Por uma conjunção de fatores que não sei explicar, a impressão é a de que vivemos uma época carente de pessoas dispostas a assumir riscos a fim de defender princípios. Via Gazeta, a crônica de Paulo Polzonoff Jr.:
O
programa Profissão Repórter mostrou fiscais municipais destruindo a
vida de pequenos comerciantes. Tudo por causa das medidas restritivas
impostas por diversas prefeituras. São cenas de embrulhar o estômago e
que remetem a regimes totalitários do passado. Pode apostar: por trás de
um Hitler ou Stalin havia sempre um fiscalzinho ou um guardinha
doidinho para exibir os caninos afiados do pequeno poder.
Para
minha surpresa, contudo, a comoção diante das imagens nauseabundas se
restringiram a meia dúzia de tuiteiros mais ou menos desocupados. Para a
maioria das pessoas, aquelas eram cenas absolutamente normais de
funcionários públicos exercendo suas funções em nome da ciência e do
bem-estar coletivo.
Uma
coisa leva a outra e, num primeiro momento, me lembrei de Ítalo
Calvino. “Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a
maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte dele até o
ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e
aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do
inferno, não é inferno, e abrir espaço, fazê-lo durar”, escreveu.
Será que estamos vivendo o inferno a ponto de deixar de percebê-lo?
Agora eu era herói
Depois
me lembrei daquele filme cheio de tesouros que é “Uma Vida Oculta”, de
Terrence Malick. Numa das cenas mais interessantes, dois homens
conversam numa capela. Se me lembro bem, um deles é um restaurador. Mas,
se não for, não tem importância. O importante é o conteúdo do diálogo
que, em linhas gerais, diz que a maioria das pessoas gosta de acreditar
que, se vivesse no tempo de Jesus, jamais teria sido mais um na multidão
a clamar pela soltura de Barrabás.
O
nazismo de que é vítima o protagonista do filme, Franz Jägerstätter,
nos oferece uma versão atualizada desse dilema. Todo mundo gosta de
pensar que, se vivesse na Alemanha da década de 1930, se oporia a Hitler
e suas ideias verdadeiramente genocidas. Há quem goste de se imaginar
herói, escondendo judeus no sótão de casa ou participando de algum
esforço de resistência contra a SS.
Ou,
para usar um exemplo ainda mais atual e local, não são poucos os da
minha geração que sentem a neymariana “saudade do que não viveu” ao
evocar a guerrilha tupiniquim contra a Ditadura Militar. Eles imaginam a
vida clandestina e revolucionária como se fosse um videogame
inconsequente e como se as torturas fossem apenas histórias da
carochinha para assustar pequenos-burgueses alienados.
Mas
a verdade é que a maioria das pessoas, se não apoiava explicitamente o
hitlerismo, ficou em silêncio e obedeceu. Por medo, certamente, mas
também por não querer se importunar com “essa coisa de política” - que é
o estado natural do ser humano, aliás. Não se trata de uma falha de
caráter e erra quem se apressa em condenar a inação. Procurando bem, é
possível até encontrar alguma dignidade nela. Quem não se calaria para
proteger a própria família que atire a primeira pedra.
Também
a maioria continuou vivendo a vida pequena depois do Golpe de 1964. Meu
pai, por exemplo, trabalhava de garçom no Exército. Minha mãe vendia
sapatos em Altônia - uma cidadezinha perdida no interior do Paraná.
Quando adolescente, meio zonzo de hormônios e umas revoluçõezices,
perguntei a eles como era possível que não fizessem parte da luta
armada. Que não fossem hippies. Que não lutassem por democracia, um
mundo melhor e a realização de todos os clichês da esquerda.
Riscos
É
sempre assim e, aqui, cabe uma autocrítica: nosso heroísmo é sempre
pretérito e nossa aparente covardia, muito presente. Como sabemos que é
impossível pegar um Delorean e voltar à época do Terceiro Reich,
estufamos o peito para dizer que mataríamos Hitler assim que ele
começasse a cultivar aquele bigodinho grotesco. Quando, na realidade, é
bem provável que obedecêssemos como hoje obedecemos, em nome de uma
ilusória segurança sanitária, a governadores e prefeitos que tomam
decisões ilógicas, baseadas na estúpida ciência do achismo.
O
que pouca gente que clama por heróis contemporâneos contra o lockdown, a
“ditadura do Judiciário”, o necrobolsonarismo e outros moinhos de vento
se dá conta é que o ato heroico requer sacrifício e, por consequência,
sofrimento. Muito sofrimento. Qualquer espectador de "Star Wars" (que,
por extensão, é um leitor de Joseph Campbell) sabe que o heroísmo é
sempre consequência de um risco muito, muito, muito alto. A questão é:
você está disposto a pagar o preço para bancar o herói?
Por
uma conjunção de fatores que não sei explicar, a impressão é a de que
vivemos uma época carente de pessoas dispostas a assumir riscos a fim de
defender princípios. Eu mesmo não sou uma delas. Pelo contrário. Até me
fustigo nas raras vezes em que ouso ir contra a corrente, argumentando o
que considero certo, a despeito dos olhares atravessados dos amigos. É
bem possível que você tampouco seja. E não há nada de mau nisso.
Ainda
que a coragem seja um pressuposto do heroísmo, a ausência dessa coragem
heroica não significa exatamente covardia. Significa apenas que,
rotineiramente, fazemos um cálculo, avaliando todas as informações de
que dispomos, e por meio de uma aritmética espiritual chegamos à
conclusão de que o melhor é o silêncio, a inação, a obediência – e a
esperança de que o Bem volte a triunfar sobre a diabólica arrogância que
nos cerca.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário