Um povo que não sabe usar uma planilha está condenado a aceitar os fatos que afetam sua sobrevivência e prosperidade sem saber como reagir. Dagomir Marquezi para a Oeste:
Começou
no último dia 10 a 27ª Olimpíada de Matemática de Maio, com estudantes
até 15 anos de idade. Os finalistas entrarão no circuito internacional.
Poderão seguir o exemplo das três estudantes brasileiras que faturaram
medalhas de bronze na 10ª Olimpíada Europeia de Matemática para Garotas,
encerrada na República da Geórgia em 15 de abril.
E
quem se importa? Vivemos numa época de politização rasa, opiniões
abstratas sobre tudo e considerações estéticas. Não ligamos muito para
os números. Deixamos a matemática para técnicos e especialistas,
encarregados de fazer com que as coisas funcionem. E voltamos para a
interminável guerra de opiniões nas redes sociais.
Temos
um pequeno grupo muito capacitado de especialistas, alguns já
trabalhando em outros países. Mas a matemática não faz parte da nossa
cultura. Pior: é tratada a pauladas na educação brasileira, hoje mais
preocupada em produzir intoxicação ideológica e política sindicalista do
que em conviver com a realidade.
No
início deste ano, a revista The Economist divulgou um novo estudo
desenvolvido em conjunto pela Universidade Harvard e pelo Centro para o
Desenvolvimento Global. Segundo o estudo, a riqueza de um país como um
todo interfere no seu desempenho em educação de matemática e ciências
tanto quanto a renda da família do estudante. Em outras palavras: quanto
mais gente estuda ciências e matemática, mais o país fica rico. E,
quanto mais o país fica rico, mais gente estuda ciências e matemática. O
círculo é virtuoso.
O
Brasil é citado no estudo como um exemplo contrário. Aqui, a
desigualdade de renda faz com que a ponta superior da sociedade consiga
colocar seus filhos em boas instituições, enquanto a grande maioria tem
um ensino precário, incapaz de gerar futuras riquezas. Num país como a
Coreia do Sul, as distâncias são pequenas nos dois sentidos. Os mais
ricos tiram melhores notas em matemática, e não há tanta diferença entre
os padrões de renda nem nas notas obtidas. No Brasil, essa distância é
muito maior. Os mais ricos ganham vinte vezes mais que os mais pobres, e
a diferença entre notas mais altas e mais baixas é equivalente. Entre
os países estudados mais a fundo, o Brasil é o que tem a pior taxa de
desequilíbrio entre renda doméstica e notas de matemática.
Um
país que despreza a matemática não coloca os pés no chão. Um povo que
não sabe usar uma planilha está condenado a aceitar os fatos que afetam
sua sobrevivência e prosperidade sem saber como reagir. A matemática não
é só para os matemáticos, mas para cada um de nós.
Mesmo
quando estão ocultos, os números regem cada detalhe de nossa vida. A
residência onde você vive nasceu de cálculos estruturais antes que um
único tijolo fosse comprado. Uma rápida passada pelo supermercado é uma
sucessão de contas mentais de custo/benefício. Um jogo de futebol é um
conjunto de formas geométricas em constante mutação, definidas por 22
jogadores e uma bola. O seu dia está dividido em frações de tempo. A
música que você ouve é um conjunto de divisões e subdivisões de
compassos de tempo e de frequências de som. Estas linhas que você está
lendo nasceram de uma combinação de zeros e 1s num processador digital
de texto.
Qual
a real importância que o Brasil dá à matemática? Vamos procurar a
resposta usando os critérios da Quacquarelli Symonds, a QS, organização
internacional com sede em Londres e escritórios em oito países,
especializada em avaliações de educação. Todo ano a QS publica seu
ranking das melhores escolas do mundo em cada especialidade.
O
primeiro lugar do ranking 2021 de escolas de matemática pertence a uma
célebre instituição norte-americana: o MIT, ou Massachusetts Institute
of Technology, com pontuação de 96,5. Dos dez primeiros colocados, seis
estão nos EUA. Outros três têm sede na Europa (Reino Unido e Suíça) e um
na Ásia (a Universidade Nacional de Singapura).
Vamos
pegar uma amostra mais ampla, a das 100 instituições mais bem avaliadas
no ensino da matemática. E temos este resultado de instituições por
país:
EUA 28
Reino Unido 11
Austrália, China 7
França 6
Alemanha, Canadá 5
Holanda, Rússia 4
Coréia do Sul, Japão 3
Cingap., Itália, Suiça 2
Arábia Saudita, Bélgica,
Brasil, Dinamarca, Israel,
Nova Zelândia, Suécia,
Taiwan 1
O
Brasil emplaca o único representante de toda a América Latina e África
nesse ranking. A Universidade de São Paulo está em 96º lugar, com nota
74,2. É um troféu para se orgulhar. Mas não esconde o fato de que somos
os menos ruins do Terceiro Mundo. Precisamos mais do que isso.
O
panorama fica ainda mais trágico na avaliação do Pisa (ou Programa
Internacional de Avaliação de Estudantes). O Pisa divide o conhecimento
de matemática em sete níveis. O nível mais alto é o 6. O nível 2 é
considerado o patamar mínimo para que o aluno possa “aplicar
conhecimentos básicos e resolver problemas simples”. No levantamento de
2018, apenas 0,1% dos estudantes brasileiros estavam no nível 6. E 68,1%
estavam não só abaixo do nível 2, o mais básico, como também abaixo do
nível 1. Estamos no subsolo.
Isso
valoriza ainda mais os seis adolescentes que, em setembro do ano
passado, colocaram o Brasil em décimo lugar (entre 105 países) na
Olimpíada Internacional de Matemática, com uma medalha de ouro e cinco
de prata. Mas o país não pode melhorar se continuar dependendo de heróis
eventuais como esses seis jovens e alguns matemáticos de primeira
linha. Continuamos prisioneiros de uma visão torta que enxerga as
ciências exatas como “desumanizadoras”. O lobby por mais faculdades de
filosofia é poderoso.
“Um
dos mais belos aspectos da matemática é sua relação com a alma e a
mente humanas”, escreveu o matemático e economista brasileiro Rodrigo
Peñaloza em 2017. “É lamentável que a matemática seja vista com tanta
rejeição por tantos. Se você ama as humanas e não gosta de matemática, a
razão foi provavelmente a maneira como seus professores ensinaram a
matéria na escola. […] Eu não apenas culpo os professores de matemática,
eu também responsabilizo os professores de humanas por não saberem como
conectar as ciências humanas com o pensamento matemático.”
Existe
um senso de beleza em equações, na lógica com a qual elas se
estabelecem, na maneira como produzem resultados que se conectam, como
as rimas de uma poesia. Obras de arte que nos hipnotizam pela harmonia,
como a Monalisa de Leonardo da Vinci, seguem uma equação matemática
conhecida como a “proporção de ouro” — ou “(1 + √5) / 2 ≅ 1,618”.
Nem
é preciso decifrar essa charada. Basta juntar na nossa cabeça que
“humanas” e “exatas” não estão em guerra. Pelo contrário, são (ou
deveriam ser) modos complementares de ver o mundo. A australiana
Catherine Menon vive na prática essa ligação. Ela é ao mesmo tempo ph.D.
em Matemática Pura e mestre em Escrita Criativa.
“A
matemática e a escrita vêm do mesmo espaço criativo”, declarou
Catherine ao jornal The Guardian. “Eu sinto que a ‘sensação’ de
construir uma equação é a mesma sensação de construir uma sentença,
parágrafo ou trama dramática. A matemática pura é muito abstrata: é uma
linguagem mais de ideias do que de números. O valor de uma equação vai
se basear normalmente em quão elegante e interessante seja, exatamente
como o valor de uma escrita.”
O
Brasil precisa de matemática, como um paciente desidratado precisa de
soro — se quiser resolver boa parte dos seus problemas e acordar do
berço esplêndido de uma vez. A matemática gera soluções práticas. Sua
objetividade é uma grande inimiga da ilusão populista.
Alguns
dos maiores problemas do Brasil de hoje são matemáticos. O tamanho do
Estado, a distribuição do orçamento, os gastos da burocracia, o controle
da inflação, a corrupção, a carga tributária, as vítimas da pandemia —
tudo isso são números, gráficos, cálculos e projeções. Quem não entende
minimamente esses conceitos não consegue compreender a complexidade da
realidade em que vive.
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