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Verbete escrito pelo professor e filósofo Anthony Quinton para o Oxford Campanion to Philosophy, organizado e editado por Ted Honderich, aqui traduzido por Crítica na Rede:
A
maioria das definições de filosofia são razoavelmente controversas, em
particular quando são interessantes ou profundas. Esta situação deve-se
em parte ao facto de a filosofia ter alterado de forma radical o seu
âmbito no decurso da história e de muitas das investigações nela
originalmente incluídas terem sido mais tarde excluídas. Uma definição
minimalista mas satisfatória é que a filosofia consiste em pensar sobre o
pensamento. Isto permite-nos sublinhar o carácter de segunda ordem da
disciplina e tratá-la como uma reflexão sobre géneros particulares de
pensamento — formação de crenças e de conhecimento — sobre o mundo ou
porções significativas do mundo.
Uma
definição mais pormenorizada, mas ainda assim incontroversa e
abrangente, é que a filosofia consiste em pensar racional e
criticamente, de modo mais ou menos sistemático, sobre a natureza do
mundo em geral (metafísica ou teoria da existência), da justificação de
crenças (epistemologia ou teoria do conhecimento), e da conduta de vida a
adoptar (ética ou teoria dos valores). Cada um dos três elementos
listados possui uma contraparte não filosófica, da qual se distingue
pelo seu modo de proceder explicitamente racional e crítico e pela sua
natureza sistemática. Todos nós temos uma concepção geral sobre a
natureza do mundo em que vivemos e do lugar que nele ocupamos. A
metafísica interroga-se sobre os pressupostos que sustentam
acriticamente estas concepções recorrendo a um conjunto organizado de
crenças. Ocasionalmente, todos duvidamos e questionamos crenças, não só
as nossas como as alheias, e fazemo-lo com mais ou menos sucesso sem
possuirmos uma teoria acerca do que fazemos. O objectivo da
epistemologia consiste em explicitar as regras que determinam a correcta
formação de crenças e argumentar a seu favor. Também orientamos as
acções com vista a objectivos e fins que valorizamos. A ética, ou
filosofia moral, no sentido mais inclusivo, pretende articular, de uma
forma racional e sistemática, as regras ou princípios subjacentes. (Na
prática, a ética tem-se restringido aos aspectos morais da conduta e, em
geral, tem tendência para ignorar a maioria das acções que praticamos
em virtude de critérios de eficiência ou prudência, como se fossem
demasiado básicos para justificarem um exame racional.)
As
três partes principais da filosofia estão relacionadas de várias
formas. Para que possamos orientar racionalmente a conduta é necessária
uma concepção global do mundo onde esta se desenvolve e de nós próprios
enquanto agentes nele integrados. A metafísica pressupõe a epistemologia
para autenticar as formas especiais de raciocínio a que atribui
confiança e também para assegurar a solidez das assunções que, em
algumas variantes, é levada a fazer acerca da natureza das coisas, por
exemplo, que nada provém do nada, que no mundo e na experiência que dele
possuímos existe recorrência ou que a mente não se encontra no espaço.
Os
primeiros filósofos reconhecidos, os pré-socráticos, eram sobretudo
metafísicos preocupados em estabelecer as características essenciais da
natureza no seu todo, como na críptica afirmação de Tales: “Tudo é
água”. Parménides foi o primeiro metafísico cujos argumentos chegaram
até nós. Baseado nas razões fornecidas pelos famosos paradoxos de Zenão,
concluiu que o mundo estava privado de movimento e ocupava a totalidade
do espaço. O cepticismo dos sofistas desafiou as assunções da moral
convencional, facto que esteve na origem da ética, notavelmente com
Sócrates. Platão e Aristóteles escreveram penetrantemente sobre
metafísica e ética; Platão sobre o conhecimento; Aristóteles sobre
lógica (dedutiva), a técnica mais rigorosa para justificar crenças;
estabeleceu as suas regras de uma forma sistemática e manteve intacta a
sua autoridade durante mais de 2000 anos.
Na
Idade Média, ao serviço do cristianismo, a filosofia apoiou-se
primeiramente na metafísica de Platão, e em seguida na de Aristóteles,
com o propósito de defender crenças religiosas. No Renascimento, a
liberdade de especulação metafísica ressurgiu; na sua fase tardia, com
Bacon e, de um modo mais influente com Descartes e Locke, dirigiu-se
para a epistemologia com o objectivo de ratificar e, tanto quanto
possível, acomodar a religião e os novos desenvolvimentos das ciências
naturais. Hume argumentou contra a possibilidade da sua
compatibilização, bem como da metafísica em geral. Na Europa
continental, Espinosa e Leibniz praticaram uma metafísica dedutiva ao
estilo de Parménides com resultados comparativamente surpreendentes.
Kant, formado nesta tradição, afastou-se dela na sequência da leitura de
Hume, rejeitou a metafísica nas suas variantes tradicionais e atribuiu a
ordem do mundo publicamente observável ao trabalho formativo da mente
na experiência. Os seus herdeiros alemães, tirando partido de algumas
inconsistências de Kant, retomaram a metafísica nos moldes pomposos
tradicionais. Em Inglaterra, o empirismo de Locke e Hume prevaleceu, e a
epistemologia manter-se-ia como disciplina filosófica central até
meados deste século.
A
metafísica dispõe de meios diversos para lidar com um tópico que,
apesar de já formulado, de modo algum é claro: a natureza geral do
mundo. O primeiro consiste em recorrer a demonstrações puramente
racionais. Alcançamos, então, conclusões admiráveis baseadas no facto de
a sua negação implicar uma autocontradição. Um exemplo notável é a
demonstração ontológica da existência de Deus. Deus é definido como
perfeito. Um deus que existe é mais perfeito que qualquer outra coisa
que não exista. Portanto, Deus existe necessariamente. Adoptando um
estilo semelhante, Leibniz demonstrou que a realidade, na sua
constituição última, é mental; Bradley descobriu contradições escondidas
no repertório de noções fundamentais do senso comum e da ciência
(relação, espaço, tempo, pluralidade, o eu, e por aí adiante), e
concluiu que a realidade é uma entidade única, indivisível no tecido da
experiência, uma unidade espiritual que absorve a personalidade
individual e a natureza.
O
segundo procedimento metafísico consiste em partir da “aparência” (da
superfície perceptível do mundo), e derivar conclusões a respeito da
realidade última que transcende a aparência. Os argumentos que defendem a
existência de Deus com base na necessidade de uma primeira causa ou nas
marcas de um desígnio inteligente que descobrimos no mundo da
percepção, são exemplos típicos neste domínio. Mais importante ainda
para a história da filosofia é a teoria das Formas ou universais
objectivos de Platão, segundo a qual estes se encontram não no espaço e
no tempo mas num mundo próprio, que Platão utiliza para explicar o
reconhecimento de propriedades recorrentes no fluxo contínuo das
aparências e ainda para servirem de objectos das asserções eternamente
verdadeiras do conhecimento matemático.
Hume
atacou a metafísica demonstrativa em termos epistemológicos. Defendeu
que os argumentos puramente racionais apenas permitem estabelecer as
verdades formais da lógica e da matemática. A negação de um enunciado
autocontraditório não é uma verdade factual substancial, mas algo
meramente convencional que reflecte o modo como usamos as palavras. Kant
combateu a metafísica transcendente, argumentando que as noções de
substância e causa apenas produzem conhecimento se forem aplicadas à
matéria bruta fornecida pelos sentidos, e não se forem utilizadas para
lá dos limites da experiência. Os positivistas lógicos atacaram a
metafísica transcendente de forma ainda mais veemente, baseados no
princípio de verificabilidade, defendendo que as suas afirmações não têm
sentido visto não serem verificáveis na experiência.
Kant
opôs-se também a um tipo de metafísica caracterizado não tanto por ir
além do mundo das aparências como pelas extrapolações em direcção ao
infinito que construiu a partir delas, por exemplo, as teses de que o
mundo é infinitamente grande, que é eterno, composto por partes
infinitesimais, e por aí adiante. Kant formou pares de asserções deste
género com as suas negações e argumentou, num aparente desafio à lógica,
que ambos os membros de cada par são autocontraditórios. Este tipo de
metafísica, que se ocupa do quantitativamente inacessível (e não com o
qualitativamente inacessível), está aberta às mesmas objecções.
As
teorias sobre o que foi designado por “categorias do ser” encontram-se
entre as sobreviventes do longo combate que opôs a metafísica aos seus
detractores. O dualismo psicofísico, argutamente tratado em Descartes,
mas já defendido antes e também depois, é talvez o caso mais familiar.
Esta forma de dualismo tem raízes epistemológicas. Uma é a distinção
entre dois tipos de experiência: as sensações e a introspecção. Outra é a
alegada infalibilidade das crenças acerca de conteúdos mentais em
contraste com a falibilidade das crenças sobre o mundo material
objectivo. Os materialistas, como Hobbes, argumentaram que a actividade
mental é corpórea, ainda que apenas numa pequena escala. Os idealistas
como Berkeley (e, de certo modo, os fenomenistas como Mill) defenderam
que os corpos materiais são complexos de sensações, quer efectivas, quer
existentes na mente de Deus ou hipotéticas.
O
domínio platónico das ideias alberga um alegada terceira categoria, a
das entidades abstractas, por exemplo, propriedades, relações, classes,
números e proposições. Os valores foram aí incluídos de maneira a
providenciar algo acerca do qual os juízos de valor sejam verdadeiros.
O
monismo pode ser nem mental nem físico, mas neutral. Russell, William
James, Mach e, até certo ponto, Hume, pensavam que os corpos e as mentes
eram formados pelo mesmo tipo de sensações, possíveis e actuais, tal
como as imagens que as copiam. Estas sensações combinam-se para
constituir os corpos; as sensações e as imagens constituem as mentes.
Além
dos tipos de metafísica consideradas até ao momento, cujo objectivo é
construir uma concepção do mundo como um todo, há também uma metafísica
de âmbito mais restrito que procura examinar a detalhada estrutura do
mundo: os indivíduos, as suas propriedades, as relações que mantêm entre
si, os acontecimentos que preenchem a sua história — a mudança,
portanto — e também os acontecimentos que constituem as partes mais
desinteressantes e as mais férteis dessa história; o facto de os
indivíduos possuírem propriedades, e por aí adiante. A doutrina de
Aristóteles transformou estes tópicos num tema de investigação
organizada (ainda que as suas categorias fossem bastante diferentes das
mencionadas atrás). Em certa medida, foram absorvidos pela lógica
filosófica uma vez que esses aspectos mais subtis da estrutura do mundo
correspondem às características formais da linguagem (do pensamento e do
discurso), assumidas como distinções básicas da lógica formal.
A
questão fundamental da epistemologia, mas talvez não a mais
interessante, é a definição de conhecimento. Platão colocou-a no Teeteto
e concluiu que o conhecimento é algo mais que crença verdadeira, ainda
que a inclua. A ideia de que a justificação constitui o elemento
remanescente enfrenta dificuldades sérias excepto, como muitos
sustentam, se a regressão ao infinito a que parece dar origem puder ser
evitada defendendo, por exemplo, que algumas crenças não são
justificadas por outras crenças, mas pela experiência. Muitos filósofos
consideram, no entanto, que este problema tem um interesse reduzido uma
vez que o próprio conhecimento tem um interesse reduzido. Tudo quanto
importa é a crença racional justificada. Contudo, foi também sugerido de
forma persuasiva que o elemento em falta na definição não deverá ser
acidental ou que deverá possuir como causa o facto que o torna
verdadeiro.
Quase
toda a epistemologia envolve duas distinções amplas: a primeira entre o
que Leibniz chamou “verdades da razão” e “verdades de facto”, a segunda
entre o que é conhecido directa ou imediatamente e o que é conhecido
por inferência. As verdades da razão são verdades necessárias que podem
ser descobertas a priori, isto é, sem a dependência dos sentidos e
apenas pelo pensamento. As verdades de facto são contingentes,
baseando-se a sua justificação na experiência. As duas distinções
sobrepõem-se. Algumas verdades da razão devem ser imediatamente
conhecidas para que as restantes possam ser inferidas. As primeiras são
consideradas axiomas ou princípios da lógica e da matemática. A
perspectiva convencional acerca de verdades de facto não imediatas
sustenta que estas são realmente inferidas, mas não com base na lógica
dedutiva. Neste caso é necessária a indução, um processo que consiste em
derivar generalizações irrestritas com base num número limitado de
instâncias. Peirce e, ainda com maior veemência, Popper, negaram ou
marginalizaram a indução. Deste ponto de vista, os enunciados gerais são
propostos como hipóteses dignas de serem investigadas e, em seguida,
examinam-se as consequências deles deduzidas; são rejeitados caso estas
se revelem falsas e preservados, com crescente confiança, quanto maior o
número de testes a que sobrevivam. Esta concepção está mais próxima da
prática científica que a teoria convencional da indução mas,
aparentemente, permite-lhe entrar ainda pela porta do fundo.
Leibniz
pensava que as verdades da razão decorrem do princípio de contradição;
no entanto, não avançou o suficiente para concluir, como Hume e a
maioria dos empiristas subsequentes, que por essa razão são analíticas,
no sentido de serem meramente verbais e de se limitarem a reiterar no
que afirmam algo já antes assumido. Kant considerou que o principal
problema da filosofia consistia em determinar se existem, e de que modo,
crenças em simultâneo sintéticas, com conteúdo substancial e a priori,
que o pensamento fosse, por si só, capaz de descobrir. Concluiu que
estas crenças existem: são as crenças da aritmética e da geometria, ou
os “pressupostos das ciências naturais”, que afirmam a existência de uma
quantidade permanente de matéria na natureza e que todos os
acontecimentos têm uma causa. Foi ainda mais longe e atribuiu a verdade
necessária destas crenças substanciais ao modo como a mente impõe a
ordem no caos da experiência a que está submetida. Mas não foram muitos
os que o seguiram. Mill sustentou que as verdades matemáticas são na
realidade empíricas; Herbert Spencer que as verdades necessárias não vão
além de crenças bem estabelecidas que herdamos dos nossos antepassados.
Recentemente, Quine defendeu que não existe uma diferença de género
entre verdades da razão e verdades de facto, mas apenas no grau de
determinação com que aceitamos abandoná-las perante dados
recalcitrantes.
A
distinção entre conhecimento directo e conhecimento por inferência foi
desafiada em diferentes momentos, incluindo na actualidade, por
filósofos que não encontraram saída para o labirinto das crenças. Os
defensores da teoria coerentista do conhecimento seguiram as pisadas dos
idealistas hegelianos e dos positivista vienenses (até Tarski os ter
libertado do labirinto). Parte das razões que sustentam esta distinção
provém de um antigo princípio segundo o qual a nossa percepção dos
objectos materiais externos não é directa devido à sua característica
falibilidade, como revela o apreço que por vezes exibimos por algumas
ilusões, devendo, portanto, ser inferida com base no conhecimento por
hipótese infalível que possuímos das nossas impressões sensoriais. Mas,
serão estas inferências válidas ou, no mínimo, defensáveis? Caso o não
sejam, deveríamos suspender cepticamente as nossas crenças a respeito do
mundo exterior? E, em caso de resposta afirmativa, qual o género de
inferências que temos em vista: para a mesma categoria de coisas,
impressões possíveis e actuais, ou para algo diferente, que transcende a
experiência, nomeadamente a matéria? O padrão associado a este
problema, tal como as várias modalidades de soluções possíveis que lhe
correspondem, foram considerados recorrentes num grande número de casos.
Por exemplo, os indícios que possuímos para sustentar crenças sobre o
passado encontram-se no presente, em vestígios e memórias; mas, de que
modo ultrapassar o abismo que dele nos separa, se é que isto é possível?
As crenças acerca das outras mentes são baseadas no comportamento dos
corpos que observamos e naquilo que nos dizem. Uma solução até agora não
mencionada consiste em negar que estejamos confinados ao tipo de
indícios especificados. Isto parece bastante atraente no caso da
percepção uma vez que implica que percepcionamos os objectos materiais
directamente, ainda que não de modo infalível, e no caso das crenças
sobre o passado, que as nossas memórias constituem realmente essas
crenças, não sendo, portanto, apenas um indício em que se sustentam; no
caso das mentes alheias, contudo, algum tipo de telepatia seria
indispensável para o efeito. A importância central destes três géneros
de crenças dificilmente exige ser sublinhado, não apenas para a ciência,
a história ou a psicologia, como para a nossa vida cognitiva
considerada como um todo.
Uma
característica curiosa acerca da epistemologia é a reduzida atenção
prestada à fonte da grande maioria das nossas crenças, nomeadamente, o
testemunho alheio: pais, professores, manuais didácticos, enciclopédias.
Há aqui um problema interessante. Se dependemos deles quanto aos
princípios que utilizamos para testar o carácter fidedigno do que nos
dizem, como poderemos alguma vez alcançar uma verdadeira autonomia
cognitiva e intelectual?
A
lógica, que, como foi dito atrás, constitui o mais poderoso e coercivo
instrumento de justificação de crenças, nunca foi considerada parte da
epistemologia. A organização sistemática de que foi alvo teve lugar
ainda antes de a epistemologia ser identificada como uma disciplina
filosófica por direito próprio. Começou, e em parte permaneceu, como um
corpo ordenado de regras de inferência aplicáveis a todos os géneros de
pensamento e de discurso. Desde Aristóteles até meados do século XIX
manteve-se em larga medida adormecida. Desde então, sofreu um amplo
desenvolvimento e incluiu a lógica aristotélica com algumas alterações,
tornando-se numa certa perspectiva um ramo da matemática. Os seus
elementos foram desde sempre considerados um preâmbulo ao estudo da
filosofia, algo que ainda hoje se verifica. Não constitui exactamente
uma parte da filosofia, ainda que a reflexão crítica sobre as suas
assunções, designada por lógica filosófica, o seja de modo
inquestionável.
Há
um número bastante vasto e, de facto, indeterminado, de disciplinas
filosóficas especializadas; filosofias da mente, linguagem, matemática,
das ciências (da natureza e sociais), da história, religião, direito,
educação, e até do desporto e do sexo. Sempre que um campo de
investigação particular, como é caso da ciência e da história, tem em
vista o conhecimento, a filosofia correspondente é de natureza
epistemológica. A metafísica da natureza é uma ideia destinada a deixar
de fora os cientistas, ainda que o problema da realidade de certas
entidades teóricas como as partículas elementares possa ser incluído
nela. A metafísica ou filosofia especulativa da história, que se reduz à
elaboração de esquemas e padrões gerais (cíclicos ou progressivos) da
totalidade dos acontecimentos históricos é considerada com suspeição. O
fundamento racional para esta suspeição é um tópico que pertence à
crítica e epistemologia da história.
A
filosofia da mente, tal como actualmente é praticada, teve início com o
problema epistemológico que consiste em determinar como é possível
saber o que se passa nas mentes alheias. Transformou-se, contudo, em
metafísica. O velho problema da identidade pessoal pode ser colocado de
duas maneiras: “Como sabemos que uma pessoa actualmente existente é a
mesma pessoa que existiu num momento anterior?” ou “O que significa para
uma pessoa actualmente existente ser idêntica à pessoa que existiu
antes?”. Se o problema da identidade pessoal não é simplesmente
irresolúvel, ambas as perguntas devem receber a mesma resposta.
Considera-se
frequentemente que a filosofia da ciência envolve tópicos importantes
para o pensamento pré-científico. Um deles refere-se à natureza da
causalidade e ao modo de distinguir uma conexão entre acontecimentos
determinada por uma lei de uma simples concomitância acidental. Outro
tópico é o da justificação da indução e da interpretação de
probabilidades, ou géneros de probabilidade, que a indução supostamente
confere às suas conclusões. As relações causais, as crenças de âmbito
geral e aquelas que consideramos não serem meramente prováveis, são
características indispensáveis do pensamento típico do senso comum.
A
terceira e última grande subdivisão da filosofia é a ética, ou teoria
dos valores; o seu objectivo consiste no exame crítico e racional do
pensamento acerca do modo como nos conduzimos na vida. A acção, em
contraste com o comportamento, é entendida como o produto de uma
escolha; a comparação entre diversas alternativas é empreendida à luz do
seu carácter desejável, das suas consequências ou da possibilidade ou
facilidade de as efectuar. Na acção encontram-se, assim, envolvidos dois
tipos de crenças: crenças factuais acerca do que está em causa ao agir
de determinada maneira e quais os seus resultados, e crenças a respeito
do valor desses resultados ou ausência de valor do que é necessário
fazer para os assegurar.
De
facto, na ética posterior aos gregos, o tipo de acção que monopolizou a
atenção foi a acção moral estritamente concebida. Eis, provavelmente,
um resultado do entusiasmo religioso. O cristianismo iniciou-se como um
religião milenarista, indiferente aos assuntos mundanos e preocupada com
a salvação, em parte porque estava convencido da falta de valor do
mundo e da carne mas, principalmente, devido à crença no fim do mundo.
Qualquer que seja a causa desta concepção estrita, ela provocou um
efeito de distorção. Em princípio, a ética deveria interessar-se pelos
diferentes géneros de conduta deliberada e reflectida: a conduta
prudencial e de interesse próprio com vista, respectivamente, à mínima
perda e ao ganho máximo para o agente, a conduta técnica eficiente, a
conduta económica, a conduta saudável, etc. O bem moral e a rectidão são
apenas tipos particulares de rectidão. A lógica e a epistemologia, na
medida em que se ocupam em distinguir o certo do errado no plano do
raciocínio, podem ser descritas, não por liberdade metafórica, como
éticas da inferência e da crença.
A
influência da religião na moral fez esta última ser considerada os
mandamentos de Deus à humanidade. Dado que esta situação conduziu a
problemas de autentificação e de interpretação, a voz de Deus
interiorizou-se, quer como uma espécie de sentido moral sob cuja
influência a qualidade moral das acções e o carácter do agente é
apreendido, quer como razão moral manifesta na apreensão da necessidade
auto-evidente dos princípios morais. São duas as assunções que podemos
questionar a propósito destes tipos de intuicionismo. A primeira é a de
que as características morais são sui generis, sem relação lógica com as
características naturais ou percepcionáveis dos agentes e das suas
acções. A segunda é a de que as acções, ou certos tipos de acção, estão
intrinsecamente certas ou erradas, quaisquer que sejam as suas
consequências, reais ou esperadas. Estas características, se realmente
distintivas da moralidade, torná-la-iam diferente dos restantes modos de
acção.
Os
utilitaristas rejeitam ambas as assunções. Derivam a rectidão ou a não
rectidão das acções da bondade ou malignidade das suas consequências e,
de forma plausível, das consequências que é razoável para o agente
esperar, de preferência às consequências de facto resultantes. Em
segundo lugar, consideram que o bem coincide com a felicidade e o prazer
ou, mais exactamente, que reside na felicidade geral, na felicidade do
maior número de indivíduos. Formulada negativamente, a doutrina
utilitarista coincide com o sentimento moral irreflectido: um acção é má
se implica o prejuízo de outros e é permissível caso esse prejuízo não
se verifique; moralmente, uma acção merece ser creditada se alivia ou
previne o sofrimento alheio.
Apesar
das diferenças que os separam, intuicionistas e utilitaristas estão de
acordo quanto à existência de verdades morais objectivas. A magnitude e
intensidade das disputas morais fortalece o cepticismo, segundo o qual
os juízos morais são apenas manifestações dos nossos gostos e repulsas e
as disputas morais o resultado da colisão de sentimentos que não podem
ser resolvidas através de meios racionais. A questão fundamental em
ética, concebida simplesmente como filosofia moral, é a de saber se as
nossas convicções morais possuem validade objectiva e, em caso
afirmativo, de que tipo. Serão, como pretendem os intuicionistas,
convicções de um tipo especial, ou mantêm ligações lógicas com o
conjunto das nossas crenças? Será que as propriedades morais são
intrínsecas à acção ou apenas dependem das suas consequências? Em que
consiste o bem e a virtude moral? Será uma disposição para praticar
acções rectas ou, de forma mais estrita, a disposição para praticar
acções rectas porque são rectas? Em que condições um agente merece ser
censurado (ou elogiado) em consequência de acções praticadas? Será que a
responsabilidade pressupõe a liberdade da vontade, no sentido em que as
que as escolhas livres não são causalmente influenciadas?
Outras
duas formas estabelecidas da teoria dos valores são a filosofia
política e a estética. A filosofia política é uma extensão da ética para
o domínio das instituições sociais e, tal como a ética em geral, parece
excessivamente moralizada. O problema fundamental da filosofia política
é a base da obrigação dos cidadãos em obedecer ao estado e às suas leis
e, visto do outro ângulo, o do estado em compelir os cidadãos a
obedecer-lhe. (Seria interessante investigar em que consiste o que torna
mais razoável para os cidadãos obedecerem.) Será que a obrigação de
obedecer depende do conteúdo das leis ou da forma como o estado é
formado e mantido? Será que os seres humanos possuem direitos que
limitam a esfera de actuação do estado?
O
valor estético é reconhecido como independente dos valores morais,
apesar da ocorrência de elementos morais na crítica — por vezes
relevantemente, outras de forma intrometida. A palavra “beleza” não o
indica satisfatoriamente. Outras línguas conseguem fazer melhor. “Beau” e
“schön” significam a propriedade dos objectos artísticos ou naturais
que merecem ser contemplados por direito próprio, independentemente de
considerações a respeito da sua eventual utilidade ou da informação que
podemos obter pelo facto de os estudarmos.
As
partes estabelecidas da filosofia foram já mencionadas, mas não existem
limites evidentes para o seu campo de aplicação. Sempre que nos
deparamos com uma ideia cujo significado é de algum modo indeterminado
ou controverso, se os enunciados onde ocorre parecem dificilmente
sustentáveis ou mantêm com outras crenças comparativamente mais claras
relações lógicas obscuras, deparamo-nos ainda com uma oportunidade para
reflectir filosoficamente.
Bibliografia
A. J. Ayer, The Central Questions of Philosophy (Londres, 1973)
Keith Campbell, Metaphysics (Encino, Calif., 1976)
Anthony O'Hear, What Philosophy Is (Harmondsworth, 1985)
W. V. Quine e U. J. Ullian, The Web of Belief (Nova Iorque, 1970)
Bertrand Russell, Os Problemas da Filosofia (Arménio Amado, várias edições)
* Oxford Companion to Philosophy, ed. Ted Honderich (Oxford University Press, 1995), pp. 666-670.
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