A fome na URSS em 1921 |
Na maior parte das vezes, os mitos têm uma parte de verdade. E esta parte é que, durante as grandes fomes na URSS, provocadas pelas próprias autoridades, houve numerosos casos de canibalismo. José Milhazes para o Observador:
Há
males que vêm por bem e um deles foram as intervenções do comentador
Francisco Louçã sobre as grandes fomes na União Soviética. Ele fez-me
lembrar, principalmente na segunda intervenção, os dirigentes nazis a
recusarem-se a reconhecer ou a justificarem os crimes que cometeram. Com
uma diferença, Louçã estava mais há vontade perante os ecrãs
televisivos do que os carrascos do III Reich no Tribunal de Nuremberga.
Mas
intervenções deste tipo apenas vêm confirmar a tese de que entre o
nazismo e o comunismo não há qualquer tipo de diferença, a começar pelo
discurso desumano e cínico.
Louçã,
na sua segunda intervenção televisiva sobre o Holodomor (Grande Fome)
na Ucrânia, tentou redimir-se muito suavemente ao ir além no
“desmascaramento” das políticas criminosas de Estaline recordando que a
fome abrangeu outras regiões da União Soviética, ou seja, para afastar a
ideia de que ele jamais poderia ter rido e gozado com uma das páginas
mais negras não só da Ucrânia, mas também da Rússia, Cáucaso,
Bielorrússia e do Cazaquistão.
Depois
voltou, muito indignado, à crítica daqueles que dizem que “os
comunistas comem crianças”, embora a deputada municipal Aline Beuvink
tivesse falado, e com razão, de uma das origens do aparecimento do mito
de que os “comunistas comem crianças”.
Na
maior parte das vezes, os mitos têm uma parte de verdade. E esta parte é
que, durante as grandes fomes na URSS, provocadas pelas próprias
autoridades, houve numerosos casos de canibalismo.
Aliás,
algumas dessas fomes aconteceram quando ainda Vladimir Lenine e Lev
Trotsky, líderes espirituais de Francisco Louçã, dirigiam a União
Soviética, e Estaline era ainda um “rapaz de recados”. Em 1921, devido a
uma forte seca, o governo bolchevique decidiu requisitar de forma tão
violenta produtos agrícolas que os camponeses ficaram até sem sementes
para plantar. Uma região habitada por mais de 90 milhões de habitantes,
Cazaquistão, Urais, Região do Volga, Sul da Ucrânia e Crimeia, foi
atingida por uma fortíssima onda de fome que causou a morte a cerca de 5
milhões de pessoas e milhares de casos de canibalismo.
Felizmente,
os dirigentes soviéticos lembraram-se de pedir ajuda internacional,
pois, se assim não fosse, o número de mortos poderia mais do que
duplicar.
Em
1932-1933, as coisas voltam a repetir-se, mas, desta vez, as causas
mais importantes foram o facto de os camponeses não quererem aderir aos
kolkhozes e sovkhozes (unidades agrícolas de produção) e a continuação
da exportação de cereais para conseguir dinheiro para a
“industrialização”. Os resultados desta fome foram ainda mais trágicos.
Estaline recusou-se a pedir ajuda internacional e o número de mortos
ronda os 10 milhões.
Foram
registados também numerosos casos de canibalismo e, para o caso de
Francisco Louçã ainda não ter “dado conta” de onde veio o mito, fica
apenas um fragmento dos relatos das autoridades comunistas: “Na aldeia
Doljanskaya, da Região de Eysk, a cidadã Guerassimenko comeu o cadáver
da sua irmã que morreu. Na aldeia Novo-Scherbinovskaya, a mulher do
camponês rico Elissenko cortou o filho de três anos às postas e comeu-o.
No cemitério foram encontrados até 30 caixões dos quais desapareceram
os corpos…”.
Seria
injusto para com o Doutor Francisco Louçã e para aquele seu ar cínico
de sabichão não se falar da parte falsa do mito, que consiste em que, na
realidade, os comunistas não comeram crianças.
Mas
isto tem uma razão muito concreta e simples. Os seus camaradas
bolcheviques não precisavam de recorrer ao canibalismo porque recebiam
rações suficientes não só para se alimentarem a si mesmos e às suas
famílias, mas também para terem forças para esmagar qualquer oposição ao
poder comunista.
Foi
precisamente a seguir ao Holodomor que terminou o processo de
institucionalização do sistema de privilégios da nomenclatura soviética.
Os camaradas de Francisco Louçã não podiam passar fome.
“O
mais terrível é se vós, de repente, sentires pena e perderes a firmeza.
Deveis aprender a comer mesmo se todos à volta estiverem a morrer de
fome”, lê-se numa instrução secreta do Comité Central do Partido
Comunista da Rússia (bolchevique).
Entretanto,
no Outono de 1932, a loja da “Casa na Margem” (em Moscovo) fornecia
mensalmente aos altos funcionários comunistas quatro quilos de carne,
quatro de mortadela e fiambre, um quilo de caviar. Isto além deles e das
suas famílias puderem frequentar cantinas com refeições gratuitas ou a
baixos preços.
E
fique descansado, professor Louçã, não é daí que vem o mito da
“extrema-esquerda caviar”. Este mito vem da hipocrisia e das mentiras
que políticos como você e outros espalham. No campo do discurso, acho
que já foi mais longe do que André Ventura na insensatez.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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