Se banalizarmos a ideia de que o inimigo político pode ser igualado a Hitler, então vale golpe militar para detê-lo e facada para matá-lo. Bruna Frascolla para a Gazeta:
Popularizou-se
aquela frase de Winston Churchill segundo a qual a democracia é o pior
regime, exceto por todos os outros. É uma mudança salutar de
mentalidade: até há pouco, vigia o espírito de 1988, segundo o qual a
democracia é o remédio de todos os males. O Brasil recém democratizado
cantava que “pela minha lei/ a gente era obrigado a ser feliz” e pronto,
todos seriam felizes. A máxima de Churchill lembra que a humanidade não
é onipotente; que, em vez de criar o paraíso na terra, faz umas
gambiarras para tocar o barco. E uma gambiarra especialmente exitosa é a
democracia liberal, com institucionalidade e igualdade perante a lei.
Como
a humanidade não é uma coisa quadrada, encaixável em prateleiras ou
buracos de planilhas, senão um agregado de animais mais ou menos
racionais, não podemos esperar que a democracia seja, em cada momento da
história, o melhor arranjo possível. Ninguém esperaria que homens da
caverna redigissem uma Constituição e respeitassem as convenções de
Genebra, por exemplo.
Engenharia de obra pronta
Mas,
deixadas de fora as eras brutas e distantes, temos material histórico
suficiente para tomar decisões retrospectivas favoráveis a um golpe de
misericórdia numa democracia moribunda. É uma espécie de engenharia de
obras prontas, porque o leitor de bons livros de história tem muito mais
clareza do cenário político do que quem estava no turbilhão dos
acontecimentos.
Veja-se
o caso da República de Weimar, por exemplo. Um país de longo histórico
autoritário estreia na democracia e depois elege o louco Adolf Hitler,
que açambarca todos os poderes, criando uma forma de governo nova na
história alemã: o totalitarismo. Se os conservadores do Reichswehr (o
exército prussiano) tivessem dado um golpe de misericórdia na democracia
antes de Hitler, não teríamos tido III Reich nem Holocausto. Em vez de
uma ditadura totalitária, coisa completamente nova, os alemães
continuariam com o seu feijão com arroz autoritário, sem que a
humanidade soubesse as dimensões da tragédia evitada pelos generais
golpistas. Então podemos, olhando para Weimar, falar em um princípio
segundo o qual é lícito um golpe de Estado que instaure uma ditadura
comum para evitar uma ditadura totalitária.
Esse
raciocínio pode ser traduzido num princípio usado por parte do
liberalismo brasileiro, chamado “autoritarismo instrumental”, conforme
documenta Antônio Paim em "História do liberalismo brasileiro". A
ditadura não é um fim em si mesma, senão uma espécie de tampão usado em
períodos especialmente conturbados. Assim, no Brasil temos dois tipos
comuns de defensores de ditaduras: os que a enxergam como um remédio
temporário (os apologistas do regime militar) e os que a veem como
panaceia (os comunistas), embora rebatizem com o nome de democracia e
não digam nunca expressamente que ditadura é a sua meta. Mas a gente
sabe que é, porque jogam Cuba nas alturas.
A
novidade agora é a esquerda das antigas, na pessoa de Mário Sérgio
Conti, defender na Folha de São Paulo o autoritarismo instrumental, e de
uma maneira mais radical do que no exercício que propus acima: em vez
de pensar num golpe de Estado contra a democracia de Weimar, que poderia
se encerrar com Hitler preso, expulso ou sem cidadania alemã, Mário
Sérgio Conti pensa na Operação Valquíria, quando os militares
conservadores, já na vigência do III Reich, elaboram um plano para matar
Hitler e derrubar o regime. Aqui, há um golpe e um assassinato
político.
De
novo, como engenheiros de obra pronta, podemos dizer que os militares
alemães agiam bem – muito embora sigamos condenando assassinatos
políticos de uma maneira geral.
A importância dos princípios
A
brincadeira pode ir mais longe. No Império da Rússia, por opressivo que
fosse o jugo do czar, as pessoas não conheciam a fome planejada. Assim,
podemos, em retrospecto, dizer que o Czar Nicolau teria feito muito bem
em matar Lênin e Stálin. Poderíamos dar razão não só aos militares da
Operação Valquíria, mas também aos loucos aleatórios que tentaram matar
Hitler antes de ele chegar ao poder.
Mas
tudo isso porque estamos no conforto da historiografia reversa, nessa
engenharia de obras prontas. No dia a dia, na história sendo feita,
precisamos escolher alguns princípios gerais, ainda que não absolutos.
Não assassinar opositores políticos é há bastante tempo um importante
princípio político – ao menos fora da Baixada Fluminense. E a democracia
liberal é a melhor forma de governo já inventada pela humanidade,
devendo portanto ser defendida de uma maneira geral.
Obsessão pelas exceções
Uma
vez que concordemos que é bem difícil um princípio político ser
absoluto, a dosagem entre exceção e regra depende do bom-senso, das boas
intenções e do clima político – coisas não reguláveis por lei, nem
decreto. Por exemplo, concordamos que, de uma maneira geral, não devemos
matar as pessoas, mas admitimos a legítima defesa como exceção a essa
regra. Assim, se um indivíduo resolvesse obsessivamente listar em
público os casos em que o ato de matar pode ser enquadrado como legítima
defesa, se ele vivesse apontando casos que deveriam ter sido resolvidos
com a morte, e tudo isso a troco de nada, seria sensato pensar que ele
tem o interesse de matar alguém. E se o seu discurso encontrasse muitos
papagaios na sociedade, só poderíamos esperar uma erosão do bom-senso e
uma piora do clima político.
Agora,
e se transformássemos em rotina política discutir a licitude de golpes,
o que se poderia esperar disso? Mais: o que isso não revelaria da
mentalidade vigente em nossa sociedade? Para ter uma ideia, basta olhar,
de novo, para o colunismo sangrento da Folha de São Paulo: se
banalizarmos a ideia de que o inimigo político pode ser igualdado a
Hitler (uma figura para lá de excepcional na história política), então
vale golpe militar para detê-lo e facada para matá-lo. O oposicionista
inescrupuloso pode chamar qualquer presidente de Hitler.
Normalização de ditaduras
Na
última vez em que a ideia de ditadura esteva normalizada em todos os
setores políticos importantes da sociedade brasileira, houve o golpe de
1964. Não foi uma iniciativa exclusivamente militar; foi celebrada pelos
mesmos jornais que hoje posam de campeões democráticos. Até o ano
passado, uma parte da sociedade dizia que era radicalmente contra golpes
militares e deixava a outra encabulada, inventando intervenção militar
constitucional, dando piruetas hermenêuticas, falando em ameaça
comunista ou negando tudo.
Para
os militares de 1964, o que valeu foi a ideia de autoritarismo
instrumental para barrar a ameaça comunista. Por um lado, não há dúvidas
de que a vida do cidadão comum sob a ditadura brasileira era muito
melhor do que sob a ditadura soviética. Por outro lado, olhando de hoje,
como engenheiros de obra pronta, vemos ser muitíssimo improvável (para
dizer o mínimo) que a URSS tomasse um país continental valendo-se de
filhinhos de papai que pegaram em armas contra o Estado.
Mas,
se Mário Sérgio Conti está tão disposto assim a abraçar uma ditadura
militar, fica para ele a pergunta: os militares de 1964 então estavam
justificados em fazer o que fizeram? O que ele pensa da maneira como a
URSS tratava os seus cidadãos?
Os Hitlers de Nova Iguaçu
Por
fim, voltemos à ideia de matar Hitler, que os engenheiros de obra
pronta adoram usar para pautar seus raciocínios. Se vivermos repetindo,
como os antibolsonaristas, que é lícito matar políticos abomináveis, que
poderemos esperar daí?
A
erosão da ideia de que matar inimigos é errado. A transformação do
Brasil numa imensa Baixada Fluminense, com pelo menos um político morto
por semana. Afinal, se negligência com a Covid é genocídio comparável ao
Holocausto, por que não aquele desvio de verba da saúde? Se o inimigo
não tiver desviado a verba, por que não acusá-lo mesmo assim, já que
inocência de político é algo quase inacreditável? Todo mundo é Hitler,
genocida, assassino em massa. Então todo mundo merece ser assassinado.
Daí para defender uma ditadura com um imenso paredão, é um pulo.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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