomas consistentes tanto com a COVID-19 quanto com doenças
sazonais comuns”.
David
Asher, membro do Instituto Hudson e ex-consultor frente ao Departamento
de Estado, deu mais detalhes sobre o incidente em um seminário. Ficaram
sabendo do incidente por um misto de informações públicas e “algumas
informações de alto nível coletadas pela nossa comunidade de
inteligência”, disse ele. Três pessoas que trabalham em um laboratório
BSL3 no instituto adoeceram com uma diferença de uma semana entre elas,
com sintomas severos que levaram à hospitalização. Esse foi “o primeiro
surto de que temos conhecimento, de vítimas do que acreditamos ser a
COVID-19”. A influenza não podia ser descartada por completo, mas
parecia improvável nas circunstâncias, disse ele.
Comparando as hipóteses rivais da origem do SARS2
As
evidências acima se somam em um caso sério de que o vírus SARS2 poderia
ter sido criado em um laboratório do qual escapou. Mas o caso, por mais
que seja substancial, ainda requer provas. Uma prova consistiria em
evidências do Instituto de Virologia de Wuhan, ou de laboratórios
relacionados em Wuhan, que o vírus SARS2 ou um vírus predecessor estava
sob desenvolvimento lá. Por falta de acesso a esses registros, outra
abordagem é pegar alguns fatos salientes sobre o vírus SARS2 e perguntar
o quão bem cada um dele é explicado pelas duas hipóteses rivais de
origem, a emergência natural ou o vazamento do laboratório. Eis quatro
testes das duas hipóteses. Alguns têm detalhes técnicos, mas são os mais
convincentes para aqueles que quiserem acompanhar o argumento.
1) O lugar de origem
Comecemos
com a geografia. Os dois parentes mais próximos conhecidos do vírus
SARS2 foram coletados de morcegos das cavernas de Yunnan, uma província
do sul da China. Se o vírus SARS2 tivesse infectado primeiro as pessoas
vivendo ao redor das cavernas de Yunnan, isso seria um apoio forte à
ideia de que o vírus transbordou para humanos de forma natural. Mas não
foi o que aconteceu. A pandemia eclodiu a 1.500 km de distância, em
Wuhan.
Os
beta-coronavírus, a família de vírus de morcego ao qual pertence o
SARS2, infectam o morcego nariz-de-ferradura Rhinolophus affinis, que se
distribui pelo sul da China. O território dos morcegos é de 50 km,
então é improvável que qualquer um deles tenha voado até Wuhan. De
qualquer forma, os primeiros casos da pandemia da Covid-19 provavelmente
ocorreram em setembro, quando as temperaturas da província de Hubei já
estão frias o suficiente para os morcegos estarem hibernando.
Mas
e se os vírus dos morcegos infectaram um hospedeiro intermediário
primeiro? Seria necessária uma população antiga de morcegos em
proximidade frequente com um hospedeiro intermediário, que por sua vez
deveria encontrar humanos com frequência. Todas essas trocas de vírus
deveriam acontecer em algum lugar fora de Wuhan, uma metrópole agitada
que até o momento não é conhecida como um habitat natural de colônias do
morcego Rhinolophus. A pessoa infectada (ou animal) carregando esse
vírus altamente transmissível deveria ter viajado a Wuhan sem infectar
ninguém mais. Ninguém na família dessa pessoa ficou doente. Se a pessoa
pegou um trem em Wuhan, nenhum dos passageiros adoeceu.
Em
outras palavras, é forçado conseguir que a pandemia emerja naturalmente
fora de Wuhan e depois, sem deixar nenhuma pista, apareça primeiro lá.
Para
a hipótese do vazamento do laboratório, uma origem do vírus em Wuhan é
muito fácil. Wuhan sedia o principal centro de pesquisa em coronavírus
da China onde, como apontado acima, os pesquisadores estavam fazendo
engenharia genética com coronavírus de morcego para que atacassem
células humanas. Faziam-no sob condições mínimas de segurança de um
laboratório BSL2. Se um vírus com a infecciosidade inesperada do SARS2
tivesse sido gerado lá, a sua escapada não seria surpresa nenhuma.
2) História natural e evolução
O
local de início da pandemia é uma parte pequena de um problema maior,
que é a sua história natural. Os vírus simplesmente não saltam de uma
vez só de uma espécie para outra. A proteína de espícula do coronavírus,
adaptada a atacar células de morcego, precisa de saltos repetidos para
outra espécie, a maioria dos quais fracassa, antes que ganhe uma mutação
sortuda. A mutação — uma mudança em uma de suas unidades do RNA — causa
a incorporação de uma unidade de aminoácido diferente em sua proteína
de espícula e faz com que ela ataque melhor as células de alguma outra
espécie.
Através
de muitos ajustes adicionais via mutação, o vírus se adapta a seu novo
hospedeiro, por exemplo algum animal com o qual os morcegos entram em
contato com frequência. O processo todo então recomeça quando o vírus
migra do hospedeiro intermediário para humanos.
No
caso do SARS1, os pesquisadores documentaram mudanças sucessivas em sua
proteína de espícula enquanto o vírus evoluía passo a passo para um
patógeno perigoso. Depois que ele saltou de morcegos para civetas, houve
seis mudanças adicionais em sua proteína de espícula antes que ele se
tornasse um patógeno brando em humanos. Depois de mais 14 mudanças, o
vírus estava muito mais adaptado a humanos, e com outras quatro a
epidemia deslanchou.
Mas
quando se olha as impressões digitais de uma transição similar no
SARS2, uma estranha surpresa está à espreita. O vírus mudou muito pouco,
ao menos até recentemente. Desde o seu primeiro aparecimento, ele
estava bem adaptado a células humanas. Pesquisadores liderados pela
Alina Chan, do Instituto Broad, compararam o SARS2 com o estágio tardio
do SARS1, que já estava bem adaptado a células humanas, e descobriram
que os dois vírus estavam bem adaptados de forma similar. “Quando o
SARS-CoV-2 foi detectado pela primeira vez no fim de 2019, ele já estava
pré-adaptado à transmissão em humanos a um ponto similar à antiga
epidemia de SARS-CoV”, escreveram.
Mesmo
aqueles que pensam que a origem laboratorial é improvável concordam que
os genomas do SARS2 são notavelmente uniformes. O dr. Baric escreveu
que “as primeiras cepas identificadas em Wuhan, China, mostraram
diversidade genética limitada, o que sugere que o vírus pode ter sido
introduzido de uma fonte única”.
Uma
fonte única seria, claro, compatível mais com o vazamento do
laboratório, e menos com a variação grande e a seleção que é a forma
marcada de a evolução trabalhar.
A
estrutura uniforme dos genomas do SARS2 não dá dicas de qualquer
passagem por um hospedeiro animal intermediário, e nenhum hospedeiro
deste tipo foi identificado na natureza.
Proponentes
da emergência natural sugerem que o SARS2 ficou incubado em alguma
população humana ainda a ser descoberta antes de ganhar as suas
propriedades especiais. Ou que ele saltou para um hospedeiro animal fora
da China.
Todas
essas conjecturas são possíveis, mas forçadas. Os proponentes do
vazamento laboratorial têm uma explicação mais simples. O SARS2 estava
adaptado a células humanas desde o começo porque foi cultivado em
camundongos humanizados ou em culturas de células humanas, tal como
descrito no projeto de pesquisa do dr. Daszak. O seu genoma mostra pouca
diversidade porque a marca das culturas laboratoriais é a sua
uniformidade.
Os
proponentes do escape de laboratório brincam que é claro que o vírus
SARS2 infectou uma espécie hospedeira intermediária antes de saltar para
humanos, e que a identificaram — um camundongo humanizado do Instituto
de Virologia de Wuhan.
3) O sítio de clivagem da furina
O
sítio de clivagem da furina é uma parte minúscula da anatomia do vírus,
mas é uma parte que exerce uma grande influência em sua infecciosidade.
É localizado no meio da proteína de espícula do SARS2. Está também no
cerne do enigma da origem do vírus.
A
proteína de espícula tem duas subunidades com diferentes funções. A
primeira, chamada S1, reconhece o alvo do vírus, uma proteína chamada
enzima de conversão de angiotensina 2 (ou ACE2) que cobre a superfície
de células da mucosa das vias aéreas humanas. A segunda, S2, ajuda o
vírus, quando está ancorado á célula, a se fundir com a membrana
celular. Depois que a membrana externa do vírus coalesce à da célula
atacada, o genoma viral é injetado dentro da célula, toma o controle de
seu maquinário de fabricação de proteínas e o força a gerar novos vírus.
Mas
essa invasão não pode começar até que as subunidades S1 e S2 tenham
sido separadas por um corte. E ali, bem na junção S1/S2, é o sítio de
clivagem da furina que assegura que a proteína de espícula será cortada
exatamente no lugar certo.
O
vírus, um modelo de design econômico, não carrega as suas próprias
tesouras. Ele depende da célula para fazer o corte por ele. As células
humanas têm uma tesoura de proteína em sua superfície chamada furina. A
furina cortará qualquer cadeia de proteína que carregue o seu alvo
característico de corte. É uma sequência de unidades de aminoácido
prolina-arginina-arginina-alanina, ou PRRA no código que se refere a
cada aminoácido por uma letra do alfabeto. A PRRA é uma sequência de
aminoácidos no cerne do sítio de clivagem de furina do SARS2.
Os
vírus têm todo tipo de truque esperto, então por que o sítio de
clivagem da furina chama a atenção? Porque, de todos os beta-coronavírus
conhecidos aparentados ao SARS, somente o SARS2 possui um sítio de
clivagem da furina. Todos os outros vírus têm sua unidade S2 cortada em
um sítio diferente e por um mecanismo diferente.
Como,
então, o SARS2 adquiriu seu sítio de clivagem da furina? Ou o sítio
evoluiu naturalmente, ou foi inserido por pesquisadores na junção S1/S2
em um experimento de ganho de função.
Consideremos
primeiro a origem natural. Duas formas de os vírus evoluírem são por
mutação ou por recombinação. A mutação é o processo de mudança aleatória
no DNA (ou RNA, para os coronavírus) que geralmente resulta na mudança
de um aminoácido por outro na cadeia protéica. Muitas dessas mudanças
são danosas ao vírus, mas a seleção natural retém as poucas que fazem
algo útil. A mutação é um processo pelo qual a proteína de espícula do
SARS1 gradualmente trocou as suas células alvo favoritas dos morcegos
para as civetas, e delas para humanos.
A
mutação parece ser um jeito menos provável de o sítio de clivagem da
furina do SARS2 ser gerado, embora não possa ser completamente
descartada. As quatro unidades de aminoácido do sítio estão todas
juntas, e todas no lugar certeiro da junção S1/S2. A mutação é um
processo aleatório engatilhado por erros de cópia (quando novos genomas
virais estão sendo feitos) ou pelo decaimento químico de unidades do
genoma. Então, tipicamente ela afeta aminoácidos únicos em lugares
diferentes de uma cadeia protéica. Uma sequência de aminoácidos como
aquela do sítio de clivagem da furina é muito mais provável de ser
adquirida de uma vez através de um processo bem diferente chamado
recombinação.
A
recomendação é uma troca inadvertida de material genômico que ocorre
quando dois vírus por acaso invadem a mesma célula, e a sua prole é
combinada com pedaços de RNA pertencentes ao outro vírus. Os
beta-coronavírus só combinarão com outros beta-coronavírus, mas podem
adquirir, pela recombinação, quase qualquer elemento genético presente
nos recursos genômicos coletivos. O que eles não podem adquirir é um
elemento que os recursos não possuem. E nenhum beta-coronavírus
aparentado a SARS, a classe do SARS2, possui um sítio de clivagem da
furina.
Os
proponentes da emergência natural dizem que o SARS2 poderia ter pegado o
sítio de algum beta-coronavírus ainda desconhecido. Mas os
beta-coronavírus aparentados a SARS evidentemente não precisam de um
sítio de clivagem da furina para infectar células de morcegos, então não
há grande probabilidade de que algum o possua, e, de fato, nenhum foi
encontrado até agora.
O
próximo argumento dos proponentes é que o SARS2 adquiriu seu sítio de
clivagem da furina em humanos. Um predecessor do SARS2 poderia estar
circulando na população humana por meses ou anos e, em algum momento,
adquiriu o sítio de clivagem da furina de células humanas. Assim ficaria
pronto para eclodir numa pandemia.
Se
foi isso o que aconteceu, deveria haver pistas em registros
hospitalares de pessoas infectadas pelo vírus em lenta evolução. Mas
nenhum até agora veio à tona. De acordo com o relatório sobre as origens
do vírus da OMS, os hospitais sentinelas da província de Hubei, na qual
fica Wuhan, monitoram rotineiramente doenças tipo influenza e “nenhuma
evidência que sugira uma transmissão substancial de SARS-CoV-2 nos meses
antes do surto em dezembro foi observada”.
Então
é difícil explicar como o vírus SARS2 pegou o sítio de clivagem da
furina naturalmente, seja por mutação ou por recombinação.
Resta
o experimento de ganho de função. Para aqueles que pensam que o SARS2
pode ter escapado de um laboratório, explicar o sítio de clivagem da
furina não é problema. “Desde 1992, a comunidade da virologia sabe que
um jeito certeiro de fazer um vírus mais mortal é dar-lhe um sítio de
clivagem da furina na junção S1/S2 em laboratório”, escreve o dr. Steven
Quay, um empresário de biotecnologia interessado nas origens do SARS2.
“Ao menos onze experimentos de ganho de função, acrescentando o sítio da
furina para fazer o vírus mais infeccioso, estão publicados na
literatura aberta, incluindo o da dra. Zhengli Shi, chefe de pesquisa em
coronavírus no Instituto de Virologia de Wuhan”.
4) Uma questão de códons
Há outro aspecto do sítio de clivagem da furina que estreita o caminho para uma emergência natural ainda mais.
Como
todos sabem (ou podem ao menos se lembrar do ensino médio), o código
genético usa três unidades do DNA para especificar cada unidade de
aminoácido de uma cadeia de proteína. Quando lidas em grupos de três, as
quatro diferentes unidades do DNA podem especificar 4 x 4 x 4, ou 64
diferentes trincas, ou, como são chamadas, códons. Já que há só 20 tipos
de aminoácidos, há mais do que o suficiente de códons para todos eles,
permitindo que alguns aminoácidos sejam especificados por mais de um
códon. O aminoácido arginina, por exemplo, pode ser designado por
qualquer um dos seis códons CGU, CGC, CGA, CGG, AGA ou AGG, em que A, U,
G e C significam os quatro tipos diferentes de unidade do RNA.
Eis
onde fica interessante. Organismos diferentes têm diferentes
preferências de códon. Células humanas gostam de designar a arginina com
os códons CGT, CGC ou CGG. Mas o CGG é o códon menos popular dos
coronavírus para a arginina. Mantenhamos este fato em mente quando
olhamos como os aminoácidos no sítio de clivagem da furina são
codificados no genoma do SARS2.
A
razão funcional pela qual o SARS2 tem um sítio de clivagem da furina, e
seus primos virais não têm, pode ser vista ao se fazer um alinhamento
(no computador) da sequência de quase 30 mil nucleotídeos em seu genoma
com as sequências de seus primos coronavirais, dos quais o mais próximo
conhecido até agora é chamado de RaTG13. Comparado ao RaTG13, o SARS2
tem uma inserção de 12 nucleotídeos bem na junção S1/S2. A inserção é a
sequência T-CCT-CGG-CGG-GC. O CCT codifica a prolina, os dois CGG’s
codificam duas argininas, e o GC é o começo de um códon GCA para a
alanina.
Há
várias características curiosas sobre essa inserção, mas a mais
estranha é a dos dois códons CGG seguidos. Somente 5% dos códons de
arginina do SARS2 são CGG, e o duplo códon CGG-CGG não foi encontrado em
nenhum outro beta-coronavírus. Então, como foi que o SARS2 adquiriu um
par de códons de arginina que são favorecidos por células humanas, mas
não por coronavírus?
Os
proponentes da emergência natural têm uma tarefa mais difícil de
explicar todas as características do sítio de clivagem da furina do
SARS2. Têm que postular um evento de recombinação em um sítio do genoma
do vírus onde as recombinações são raras, e a inserção da sequência de
12 nucleotídeos com um duplo códon de arginina, desconhecida no
repertório dos beta-coronavírus, no único lugar do genoma que expandiria
de forma significativa a infecciosidade do vírus.
“Sim,
mas a forma como você coloca as palavras faz com que isso soe
improvável — vírus são especialistas em eventos incomuns”, retruca David
L. Robertson, um virologista da Universidade de Glasgow que considera o
escape de laboratório uma teoria da conspiração. “A recombinação é
naturalmente muito, muito frequente nesses vírus, há pontos de quebra
para recombinação na proteína de espícula e esses códons parecem
incomuns exatamente porque nós não amostramos o suficiente”.
O
dr. Robertson está certo a respeito de a evolução estar sempre
produzindo resultados que podem parecer improváveis, mas na verdade não
são. Os vírus podem gerar incontáveis números de variantes, mas vemos
somente uma em um bilhão que a seleção natural escolhe para sobreviver.
Porém, este argumento pode ser levado longe demais. Por exemplo,
qualquer resultado de um experimento de ganho de função poderia ser
explicado como um resultado ao qual a evolução chegaria com o tempo. E o
jogo dos números pode ser jogado na outra direção. Para que o sítio de
clivagem da furina surja naturalmente no SARS2, uma sequência de eventos
tem que acontecer, cada um deles bem improvável pelas razões dadas
acima. Uma sequência longa com vários passos improváveis tem pouca
chance de ser concluída.
Para
a hipótese do escape de laboratório, o duplo códon CGG não é surpresa. O
códon preferido em humanos é rotineiramente usado em laboratórios.
Então, qualquer pessoa que quisesse inserir um sítio de clivagem da
furina no genoma do vírus sintetizaria a sequência que faz PRRA no
laboratório e provavelmente usaria os códons CGG para fazê-lo.
“Quando
eu vi pela primeira vez o sítio de clivagem da furina na sequência
viral, com seus códons de arginina, eu disse à minha esposa que era a
prova concreta para a origem do vírus”, disse David Baltimore,
proeminente virologista e ex-presidente da CalTech. “Essas
características dão um desafio poderoso à ideia da origem natural do
SARS2”, disse ele.
Uma terceira hipótese de origem
Há
uma variação da hipótese da emergência natural que vale a pena
considerar. É a ideia de que o SARS2 saltou diretamente dos morcegos
para humanos, sem passar por um hospedeiro intermediário, como fizeram o
SARS1 e o MERS. Um defensor proeminente é o virologista David
Robertson, que nota que o SARS2 pode atacar muitas outras espécies além
dos humanos. Ele acredita que o vírus evoluiu uma capacidade generalista
enquanto ainda estava em morcegos. Pela razão de os morcegos que ele
infecta serem distribuídos amplamente no sul e na área central da China,
o vírus tinha ampla oportunidade de saltar para humanos, embora pareça
que tenha saltado em apenas uma ocasião conhecida. A tese do dr.
Robertson explica por que ninguém até agora encontrou uma pista do SARS2
em qualquer hospedeiro intermediário ou em populações humanas
investigadas antes de dezembro de 2019. Também explicaria o fato
intrigante de o SARS2 não ter mudado desde que apareceu em humanos — não
precisaria mudar porque já podia atacar células humanas com eficiência.
Contudo,
um problema com essa ideia é que, se o SARS2 saltou de morcegos para
humanos em um salto único e não mudou muito desde então, ainda deveria
ser bom em infectar morcegos. E parece que não é.
“Espécies
de morcegos testadas são infectadas de forma ineficiente pelo
SARS-CoV-2 e, portanto, são uma fonte direta improvável da infecção
humana”, escreveu uma equipe de cientistas céticos quanto à emergência
natural.
Ainda
assim, o dr. Robertson pode estar no caminho certo. Os coronavírus de
morcegos das cavernas de Yunnan podem infectar as pessoas diretamente.
Em abril de 2012, seis mineiros que estavam limpando guano de morcego da
mina de Mojiang contraíram uma pneumonia severa com sintomas similares à
Covid-19, e três acabaram morrendo. Um vírus isolado da mina de
Mojiang, chamado RaTG13, ainda é o parente mais próximo conhecido do
SARS2. Muito mistério cerca a origem, os registros e a afinidade
estranhamente baixa do RaTG13 por células de morcego, além da natureza
de oito vírus similares que a dra. Shi relata que coletou na mesma época
mas ainda não publicou, apesar da grande relevância deles para a
ancestralidade do SARS2. Mas tudo isso é história para outra
oportunidade. O ponto, aqui, é que os vírus de morcegos podem infectar
humanos diretamente, embora somente em condições especiais.
Quem
mais, então, além dos mineiros que escavaram guano de morcego, chega
particularmente perto dos coronavírus de morcegos? Bem, esses são os
pesquisadores. A dra. Shi diz que ela e seu grupo coletaram mais de
1.300 amostras de morcego durante oito visitas à caverna de Mojiang
entre 2012 e 2015, e houve sem dúvidas muitas expedições a outras
cavernas de Yunnan.
Imaginemos
os pesquisadores fazendo expedições frequentes de Wuhan até Yunnan e de
volta, mexendo com guano de morcego em cavernas e minas escuras, e
agora começamos a ver um elo perdido possível entre os dois lugares. Os
pesquisadores poderiam ter se infectado durante as viagens de coleta, ou
enquanto trabalhavam com os novos vírus no Instituto de Virologia de
Wuhan. O vírus que escapou do laboratório seria um vírus natural, não um
vírus cozinhado pelo ganho de função.
A
tese de infecção direta dos morcegos é uma quimera entre as hipóteses
de emergência natural e do escape de laboratório. É uma possibilidade
que não pode ser descartada. Mas contra elas há os fatos que (1) tanto o
SARS2 quanto o RaTG13 parecem ter afinidade frágil por células de
morcego, então não se pode ter confiança completa de que um deles já
esteve dentro de algum morcego; e (2) a teoria não é melhor que uma
hipótese de emergência natural para explicar como o SARS2 ganhou o seu
sítio de clivagem da furina, ou por que o sítio de clivagem da furina é
determinado por códons de arginina favoritos em humanos em vez de códons
favoritos de morcegos.
Onde estamos
Nem
a emergência natural nem a hipótese de escape de laboratório podem ser
descartadas no momento. Ainda não há evidência direta de nenhuma delas.
Então não se pode chegar a nenhuma conclusão definitiva.
Dito
isso, as evidências disponíveis pendem de forma mais enfática em uma
direção do que na outra. Os leitores formarão as próprias opiniões. Mas,
para mim, parece que os proponentes do escape de laboratório podem
explicar todos os fatos disponíveis sobre o SARS2 de forma
consideravelmente mais fácil do que aqueles que favorecem a emergência
natural.
Está
documentado que os pesquisadores do Instituto de Virologia de Wuhan
estavam fazendo experimentos de ganho de função projetados para fazer os
coronavírus infectarem células humanas e camundongos humanizados. Este é
exatamente o tipo de experimento do qual um vírus como o SARS2 poderia
emergir. Os pesquisadores não estavam vacinados contra os vírus em
estudo, e estavam trabalhando nas condições de segurança mínimas de um
laboratório BSL2. Assim, o vazamento de um vírus não seria grande
surpresa. Em toda a China, a pandemia eclodiu justamente à porta do
instituto de Wuhan. O vírus já estava bem adaptado a humanos, como
esperado para um vírus cultivado em roedores humanizados. Ele possuía um
aperfeiçoamento incomum, um sítio de clivagem da furina, que não está
em nenhum dos beta-coronavírus relacionados à SARS conhecidos, e esse
sítio incluía um códon duplo de arginina também desconhecido entre
beta-coronavírus. Quantas evidências mais se poderia querer, além dos
ainda inalcançáveis registros laboratoriais documentando a criação do
SARS2?
Os
proponentes da emergência natural têm uma história mais forçada para
contar. A plausibilidade do caso deles repousa sobre uma única
suposição, o paralelo esperado entre a emergência do SARS2 e a
emergência do SARS1 e do MERS. Mas nenhuma das evidências esperadas em
apoio à tal história paralela emergiu ainda. Ninguém encontrou uma
população de morcegos que foi a fonte do SARS2, se ele de fato já
infectou morcegos. Nenhum hospedeiro intermediário se apresentou, apesar
de uma busca intensiva das autoridades chinesas que incluiu a testagem
de 80 mil animais. Não há evidência de que o vírus fez múltiplos saltos
independentes de seu hospedeiro intermediário para humanos, como fizeram
o SARS1 e o MERS. Não há evidência dos registros hospitalares da
epidemia se fortalecendo na população enquanto o vírus evoluía. Não há
explicação da razão pela qual uma epidemia natural eclodiria em Wuhan e
não em outro lugar. Não há boa explicação de como o vírus adquiriu o seu
sítio de clivagem da furina, que nenhum outro beta-coronavírus
relacionado à SARS possui, nem da razão pela qual o sítio é composto por
códons preferidos no organismo humano. A teoria da emergência natural
trava uma batalha contra um arranjo repleto de implausibilidades.
Os
registros do Instituto de Virologia de Wuhan certamente têm muitas
informações relevantes. Mas as autoridades chinesas não parecem
dispostas a liberá-las, dada a chance substancial de que isso
incriminaria o regime pela criação da pandemia. Fora os esforços de
algum delator chinês corajoso, podemos já ter em mãos todas as
informações relevantes que poderemos ter em muito tempo.
Então
vale a pena avaliar a responsabilidade pela pandemia, ao menos de forma
provisória, pois a meta crucial permanece sendo a prevenção de outra
pandemia. Mesmo aqueles que não foram convencidos que o vazamento
laboratorial é a origem mais provável do vírus SARS2 podem ver motivos
para preocupação sobre o atual estado da regulamentação da pesquisa de
ganho de função. Há dois níveis óbvios de responsabilidade: o primeiro,
por permitir que virologistas executem experimentos de ganho de função,
oferecendo ganhos mínimos e enormes riscos; o segundo, se o SARS2 de
fato foi gerado em laboratório, por permitir que o vírus escapasse e
desencadeasse uma pandemia mundial. Eis os atores que parecem os mais
prováveis de terem a culpa.
1. Virologistas chineses
Antes
de mais nada, os virologistas chineses são imputáveis por executarem
experimentos de ganho de função na maior parte em condições de segurança
de nível BSL2, que eram relaxadas demais para conter um vírus de
infecciosidade inesperada como o SARS2. Se o vírus de fato escapou de
seu laboratório, eles merecem a reprovação do mundo por um acidente
previsível que já causou as mortes de três milhões de pessoas.
É
verdade que a dra. Shi foi treinada por virologistas franceses,
trabalhou em estreita colaboração com virologistas americanos e estava
seguindo as regras internacionais para a contenção dos coronavírus. Mas
ela poderia e deveria ter feito a própria avaliação dos riscos em que
incorria. Ela e seus colegas têm responsabilidade pelos seus atos.
Eu
usei o Instituto de Virologia de Wuhan como representante de todas as
atividades de virológicas em Wuhan. É possível que o SARS2 foi gerado em
algum outro laboratório de Wuhan, talvez numa tentativa de fazer uma
vacina contra todos os coronavírus. Mas, até que o papel de outros
virologistas chineses seja esclarecido, a dra. Shi é a face pública da
pesquisa chinesa em coronavírus, e, provisoriamente, ela e seus colegas
serão os primeiros na linha do opróbrio.
2. Autoridades chinesas
As
autoridades centrais da China não geraram o SARS2 mas certamente
fizeram o que podiam para esconder a natureza da tragédia e a
responsabilidade da China por ela. Suprimiram todos os registros do
Instituto de Virologia de Wuhan e fecharam os seus bancos de dados
virais. Liberaram a conta-gotas as informações, muitas das quais podem
ter sido completamente falsas ou fabricadas para despistar e enganar.
Fizeram o que podiam para manipular a investigação da OMS sobre as
origens do vírus, e levaram os membros da comissão a um turismo
infrutífero. Até agora, mostraram-se muito mais interessadas em se
esquivar da culpa do que em tomar medidas necessárias para prevenir uma
segunda pandemia.
3. A comunidade internacional de virologistas.
Os
virologistas ao redor do mundo são uma comunidade profissional de laços
frouxos. Escrevem artigos nas mesmas revistas. Vão aos mesmos
congressos. Têm interesses em comum ao buscarem verbas de governos e não
desejarem o fardo de mais regulamentação de segurança.
Os
virologistas sabiam mais que qualquer um dos perigos da pesquisa de
ganho de função. Mas o poder de criar novos vírus, e as verbas de
pesquisa acessíveis para fazê-lo, eram tentadores demais. Eles avançaram
com os experimentos de ganho de função. Fizeram lobby contra a
moratória imposta às verbas federais para a pesquisa de ganho de função
em 2014, e ela foi removida em 2017.
Os
benefícios das pesquisas para prevenir futuras epidemias até o momento
foram nulos, e os riscos, vastos. Se a pesquisa sobre os vírus SARS1 e
MERS só poderiam ser feitas em um nível de segurança BSL3, certamente
foi ilógico permitir qualquer trabalho com novos coronavírus no nível
menor BSL2. Se o SARS2 escapou ou não de um laboratório, os virologistas
ao redor do mundo estavam brincando com fogo.
O
comportamento deles há muito é alarmante para outros biólogos. Em 2014,
cientistas que se denominaram o Grupo de Trabalho de Cambridge pediram
por cuidado ao criar novos vírus. Em palavras proféticas, eles
especificaram o risco de criar um vírus como o SARS2. “Riscos acidentais
com a criação de novos ‘patógenos pandêmicos em potencial’ suscitam
sérias novas preocupações”, escreveram eles. “A criação laboratorial de
novas cepas altamente transmissíveis de vírus perigosos, em especial,
mas não limitado à influenza, apresenta riscos substancialmente maiores.
Uma infecção acidental nessas condições poderia engatilhar surtos que
seriam difíceis ou impossíveis de controlar”.
Quando
biólogos moleculares descobriram uma técnica para mudar genes de um
organismo para outro, fizeram uma conferência pública em Asilomar, em
1975, para discutir os possíveis riscos. Apesar de muita oposição
interna, elaboraram uma lista de medidas restritas de segurança que
poderiam ser relaxadas no futuro — e de fato foram — quando os riscos
possíveis tivessem sido mais bem avaliados.
Quando
a técnica CRISPR para editar genes foi inventada, os biólogos
organizaram um relatório em conjunto das academias nacionais de ciências
dos Estados Unidos, Reino Unido e China pedindo por comedimento ao
fazer mudanças herdáveis no genoma humano. Os biólogos que inventaram a
genética dirigida também trataram abertamente dos perigos de seu
trabalho e buscaram envolver o público.
Poder-se-ia
pensar que a pandemia do SARS2 estimularia os virologistas a reavaliar
os benefícios da pesquisa de ganho de função, ainda que para incluir o
público em suas deliberações. Mas não. Muitos virologistas difamam o
escape de laboratório como uma teoria da conspiração e outros nada
dizem. Eles se entrincheiraram por trás da muralha de silêncio da China
que até agora está funcionando bem para dissipar, ou ao menos protelar a
curiosidade dos jornalistas e a ira do público. Profissões que não
conseguem regular a si próprias merecem ser reguladas por outros, e esse
parece ser o futuro que os virologistas estão escolhendo para si
mesmos.
4. O papel dos EUA ao financiar o Instituto de Virologia de Wuhan
De
junho de 2014 a maio de 2019, a EcoHealth Alliance do dr. Daszak contou
com uma verba do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas
(NIAID), parte dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH), para fazer
pesquisa de ganho de função com coronavírus no Instituto de Virologia de
Wuhan. Se o SARS2 é ou não é o produto daquela pesquisa, parece que é
uma política questionável terceirizar a pesquisa de alto risco para
laboratórios estrangeiros arriscados que usam as precauções mínimas de
segurança. E, se o vírus SARS2 de fato escapou do instituto de Wuhan, os
NIH se encontrarão na posição terrível de terem financiado um
experimento desastroso que levou à morte de mais de três milhões de
pessoas ao redor do mundo, incluindo mais de meio milhão de seus
próprios cidadãos.
A
responsabilidade do NIAID e dos NIH é ainda mais grave porque, pelos
três primeiros anos da verba para a EcoHealth Alliance, havia uma
moratória sobre a pesquisa de ganho de função. Por que as duas agências
não impediram o financiamento federal, como ao que parece seria o
exigido por lei? Porque alguém escreveu uma brecha na moratória.
A
moratória barrava especificamente o financiamento de quaisquer
pesquisas de ganho de função que aumentassem a patogenicidade da gripe
ou de vírus MERS ou SARS. Mas uma nota de rodapé na p. 2 do documento da
moratória diz que “Uma exceção da pausa nas pesquisas poderá ser obtida
se o administrador de uma agência de financiamento USG determinar que a
pesquisa em questão é urgentemente necessária para proteger a saúde
pública ou a segurança nacional”.
Parece
que o significado disso é que o diretor do NIAID, o dr. Anthony Fauci,
ou o diretor das NIH, o dr. Francis Collins, ou talvez ambos, teriam
invocado a nota de rodapé para manter o dinheiro que fluía para a
pesquisa de ganho de função da dra. Shi.
“Infelizmente,
o diretor do NIAID e o diretor dos NIH exploraram essa brecha para
criar isentar projetos que seriam sujeitados à Pausa — absurdamente
afirmando que a pesquisa isentada era ‘urgentemente necessária para
proteger a saúde pública ou a segurança nacional’ — dessa forma anulando
a Pausa”, disse o dr. Richard Ebright em uma entrevista ao Independent
Science News.
Quando
a moratória terminou em 2017, ela não desapareceu, mas foi substituída
por um sistema de notificações, o Quadro de Controle e Supervisão de
Potenciais Patógenos Pandêmicos (P3CO), que exigia que as agências
notificassem para análise qualquer trabalho perigoso de ganho de função
que quisessem financiar.
De
acordo com o dr. Ebright, o dr. Collins e o dr. Fauci “recusaram-se a
notificar e passar adiante as propostas para análise de custo-benefício,
dessa forma tornando nulo o P3CO”.
Na
opinião dele, os dois diretores, ao lidar com a moratória e o sistema
de notificação subsequente, “sistematicamente impediram os esforços da
Casa Branca, do Congresso, de cientistas e especialistas em políticas
científicas de regular as pesquisas GF [de ganho de função] em questão”.
É
possível que os dois diretores precisaram levar em conta questões não
óbvias no registro público, tais como problemas de segurança nacional.
Talvez o financiamento do Instituto de Virologia de Wuhan, que se
acredita estar envolvido com virologistas militares chineses, fornecia
uma janela para a pesquisa chinesa em armas biológicas. Mas, quaisquer
que sejam as outras considerações envolvidas, o resultado é que os
Institutos Nacionais de Saúde estavam apoiando pesquisa de ganho de
função, de um tipo que poderia ter gerado o vírus SARS2, em um
laboratório estrangeiro não supervisionado que estava trabalhando em
condições BSL2 de biossegurança. A prudência dessa decisão pode ser
questionada, não importa se o SARS2 ou a morte de três milhões de
pessoas tenham resultado dela.
Em Suma
Se
o caso da origem laboratorial do SARS2 é tão substancial, por que é que
mais pessoas não sabem disso? Como pode já estar evidente agora, há
muitas pessoas que têm motivos para não tocar no assunto. No topo da
lista estão, é claro, as autoridades chinesas. Mas os virologistas nos
Estados Unidos e na Europa não têm grande interesse em dar início a um
debate público sobre os experimentos de ganho de função que a sua
comunidade tem buscado há anos.
Outros
cientistas também não tomaram a dianteira para levantar a questão. As
verbas de pesquisa do governo são distribuídas com o conselho de comitês
de especialistas científicos escolhidos nas universidades. Qualquer um
que balance o barco levantando questões políticas incômodas corre o
risco de ter a verba não renovada e sua carreira na pesquisa encerrada.
Talvez o bom comportamento seja premiado com muitas benesses que lavam o
sistema de distribuição. E se alguém pensa que o dr. Andersen ou o dr.
Daszak mancharam as suas reputações de objetividade científica depois de
seus ataques parciais à hipótese do escape de laboratório, basta olhar o
segundo e o terceiro nome nessa lista de agraciados com uma verba de
U$82 milhões anunciada pelo Instituto Nacional de Alergia e Doenças
Infecciosas em agosto de 2020.
O
governo americano tem um estranho interesse em comum com as autoridades
chinesas: nenhum deles está disposto a chamar atenção para o fato de
que o trabalho com coronavírus da dra. Shi foi financiado pelos
Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos. Pode-se imaginar a
conversa de bastidores em que o governo chinês diz que “Se essa pesquisa
era tão perigosa, por que vocês a financiaram, e dentro do nosso
território?” Ao que o lado dos Estados Unidos poderia replicar que
“Parece que foram vocês que deixaram escapulir. Mas precisamos mesmo ter
essa conversa em público?”
O
dr. Fauci é um membro de longa data do funcionalismo público que serviu
com integridade sob o presidente Trump e retomou a liderança na
administração Biden para lidar com a epidemia de Covid. O congresso, sem
dúvida compreensivelmente, pode não ter muita gana de lhe dar uma
reprimenda pública pelo aparente lapso de julgamento ao financiar
pesquisa de ganho de função em Wuhan.
A
essas muralhas impenetráveis de silêncio deve-se adicionar o silêncio
da mídia dominante. Até onde sei, nenhum grande jornal ou canal de
televisão já deu aos leitores uma matéria aprofundada sobre a hipótese
do vazamento laboratorial, como a que o leitor acaba de ler aqui, embora
alguns tenham publicado editoriais breves ou colunas de opinião.
Poder-se-ia pensar que qualquer origem plausível de um vírus que matou
três milhões de pessoas seria digna de uma investigação séria. Ou que a
sabedoria de continuar as pesquisas de ganho de função, independente da
origem do vírus, seria digna de alguma perscrutação. Ou que o
financiamento de pesquisa de ganho de função pelos NIH e NIAID durante
uma moratória sobre tais pesquisas pediria por investigação. O que
explica a aparente falta de curiosidade da mídia?
O
omertà dos virologistas é uma razão. Repórteres de ciência, diferente
dos de política, têm pouco ceticismo inato às motivações de suas fontes;
a maioria vê o seu papel como na maior parte passar adiante a sabedoria
dos cientistas às massas ignaras. De forma que, quando as suas fontes
não ajudam, esses jornalistas ficam perdidos.
Outra
razão, talvez, é a migração de boa parte da mídia na direção da
esquerda do espectro político. Porque o presidente Trump disse que o
vírus tinha escapado de um laboratório de Wuhan, os editores deram pouco
crédito à ideia. Juntaram-se aos virologistas ao considerar o escape
laboratorial uma teoria da conspiração dispensável. Durante a
administração Trump, não tiveram problemas em rejeitar a posição dos
serviços de inteligência de que o escape de laboratório não poderia ser
descartado. Porém, quando Avril Haines, diretora da Inteligência
Nacional do presidente Biden, disse a mesma coisa, ela também em geral
foi ignorada. Isso não é para dizer que os editores deveriam endossar a
hipótese do vazamento laboratorial, mas meramente que eles deveriam ter
explorado a possibilidade de forma completa e justa.
As
pessoas ao redor do mundo que muitas vezes passaram seu tempo
confinadas em casa no ano passado poderiam desejar uma resposta melhor
do que a mídia lhes deu. Talvez alguma surja a tempo. Afinal, quanto
mais meses passarem sem uma teoria de emergência natural que ganhe
alguma migalha de evidência em seu apoio, menos plausível ela parece.
Talvez a comunidade internacional de virologistas virá a ser vista como
um guia falso e com interesses pessoais. A percepção do senso comum de
que a eclosão de uma pandemia em Wuhan poderia ter algo a ver com um
laboratório de Wuhan fabricando novos vírus de perigo máximo em
condições de segurança mínimas poderia no fim afastar a insistência
ideológica de que tudo o que Trump disse não pode ser verdade.
E assim, que comece o acerto de contas.
Nicholas Wade
Agradecimentos
A
primeira pessoa que levou a sério as origens do vírus SARS2 foi Yuri
Deigin, um empreendedor da biotecnologia na Rússia e no Canadá. Em um
longo e brilhante ensaio, ele dissecou a biologia molecular do vírus
SARS2 e levantou, sem endossar, a possibilidade de que ele pudesse ter
sido manipulado. O ensaio, publicado em 20 de abril de 2020, forneceu um
mapa para qualquer um que quisesse buscar entender as origens do vírus.
Deigin incluiu tanta informação e análise em seu ensaio que alguns
duvidaram que poderia ser o trabalho de um único indivíduo e sugeriram
que alguma agência de inteligência deveria ser o real autor. Mas o
ensaio é escrito com mais leveza e humor do que eu suspeitaria encontrar
em relatórios da CIA ou da KGB, e não vejo razão para duvidar que o dr.
Deigin é o único e hábil autor.
Seguindo
os passos de Deigin vieram muitos outros céticos quanto à ortodoxia dos
virologistas. Nikolai Petrovsky calculou o quão forte é a ligação do
vírus SARS2 aos receptores ACE2 de várias espécies e descobriu, para
surpresa dele próprio, que o vírus parecia ser otimizado para o receptor
humano, levando-o a inferir que ele poderia ter sido gerado em um
laboratório. Alina Chan publicou um artigo mostrando que o SARS2, desde
que apareceu, era muito bem adaptado às células humanas.
Um
dos muito poucos cientistas do establishment a questionar a rejeição
absoluta dos virologistas ao vazamento laboratorial é Richard Ebright,
que há muito tempo alerta contra os perigos da pesquisa de ganho de
função. Outro é David E. Relman da Universidade de Stanford. “Embora
opiniões fortes sejam abundantes, nenhum desses cenários pode ser
descartado ou aceito com confiança com os fatos disponíveis hoje”,
escreveu ele. Parabéns também ao Robert Redfield, ex-diretor dos Centros
de Controle e Prevenção de Doenças, que disse à CNN em 26 de março de
2021 que a causa “mais provável” da epidemia “veio de um laboratório”,
pois ele duvidava que um vírus de morcego pudesse se tornar um patógeno
humano extremo de um dia para o outro, sem levar um tempo para evoluir,
como parecia ser o caso com o SARS2.
Steven
Quay, um médico pesquisador, aplicou ferramentas estatísticas e de
bioinformática em explorações engenhosas da origem do vírus, mostrando,
por exemplo, como os hospitais que recebiam pacientes no início se
agrupavam ao longo da linha nº 2 do metrô de Wuhan que conecta o
Instituto de Virologia em uma ponta ao aeroporto internacional na outra,
a esteira rolante perfeita para distribuir o vírus do laboratório para o
mundo.
Em
junho de 2020, Milton Leitenberg publicou uma pesquisa preliminar sobre
as evidências favorecerem o vazamento laboratorial da pesquisa de ganho
de função no Instituto de Virologia de Wuhan.
Muitos
outros contribuíram peças importantes para o quebra-cabeças. “A verdade
é a filha”, disse Francis Bacon, “não da autoridade, mas do tempo”. O
esforço de pessoas como essas acima é o que faz isso acontecer.
*Nicholas
Wade é escritor e repórter veterano de ciência que atuou no New York
Times entre 1982 e 2012. Texto original em inglês.
Texto
traduzido pelo geneticista Eli Vieira. Para uma versão resumida de
alguns desses fatos, confira o artigo do tradutor de novembro de 2020
aqui na Gazeta do Povo.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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