Urge buscar medidas que possam salvar vidas enquanto transcorre o trabalho da CPI, escreve Fernando Gabeira no Estadão:
Pode
ser que a CPI da pandemia descubra fatos novos, que revolucionem nossa
visão do problema. Caso isso não aconteça, e é provável que não
aconteça, já é possível, pelo menos, escrever o argumento desse filme,
abstraindo os lances e peripécias de um roteiro.
Na
base de tudo está a negação da pandemia por Bolsonaro. Esse conceito de
negação foi lançado por Freud em 1923. E numa carta de 1937, escrita
para um colega, ele cita o rei Boabdil, que ao receber a notícia de que a
capital de seu reino, Alhambra, estava sitiada mandou queimar a carta e
decapitar o mensageiro.
Bolsonaro
não poderia aceitar a pandemia com os problemas econômicos que trazia
e, sobretudo, a ameaça de sua reeleição. De certa forma, ele queimou a
carta enviada pelos cientistas e decapitou os ministros que insistiam no
tema.
Sua
tese era de que a economia precisava seguir seu curso. Para
fundamentá-la era preciso buscar algo aparentemente científico. A tese
da imunização de rebanho foi a tábua de salvação. Todos se contaminariam
de um modo ou de outro, pensava Bolsonaro, então que se contaminassem
logo para voltarmos à normalidade.
Ele
abstraiu o número de mortes implícito nessa escolha. Na verdade, era
preciso trazer também a esperança de cura, uma espécie de bala de prata
contra a covid-19: a hidroxicloroquina. O remédio era uma resposta
simples para um problema complexo. Todos se contaminam, todos se salvam
pela hidroxicloroquina
Essa
negação, que teve o momento máximo quando classificou a covid como
apenas uma “gripezinha”, precisava ir adiante na negação. Se a covid-19
não tinha importância, por que gastar fortunas com vacinas? Numa de suas
declarações mais claras sobre o tema, Bolsonaro disse preferir gastar
dinheiro com remédio a comprar vacinas.
Mais
tarde voltou ao tema, criticando a “vacina chinesa de Doria”, a
Coronavac, e terminando por lançar suspeitas também sobre as vacinas que
usam a técnica de mensageiro RNA, no caso da Pfizer: se quiser virar
jacaré, ou ver mulher de barba ou homem falando fino, tome a vacina.
Ao
longo desse tempo, o número de mortos aumentava e Bolsonaro mantinha
sua frieza: não sou coveiro. Era algo previsível em sua tática.
Daí
o desencontro entre seu comportamento e o que esperava a imprensa. Por
que evitar aglomerações, se todos vão mesmo se contaminar? Por que usar
essas opressivas máscaras? Se vamos chegar a uma situação de
normalidade, é melhor todos se contaminarem rapidamente.
Olhando
em torno, no universo particular de seu Palácio do Planalto, a teoria
da contaminação de rebanho ia muito bem: 460 funcionários se
contaminaram até abril.
A
história pode ser contada assim, até mesmo no embate entre Bolsonaro e
governadores. Ele quer a volta de todos ao trabalho e está disposto a
fazer tudo para conquistar “essa liberdade”.
São
duas concepções em jogo. Uma quer que as pessoas se vacinem, não se
aglomerem, usem máscaras e lavem as mãos. A de Bolsonaro é a volta ao
trabalho, o fluxo pleno da economia.
Quando
for concluído o relatório da CPI, é possível fazer como se fez nos
Estados Unidos: convidar um grupo de sanitaristas para examinar uma por
uma essas decisões, ou mesmo hesitações. Aqui, como lá, também seria
possível os especialistas calcularem o número de mortes que poderiam ter
sido evitadas com as escolhas corretas.
Portanto,
um minucioso trabalho de coleta de dados da CPI e um relatório que
articule esses dados ainda serão insuficientes. Será necessário
quantificar as suas consequências.
Nesse
momento, Bolsonaro pelo menos terá uma defesa. Não têm razão aqueles
que o acusam por todas as mortes pela covid-19 no Brasil. Ele teria de
responder apenas por uma parte delas.
Quando
a CPI encerrar seu trabalho, o número total de mortos no Brasil,
segundo uma previsão da Universidade de Washington, será de 600 mil
pessoas. Quantas podem ser atribuídas a uma escolha política de rasgar a
carta e decapitar o mensageiro?
Ainda
faltam detalhes à história. Até que ponto a vacinação no Brasil seguirá
em ritmo lento? Até que ponto os atrasos na remessa de IFAs não são uma
represália chinesa às declarações de Bolsonaro?
A
Coronavac está no braço de 80% dos vacinados no Brasil. Bem ou mal,
dependemos dela para uma vacinação em massa, até o momento. Da Índia
dificilmente virá alguma coisa, pois a crise lá é profunda e o próprio
Instituto Serum está sob forte pressão. A Pfizer fechou um negócio de
1,5 bilhão de doses com a Europa. Vai estar sobrecarregada.
Nesse
contexto, provocar um rompimento com a China é apenas o lance final da
estratégia de imunização de rebanho, que, na verdade, poderia ser
chamada de extermínio de rebanho.
Isso
coloca a CPI diante de outra tarefa, mais imediata do que compilar os
dados e determinar responsabilidades. É preciso um núcleo de emergência,
a busca de algumas medidas que possam salvar vidas enquanto o trabalho
transcorre. E isso se vai dar no campo das vacinas, vencida, como parece
ter sido, a batalha da hidroxicloroquina.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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