Especialista em coronavírus, médico e pesquisador da USP fala das novas variantes do Sars-CoV-2 e do risco que podem representar para a eficácia de algumas vacinas. Leia esclarecedora entrevista à revista Pesquisa Fapesp:
Eurico
de Arruda Neto é um estudioso dos vírus, seres situados na fronteira
entre o vivo e o não vivo que têm uma constituição tão enxuta a ponto de
dependerem totalmente de outros organismos vivos para se reproduzir e
evoluir. “São parasitas bioquímicos elegantíssimos”, afirma o
virologista, que se interessou por esses seres microscópicos,
constituídos basicamente de material genético envolto por uma camada de
proteínas, ainda durante a graduação, realizada na Universidade Federal
do Ceará (UFC).
No
último ano do curso médico, ele participou de um projeto de
pesquisadores norte-americanos que investigavam as infecções mais comuns
em uma favela de Fortaleza e descobriu a importância dos vírus
respiratórios para a saúde humana, que, até então, recebiam pouca
atenção. Estudou a ocorrência de HIV entre indígenas brasileiros durante
o mestrado na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e, no
doutorado, iniciado na mesma instituição e concluído na Universidade da
Virgínia, Estados Unidos, retomou a investigação dos vírus
respiratórios. Lá ele teve seu primeiro contato, em fins dos anos 1980,
com os coronavírus que naquela época já eram conhecidos por infectarem
seres humanos e causarem problemas respiratórios semelhantes a gripes ou
resfriados.
De
lá para cá, esses vírus, responsáveis por cerca de 10% dos problemas
respiratórios em adultos e crianças, não saíram mais do seu radar. A
pandemia de Covid-19, causada pelo Sars-CoV-2, o mais novo integrante da
família dos coronavírus, obrigou Arruda a reorganizar a rotina de
trabalho de seu grupo de pesquisa para investigar como o novo patógeno
age no organismo humano e buscar formas de combatê-lo.
Na
entrevista a seguir, concedida no início de janeiro por
videoconferência, o virologista, coordenador do Laboratório de
Patogênese Viral da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo
em Ribeirão Preto (FMRP-USP), fala da surpreendente capacidade de
disseminação do Sars-CoV-2, do surgimento de novas variantes e do risco
que elas podem representar para a eficácia de alguns tipos de vacina
contra a Covid-19. Também alerta para a necessidade de se criarem
sistemas de vigilância mais atuantes para detectar vírus que podem
causar novas pandemias.
Os coronavírus são seus velhos conhecidos. Quando começou a estudá-los?
Decidi
estudar vírus respiratórios logo após a graduação. Queria conhecer
melhor os rinovírus, que são causadores do resfriado comum, os agentes
infecciosos que atingem com maior frequência os seres humanos. Na época,
não se sabia muito sobre rinovírus e fui para um grupo de pesquisa que
os estudava na Universidade da Virgínia, nos Estados Unidos. Tínhamos
também de estar atentos às variedades de coronavírus então conhecidas,
porque eram consideradas a segunda causa mais frequente de resfriado
comum. Esses vírus respondem por uns 10% das infecções respiratórias em
crianças, o que é muita coisa. No final dos anos 1980, incluímos o
rastreio dos coronavírus em pessoas com resfriado e, desde então, esses
vírus estão em nosso radar.
Há estudos recentes?
Em
2019, publicamos o resultado de um estudo feito com 236 crianças
atendidas no Hospital das Clínicas da USP em Ribeirão Preto. Dos mais de
200 vírus investigados, os coronavírus, sozinhos ou em associação com
os rinovírus C, foram os causadores das infecções mais graves, que mais
levavam à internação em UTI [Unidade de Terapia Intensiva] pediátrica.
Esse trabalho tratou apenas dos quatro coronavírus que já eram endêmicos
nos seres humanos, conhecidos pelas siglas OC43, 229E, HK11 e NL63.
Conhecendo os coronavírus há tanto tempo, imaginava que o Sars-CoV-2 pudesse causar uma pandemia?
Quando
surgiram as notícias sobre o novo vírus na China em dezembro de 2019,
achei que veríamos algo semelhante ao que ocorreu em 2002 com o
Sars-CoV, causador da Síndrome Aguda Respiratória Grave, a Sars, ou em
2012 com o vírus da Síndrome Respiratória do Oriente Médio, a Mers, que
ficaram restritos, respectivamente, ao Sudeste da Ásia e ao Oriente
Médio. Foi uma surpresa que o novo coronavírus tenha se espalhado feito
rastilho de pólvora.
Não havia pistas desse potencial?
Os
vírus da Sars e da Mers causaram doença grave, mas tinham
transmissibilidade baixa. Todos eles são muito parecidos em sua origem
zoonótica. São fruto de spillover, um salto de uma espécie animal para o
ser humano. O que os coronavírus endêmicos nos ensinaram, e está se
confirmando, é que a resposta imunológica de anticorpos contra eles é
fraca. Isso é conhecido desde a década de 1960, quando o virologista
britânico David Tyrrell [1925-2005], descobridor dos coronavírus,
inoculou esses vírus no nariz de voluntários saudáveis. As pessoas
desenvolveram um resfriado e produziram anticorpos contra o vírus. Um
ano mais tarde, Tyrrell infectou novamente esses indivíduos com o vírus e
verificou que os anticorpos praticamente não existiam mais.
Há risco de que essa característica prejudique a eficácia das vacinas?
Para
responder a essa pergunta, preciso dar um passo atrás. A resposta imune
pode ser dividida em duas frentes: uma comandada por células chamadas
linfócitos B e outra pelos linfócitos T, que interagem e trocam
informações. Os linfócitos B produzem anticorpos, enquanto os linfócitos
T, após um primeiro contato com o vírus, são capazes de reconhecer
células infectadas por ele. Um subconjunto de linfócitos T, os T CD8,
pode eliminar as células contendo vírus. A imunidade proporcionada pelos
linfócitos T de memória é mais longeva do que a dos anticorpos. Fiz
essa introdução para agora chegar à resposta: sim, a forma como os
coronavírus despertam a resposta imune de anticorpos, que é de curta
duração, pode prejudicar a eficácia de algumas vacinas.
Quais podem ser afetadas?
A
maioria das vacinas foi desenvolvida para produzir anticorpos apenas
contra a proteína da espícula, a proteína S, do vírus. É o caso das
vacinas de RNA, como a da Pfizer-BioNTech e da Moderna, ou das que usam
outro vírus para introduzir no organismo a receita para fazer a proteína
da espícula do Sars-CoV-2, caso da vacina da Universidade de
Oxford/AstraZeneca. Essas vacinas estão mais sujeitas a perder eficácia
porque a proteína da espícula, que fica na superfície do vírus, pode
sofrer mutações e, em algum momento, deixar de ser reconhecida pelos
anticorpos induzidos pelas vacinas. À medida que os vírus se
multiplicam, seu material genético é copiado e pode incorporar erros,
que são as mutações. Algumas podem causar alterações nas proteínas e
torná-las irreconhecíveis para um sistema imune exposto a uma versão
anterior do vírus. Do ponto de vista evolutivo, a tendência é que o
vírus sofra adaptações e se torne menos nocivo ao hospedeiro. Isso
acontece porque ele passa por uma seleção natural darwiniana.
Multiplicam-se com mais sucesso e têm maior probabilidade de serem
passadas adiante as variantes que não matam o hospedeiro ou as que
causam doença mais leve que, como consequência, podem se tornar
endêmicas. Vemos isso o tempo todo em estudos com células e animais. Por
razões seletivas, é maior a probabilidade de que ocorram mutações na
proteína da espícula, como, aliás, já vêm ocorrendo.
Qual vacina tomaria?
Se
pudesse escolher, eu tomaria uma vacina feita com o vírus inteiro, como
a CoronaVac, feita pela Sinovac em parceria com o Instituto Butantan,
ou a Covaxin, da indiana Bharat Biotech. Essas vacinas são meio
“brutas”, feitas com o vírus picotado e tratado com detergente e
formalina. Elas contêm todos os elementos do vírus, assim como a vacina
da gripe. Conhecemos o tipo de resposta imunológica gerada por elas. O
organismo, especialmente por meio das células T de memória, torna-se
capaz de identificar várias partes do vírus, e não só a espícula. É
muito mais fácil ocorrerem mutações em uma única proteína do que
simultaneamente em várias proteínas. Além disso, as vacinas feitas com
vírus inteiros inativados geram uma resposta celular, de linfócitos T,
mais duradoura. Estudos feitos na Europa e nos Estados Unidos já
mostraram que entre 40% e 50% das pessoas nunca expostas ao Sars-CoV-2
tinham linfócitos T capazes de destruí-lo, provavelmente porque essas
células já tinham entrado em contato com os coronavírus endêmicos e
conseguiam reconhecer partes que são muito semelhantes no novo
coronavírus.
Isso
significa que uma vacina de vírus inteiro inativo pode produzir uma
resposta imune mais robusta e duradoura do que uma vacina de RNA, ainda
que sua eficácia seja menor?
Exatamente.
Vacina foi feita para prevenir doença, e não para evitar infecção. Um
exemplo clássico é o da vacina contra rotavírus. Ela praticamente
eliminou os casos de diarreia severa causada por esse vírus, mas não
impede a infecção. Quem recebe uma vacina de vírus inteiro contra o
Sars-CoV-2 pode até ser infectado por ele, mas provavelmente não vai
adoecer nem vai saber que teve a infecção. Houve uma celeuma
desnecessária a respeito da eficácia da CoronaVac, que aparentemente é
muito boa, por evitar a morte e prevenir perto de 80% dos casos graves e
50% das manifestações leves. Uma vacina que estimule a produção de
anticorpos apenas contra a espícula do vírus pode perder eficácia se
passar a prevalecer uma linhagem com a espícula alterada.
O surgimento de variantes mostra que é importante monitorar os vírus circulantes. Isso tem sido feito de maneira adequada?
Não.
Precisaríamos fazer um esforço para coletar amostras e sequenciar o
material genético desse vírus muito maior do que o que tem ocorrido,
principalmente no Brasil. Alguns países realizam muitos sequenciamentos e
sabem quais variantes do vírus estão por ali. No Brasil, ainda não
fazemos isso na quantidade necessária. Há grupos sequenciando bastante
em São Paulo, Rio de Janeiro, Amazonas e Rio Grande do Sul, mas
deveríamos fazer muito mais e de modo mais bem distribuído. Não adianta
sequenciar todos os vírus de São Paulo e nenhum de Mato Grosso, por
exemplo. Deveríamos ter postos sentinelas distribuídos pelo país para
coletar essas amostras e sequenciá-las para acompanhar a disseminação
das variantes. Também é preciso fazer os testes para monitorar se essas
variantes são capazes de escapar dos anticorpos induzidos pelas vacinas.
Esse risco de escape torna mais urgente vacinar a população?
Sim,
é preciso vacinar um número muito grande de pessoas rapidamente para
evitar que essas variantes se propaguem porque, quanto mais gente se
infectar antes de ser imunizada, mais o vírus vai se replicar, acumular
mutações e gerar novas variantes.
Existem indícios de que algumas variantes se disseminam mais rapidamente. Foram feitos estudos confirmatórios para alguma delas?
Exceto
pela evidência de maior transmissibilidade em modelo animal obtida com a
mutação D614G, ainda não houve comprovação definitiva de que as
variantes que estão surgindo sejam mais transmissíveis. Por enquanto, há
evidências de que algumas produzem maiores quantidades de vírus nas
secreções, o que as tornaria mais facilmente transmissíveis. Por isso,
alguns governos tomaram atitudes preventivas, impedindo a entrada de
pessoas vindas de locais onde essas variantes circulam. Mas ainda não se
pode afirmar que todas são realmente mais transmissíveis. Foram feitos
estudos que usam modelagem molecular computacional que sugerem maior
transmissibilidade. Só que isso precisa ser validado em experimentos de
laboratório. Estudos de transmissibilidade geralmente são feitos com
camundongos. Coloca-se um animal infectado em uma gaiola e se verifica
se ele infecta o animal são que está na gaiola vizinha, com o qual
compartilha o mesmo ar respirado. Sem esses experimentos, não se
consegue saber, por exemplo, por que determinada variante está se
espalhando muito, como a de Manaus. Pode ser que ela seja transmitida
mais facilmente, mas pode ser que ela seja mais abundante lá apenas por
ter surgido naquela cidade, onde agora quase não haveria mais a variante
que causou a primeira onda.
Apenas
no início deste ano a China autorizou a entrada em seu território de
uma equipe da Organização Mundial da Saúde para investigar a origem do
novo coronavírus. Por que é importante saber em que animal surgiu e como
ele chegou aos seres humanos?
Para
conhecer como ocorre um spillover e para que se busquem formas de
evitar que outros ocorram. Os spillovers são consequência da degradação
ambiental causada pela atividade humana. É preciso reduzir os danos
conhecendo, por exemplo, quais são as espécies de morcego que antes
estavam nas matas, seu ambiente natural, e agora estão nas cidades. Os
morcegos estão há mais de 60 milhões de anos no planeta e albergam
muitos vírus sem adoecer porque têm um sistema imune que não produz
muita inflamação. Se por meio de estudos genéticos e computacionais
conhecermos antecipadamente os vírus que esses animais carregam e a
afinidade desses vírus pelas proteínas das células humanas, é possível
ficar alerta, tentar evitar o contágio e preparar antecipadamente
medidas de prevenção e tratamento.
Quais centros fazem adequadamente essa vigilância zoonótica?
Muito
poucos. Um dos principais fica na Escola Médica Duke-NUS, em Singapura.
Nos Estados Unidos existem alguns centros, como o de Galveston, no
Texas, e o da Universidade de Tulane, em Nova Orleans. No Brasil,
infelizmente, não existem instituições que façam um esforço concentrado
nessa área. Temos instituições de saúde pública muito boas, como o
Instituto Evandro Chagas, no Pará, a Fundação Oswaldo Cruz, no Rio de
Janeiro e em outros estados, e o Instituto Adolfo Lutz, em São Paulo.
Mas estão sobrecarregados com as tarefas do dia a dia para realizar
prospecção de vírus.
Quais foram os acertos e os erros da China e dos outros países ao se perceberem diante de um vírus perigoso?
Não
enxergo nenhum erro gritante na atitude dos chineses. Isolaram o vírus,
sequenciaram o material genético e compartilharam as informações. No
início, o mundo todo olhou com desconfiança para a disseminação do
vírus, pensando, “será que chega mesmo?”. Chegou. No Brasil, medidas
drásticas deveriam ter sido tomadas bem no começo, como rastreamento em
aeroportos, restrição de viagens e outras ações. Mas é difícil. Existem
pressões políticas e econômicas. Algo que atrapalhou muito foi a
disseminação de notícias falsas sugerindo que a cloroquina ou a
ivermectina poderiam tratar a doença. Atualmente, tenho receio do
espalhamento de notícias falsas sobre as vacinas. Já se veem pessoas
dizendo que não se imunizarão nem se a vacina lhes for oferecida.
Há motivo para inquietação com os casos de reinfecção?
Todo
vírus que desperta no organismo uma imunidade precária, como os
coronavírus, pode causar reinfecção. Na década de 1960, David Tyrrell
mostrou que isso pode acontecer. O que me surpreende no caso do novo
coronavírus é que as reinfecções estão ocorrendo com um intervalo de
tempo muito curto, de 60 dias, 45 dias. Suspeito que alguns desses casos
sejam, na realidade, quadros de persistência do vírus no organismo.
Como funciona a persistência?
Anos
atrás, começamos a estudar as tonsilas [amígdalas] extraídas de
crianças que as tinham hipertrofiadas. Isso causa problemas
respiratórios e até deformidade facial. As crianças, no entanto, não
tinham sinal de gripe nem resfriado no momento da cirurgia ou no mês
anterior. No laboratório, analisamos essas tonsilas e verificamos que em
97% dos casos elas estavam infectadas com um ou mais vírus
respiratórios. Encontramos material genético e proteínas de vários vírus
no tecido. Quando maceramos as tonsilas e colocamos o material em
cultura de células, os vírus passaram a se multiplicar. Depois disso,
outros grupos mostraram a mesma coisa. Mais recentemente, começamos a
estudar outros tecidos linfoides – tonsilas, baço, linfonodos, timo e
medula óssea – de pessoas que haviam morrido por problemas
cardiovasculares. Embora esses indivíduos não tenham morrido por causa
de problemas respiratórios, encontramos em vários desses órgãos vírus
respiratórios, como os rinovírus, o vírus sincicial respiratório, o
vírus da influenza e outros.
O que isso mostra?
Que
essas pessoas provavelmente tiveram uma infecção respiratória viral no
passado, ficaram resfriadas, tossiram, espirraram, e o sistema
imunológico resolveu a infecção. Mas o vírus encontrou nichos que
poderia habitar sem causar danos ao hospedeiro. Estamos investigando em
quais condições a infecção poderia ser reativada. Acredito que essa
situação em que o vírus convive com o hospedeiro sem fazê-lo adoecer
pode ser vantajosa para ambos. Para o vírus, porque permanece viável por
longos períodos, para o organismo, porque a persistência viral pode
servir como estímulo à memória imunológica de como combater a infecção.
Só
fazendo o sequenciamento do material genético dos vírus nos dois
momentos e depois comparando é possível saber se de fato é uma
reinfecção ou se é uma infecção persistente?
Exato.
Não duvido da possibilidade de reinfecção, mas acho que é preciso ser
mais rigoroso na sua documentação. Algo que não se detectou ainda no
caso do novo coronavírus, mas que pode vir a acontecer, é a
recombinação. Se uma mesma célula estiver infectada com duas cepas
diferentes, o material genético de cada uma delas pode se misturar e
originar uma terceira.
Desde o começo da pandemia, o senhor direcionou o seu laboratório para estudar o novo coronavírus. O que seu grupo descobriu?
Nossa
descoberta mais importante até agora foi que o novo coronavírus infecta
células de defesa: monócitos, linfócitos B, linfócitos T CD4 e, para
minha surpresa, até linfócitos T CD8. Todas essas células estão
envolvidas no combate ao vírus. Alguns vírus, como o HIV, infectam
linfócitos, mas não se sabia que os coronavírus também eram capazes
disso.
Qual a consequência?
Os
linfócitos são células que combatem infecções em vários tecidos. Se o
vírus infecta e mata linfócitos, ele pode prejudicar a resposta
imunológica. Mas o Sars-CoV-2 não infecta somente linfócitos
responsáveis por combatê-lo. Ele invade linfócitos dirigidos contra
outros patógenos, o que pode facilitar outras infecções. Desde o começo
da pandemia, foi visto que pacientes com Covid-19 moderada e grave têm
linfopenia, que é uma baixa de linfócitos no sangue. Não se sabia a
causa. Imaginava-se que a redução ocorresse porque os linfócitos haviam
migrado para os tecidos infectados. Mostramos que o vírus também mata os
linfócitos, o que pode ter outra repercussão importante. A resposta
inflamatória intensa observada na Covid-19 pode ser decorrente da
infecção de certos clones de linfócitos pelo Sars-CoV-2. Isso faria
esses clones secretar uma quantidade enorme de citocinas. Ainda não
temos prova disso.
O que mais viram?
Em
outro trabalho, ajudamos o grupo de Fernando Cunha, da Faculdade de
Medicina da USP em Ribeirão, a demonstrar que o Sars-CoV-2 induz outro
tipo de célula de defesa, os neutrófilos, a liberar armadilhas
extracelulares, as neutrophil extracellular traps, ou Nets. Quando essas
células sofrem estresse, como a infecção pelo vírus, elas lançam para o
meio externo emaranhados de seu próprio DNA, que, em infecções por
bactérias e fungos, acabariam aprisionando os patógenos. As Nets são
muito tóxicas e podem gerar inflamação. Vimos que as Nets participam da
resposta inflamatória na Covid-19. O pulmão de quem morre está cheio
delas nos pontos em que há presença do vírus. Essa constatação abriu uma
perspectiva de tentar reduzir a inflamação pulmonar. Existem
tratamentos inalatórios que se baseiam no uso de enzimas chamadas DNAses
para dissolver as Nets. Em outro estudo, feito com Norberto Peporine
Lopes, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto, vimos,
por meio de modelagem computacional, que a molécula do tenofovir
disoproxil fumarato, um antiviral usado contra o HIV, encaixava-se muito
bem na polimerase do Sars-CoV-2. Essa enzima atua na multiplicação do
material genético do vírus. Em experimentos com células mostramos que o
tenofovir reduziu em centenas de vezes a quantidade de vírus. Informamos
o resultado ao Ministério da Saúde e conseguimos iniciar um ensaio
clínico, atualmente em andamento, no Ceará, para verificar se reduz a
carga viral, a necessidade de internação e a gravidade da doença. Com o
grupo de Dario Zamboni, constatamos que o vírus, ao invadir células do
sistema imune, ativa no interior delas a formação de um complexo de
proteínas chamado inflamassoma, que dispara a resposta inflamatória.
Como surgiu o seu interesse pelos vírus?
Em
1981, eu era estudante do sexto ano de medicina na UFC e já me
interessava pela bioquímica dos vírus. Um dia encontrei uma professora
da medicina social que me contou sobre um projeto de pesquisadores da
Universidade da Virgínia, nos Estados Unidos. Eles estavam fazendo um
levantamento de doenças infecciosas, entre elas as virais, na favela de
Gonçalves Dias, em Fortaleza. Procurei o coordenador do estudo, Richard
Guerrant, e disse que estudaria doenças infecciosas para me tornar
virologista. Ele aceitou minha participação e fizemos um estudo muito
cuidadoso. Durante dois anos, fomos à casa das pessoas três vezes por
semana para verificar se as crianças menores de 5 anos apresentavam
sintomas de doença e coletar material para análises em laboratório.
Consegui um bom material e identifiquei alguns vírus. No doutorado,
feito na Unifesp, consegui uma bolsa para terminar a análise daquele
material de Fortaleza no laboratório de vírus respiratórios da
Universidade da Virgínia.
O que observou?
Analisávamos
um painel de vírus respiratórios detectados naquelas crianças. O
rinovírus, causador do resfriado, era o campeão, cinco vezes mais comum
que os outros. Eu havia me formado em medicina, mas não tinha estudado
esse assunto, que não era considerado um problema de saúde importante.
Mas é. Infecção por rinovírus pode desencadear crises de asma, sinusites
e otites médias. Cinquenta por cento dos pacientes que vão ao
pronto-socorro tratar crises de asma estão infectados por um rinovírus.
Hoje se acredita que essa crise é causada pela resposta do sistema imune
a esse vírus. Uma vacina contra rinovírus poderia reduzir em 50% as
crises de asma. Naquela época, não se sabia quase nada sobre esse vírus e
decidi estudá-lo. Foi o meu o primeiro trabalho a mostrar em qual tipo
de célula os rinovírus se replicavam: as células ciliadas do epitélio
respiratório. Hoje estou vendo que esse vírus também se reproduz nos
linfócitos das tonsilas e de outros órgãos linfoides.
Por que é tão difícil obter antivirais eficientes?
Os
vírus são parasitas bioquímicos de grande elegância. Para mim, são
seres vivos, uma vez que se replicam, deixam descendentes e evoluem. Só
que dependem quase totalmente de outro ser vivo, que é a célula
hospedeira. Como eles dependem tanto das vias metabólicas da célula, é
preciso encontrar compostos capazes de inibir a replicação do vírus sem
danificar a célula. Tem sido quase impossível separar as vias que são
estritamente virais das que são celulares. Há muitos antivirais, mas que
não podem ser usados. Nos experimentos, eles impedem a reprodução dos
vírus, mas, por comprometerem vias metabólicas das células, eles as
matam.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário