A adoção de pronomes neutros para agradar a uma minoria empobrece a língua portuguesa e já contamina parte da iniciativa privada. Reportagem de Crystian Costa para a Oeste:
"Enfim, chegou a hora da encomendação e da partida. Sancha quis despedir-se do maride, e o desespero daquele lance consternou a todes. (…) Só Capitu, amparando a viúve, parecia vencer-se a si mesme. Consolava a outre, queria arrancá-le dali. A confusão era geral. No meio delu, Capitu olhou alguns instantes para o cadáver tão fixa, tão apaixonadamente fixa, que não admira lhe saltassem algumas lágrimas poucas e caladas… (…) Fiquei a ver as delu; Capitu enxugou-as depressa, olhando a furto para a gente que estava na sala. Redobrou de carícias para a amigue, e quis levá-le; (…) Momento houve em que os olhos de Capitu fitaram o defunte, quais os da viúve, sem o pranto nem palavras deste, mas grandes e abertos, como a vaga do mar lá fora, como se quisesse tragar também o nadadore da manhã.“
Sob
o argumento de que o idioma é machista e instrumento de perpetuação do
poder do “patriarcado”, coletivos que garantem representar determinados
públicos, como as feministas ou o antigo GLS — atual LGBTTTQQIAA —
exigem, entre outras reivindicações, a transformação radical da fala, a
chamada linguagem neutra. O primeiro parágrafo deste texto mostra como
ficaria, por exemplo, um trecho do livro Dom Casmurro, de Machado de
Assis, escrito com esta “neolinguagem”.
Monique
Wittig (1935-2003), pensadora que exerce influência sobre o movimento
de mulheres, defendia uma reforma das palavras de modo a torná-las
neutras de gênero. A fim de viabilizar sua ideia, Wittig pregava uma
investida em duas etapas: 1) utilizar uma palavra da linguagem comum,
mudando-lhe o conteúdo de forma sorrateira; 2) depois, a opinião pública
é bombardeada pelos meios de educação formais (a escola) e informais
(os meios de comunicação de massa). Assim, as pessoas acabariam
enxertando esses termos no próprio vocabulário, sem nada perceberem. O
modus operandi respingou nos estudos da pesquisadora Judith Butler, uma
das precursoras da ideologia de gênero, para quem o sexo não define quem
você é. Dentro dessa concepção, o sujeito pode assumir múltiplas
identidades.
Nessa
pseudolinguagem supostamente inclusiva, que alguns defendem que seja
adotada como norma-padrão, o uso de pronomes, adjetivos ou substantivos
“neutros” seria uma forma de acolher pessoas que não se identificam como
masculino ou feminino, chamadas de “não binárias”, no-gender ou “gênero
fluido”. Rosa Laura, autointitulada ativista “não bináris”, explica o
dialeto. Segundo ela, os pronomes pessoais “ela” e “ele” têm de ser
substituídos por “ile”. Já os pronomes demonstrativos “daquela” e
“daquele” mudariam para “daquile”. Dir-se-ia, então: “ile é muito
bonite”, em vez de “ela é muito bonita”; e “todes gostam de irmén e du
amigue delu”, em vez de “todos gostam da irmã e do amigo dele”.
Cíntia
Chagas, formada em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais e
professora de português, garante que a linguagem neutra nada tem de
inclusiva. Segundo a especialista, três grupos acabam sendo
marginalizados pelo “novo idioma”: 1) os disléxicos, que representam
parcela considerável dos estudantes; 2) os surdos, que fazem a
compreensão por meio dos sinais; 3) e os deficientes visuais, que
dependem de softwares para leitura no computador e, também, do Braille.
“O ‘dialeto neutro’ inviabiliza a comunicação desses grupos”, constatou
Chagas. “Trata-se de uma imposição injusta a essas pessoas, que já vivem
em um contexto de limitação, pois as obriga a se submeterem a uma
histeria coletiva”, acrescentou. “Em linhas gerais, o dialeto é
defendido por ditadores da linguagem.”
Esse
foi um dos argumentos do governo da França, que proibiu a linguagem
neutra. “Ao defenderem a reforma imediata e abrangente da grafia, os
promotores da escrita inclusiva violam os ritmos do desenvolvimento da
linguagem de acordo com uma injunção brutal, arbitrária e descoordenada,
que ignora a ecologia do verbo”, informou o Ministério da Educação
francês. “Essas armadilhas artificiais são inoportunas e atrapalham os
esforços dos alunos com deficiência mental admitidos no âmbito do
serviço público.”
Educação
Apesar
de absurda, a “novilíngua” já é realidade em escolas e universidades do
Brasil e do mundo. Em setembro de 2020, circularam nas redes sociais
imagens de uma aula sobre “pronomes neutros” em uma instituição
particular do Recife (PE). Nos slides projetados, é possível observar
neologismos como “obrigade”. O episódio foi registrado no Colégio Apoio e
ocorreu em uma turma do 8º ano.
Dois
meses depois, o Colégio Franco-Brasileiro, instituição particular na
zona sul do Rio de Janeiro, resolveu “imitar” a concorrência e divulgou
um comunicado aos pais informando que adotara estratégias para absorver a
linguagem neutra nos espaços formais e informais de aprendizagem.
“Renovando, diariamente, nosso compromisso com a promoção do respeito à
diversidade e da valorização das diferenças no ambiente escolar,
tornamos público o suporte institucional à adoção de estratégias
gramaticais de neutralização de gênero em nossos espaços formais e
informais de aprendizagem”, salientou a instituição.
A
coisa não foi diferente na Escola St. Patrick, de Passo Fundo (RS). Os
textos com comunicados sobre a volta às aulas e outras informações
similares foram enviados via WhatsApp e traziam a letra “x” em vez de
usar o feminino ou masculino. A escrita trouxe confusão e teve de ser
explicada pela direção do colégio privado, que atende crianças da
pré-escola ao ensino fundamental. Depois de receber uma série de
reclamações, a instituição de ensino teve de divulgar uma nota
explicando que “o uso dessa letra foi feito com a intenção de nos
comunicarmos e, aqui, nos referimos às mães e pais de modo geral”.
Nem
o ensino superior ficou blindado da prática. “Nesta segunda-feira, 3 de
maio de 2020, serão iniciadas as atividades acadêmicas dos estudantes
veteranes da UEMG Divinópolis. Sejam todes bem-vindes”, informou uma
mensagem de boas-vindas publicada nas redes sociais da Universidade do
Estado de Minas Gerais. O post ainda trazia uma imagem com os dizeres
“Bem-vindes, estudantes veteranes”. Nos comentários, os internautas
questionaram a atitude. Joanna Williams, em seu texto publicado nesta edição
da Revista Oeste, relatou o caso de uma estudante de direito do Reino
Unido que corre o risco de ser expulsa da universidade por ter dito, em
um seminário de estudos de gênero, que mulheres têm vagina. “As
universidades estão menos preocupadas com o ensino superior e mais com a
doutrinação dos alunos na ideologia progressista”, escreveu Williams.
Caio
Perozzo, especialista em linguagem e professor de literatura do
Instituto Borborema, associação cultural sediada em Campina Grande (PB),
acredita que as coisas chegaram a esse ponto devido a uma “crise da
inteligência”. De acordo com ele, a linguagem foi submetida à ideologia e
ao relativismo, que esvaziaram da fala e da escrita o propósito de
descrição da realidade como ela é. “Há pessoas que percebem algo, mas se
recusam a utilizar o termo adequado para representar aquilo porque
viola um conjunto verbal e ideológico que ela já tem. A ideologia deixa
sua inteligência deficiente”, observou o acadêmico.
Empresas
Além
da educação, a linguagem neutra contaminou a iniciativa privada. A rede
de fast-food Burger King fez uma postagem no Twitter em alusão ao Dia
Internacional da Luta contra a Homofobia e a Transfobia (17 de maio):
“Bandeiras de Todes”. No post, a empresa mostrou coroas e imagens que
representam diversas orientações sexuais. Depois de receber críticas, a
companhia tirou a publicação do ar. Contudo, emitiu uma nota, que dizia:
“Acreditamos que todas as pessoas são bem-vindas e fazemos questão de
reforçar a necessidade e a importância de assuntos como esse para a
sociedade. Consideramos e absorvemos todas as manifestações e
agradecemos por elas. Quanto mais conhecemos e discutimos, mais
aprendemos e mais informados estamos para lutar contra a LGBTfobia”.
Na
mesma linha do Burger King, o aplicativo iFood decidiu “cancelar” nomes
considerados preconceituosos. O novo termo de uso da plataforma vetou
pratos clássicos de restaurantes, como “batatas ao murro”, considerado
violento e machista. O mesmo ocorreu com “punheta de bacalhau”, iguaria
tradicional portuguesa, por ser fálica demais. Os chefs reclamaram, sem
sucesso.
Observa-se
com os casos descritos que o objetivo declarado de grupos como o que
promove a linguagem neutra é um só: purificar radicalmente o discurso de
qualquer palavra que possa ofender a alguém. Quando se abre a
possibilidade de qualquer um reinventar o idioma, reescrever obras
artísticas e policiar a cultura a pretexto de defender os direitos das
minorias, entra-se num terreno perigoso.
No
livro 1984, escrito pelo jornalista inglês George Orwell, o
protagonista Winston Smith trabalha no Ministério da Verdade. Contudo,
sua função é adulterar registros históricos com a finalidade de moldar o
passado à luz dos interesses de um presente tirânico que se impõe com a
ajuda da chamada Polícia das Ideias. A entidade decide o que você deve
pensar, escrever, falar e até como agir. Orwell descreve o drama dos
personagens, que envolve a opressão física e, sobretudo, a mental. No
desenrolar da história, é possível identificar uma das estratégias do
Estado totalitário representado na obra: a mudança na linguagem mediante
a manipulação do significado das palavras. Qualquer semelhança não pode
ser interpretada como mera coincidência.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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