Um experimento na Guatemala apresenta um bom caminho para o urbanismo contemporâneo. Gabriel de Arruda Castro para a revista Oeste:
A
praga da feiura une as grandes cidades brasileiras. É difícil ver uma
fotografia da Rua General Osório, no centro de São Paulo, e
diferenciá-la da General Vitorino, no centro de Porto Alegre, ou da
General Sampaio, no centro de Fortaleza. O que se nota são fios
elétricos em profusão, portas de aço enroláveis, pichações, calçadas
irregulares, prédios pouco inspiradores. E o problema estético não se
restringe às regiões mais antigas e degradadas: nos bairros mais novos e
ricos, multiplicam-se as casas quadradas e combinações infinitas de
prédios com vidros espelhados, que poderiam estar tanto em Goiânia
quanto em Xangai ou Chicago.
O
desenho de nossas ruas, calçadas e prédios tem um efeito real sobre a
qualidade de vida. Diretamente, porque neurocientistas já sabem que
existe uma correlação entre beleza e bem-estar. Indiretamente, porque a
feiura urbana reduz o convívio social, alimenta a violência e deprecia o
valor dos imóveis. Ou seja: a má arquitetura empobrece espiritualmente e
materialmente. No fim das contas, os seres humanos não gostam de
lugares feios e malcuidados. Essa não é, convenhamos, uma descoberta
revolucionária. Mas, embora muitos concordem com o diagnóstico, um bom
número de pessoas argumenta que, no caso do Brasil, é tarde demais para
desfazer o estrago. Acontece que isso não é verdade. E talvez,
surpreendentemente, o melhor exemplo venha da Guatemala.
A
Cidade Cayalá parece, à primeira vista, uma vizinhança cenográfica,
construída para alguma série de televisão. Mas, com suas ruas sem
carros, em uma escala humana, e seus prédios charmosos, essa região da
Cidade da Guatemala não é um parque temático: é uma cidade viva, com
apartamentos, lojas, escritórios, cinema, centros culturais e igreja. O
empreendimento foi construído em uma área privada. Os donos do local
contrataram o arquiteto luxemburguês Léon Krier para planejar tanto o
projeto urbanístico quanto a arquitetura dos prédios. O resultado é uma
pequena cidade que funciona de forma orgânica e é permeada pela beleza —
ao mesmo tempo em que resgata as tradições arquitetônicas do país.
A
escolha por Krier não foi por acaso: autor de diversos livros e dono de
um currículo acadêmico de respeito, é reconhecido como um dos
principais expoentes de uma escola arquitetônica que pretende
revitalizar os ideais clássicos de ordem e beleza, ao mesmo tempo em que
respeita a riqueza gerada pelas diferentes tradições urbanísticas de
cada país. De certa forma, Krier é um anti-Oscar Niemeyer. Enquanto os
prédios de Niemeyer têm os mesmos traços, seja em Paris, seja em
Niterói, Léon Krier faz o contrário. Seu projeto para a cidadela
Poundbury, na Inglaterra, por exemplo, usa materiais e estilos
arquitetônicos muito diferentes dos da Cidade Cayalá. Ainda assim, em
ambos os casos o resultado é agradável aos olhos e, mais importante,
reforça o sentimento de pertencimento dos moradores locais: Poundbury é
uma cidade inglesa por excelência. Cayalá é uma cidade guatemalteca por
excelência. Ironicamente, Niemeyer é, nesse certo sentido, o menos
brasileiro dos arquitetos.
Uma
das teses de Krier é a de que a forma dos prédios precisa se adaptar à
sua função: nada mais deprimente, ele apregoa, do que uma cidade em que
igrejas, indústrias e escolas têm o mesmo formato, indistinguível de um
galpão industrial.
Os
arquitetos brasileiros têm o que aprender com Krier. Boa parte deles
comete o erro de simplesmente copiar a última moda europeia ou
norte-americana. Outra parte produz aberrações em nome da
“originalidade” (vide Brasília). Tanto em um caso quanto em outro, o
problema fundamental é o profundo desprezo pelas tradições
arquitetônicas e urbanísticas brasileiras. Considerações sobre o clima,
as matérias-primas disponíveis e o modo de vida brasileiros não podem
ser negligenciadas. Sem um estilo arquitetônico próprio, a noção de
identidade nacional fica enfraquecida. É difícil esperar que os cidadãos
amem o país sem antes amarem sua rua, seu bairro e sua cidade. Por
isso, a arquitetura é importante demais para ser deixada apenas nas mãos
dos arquitetos.
O
desenho de uma cidade e de seus prédios também tem consequências
diretas sobre a economia. Inaugurada há dez anos e espalhada em 440 mil
metros quadrados, a Cidade Cayalá não é apenas um exemplo de bom gosto
estético; é também um sucesso financeiro para seus idealizadores. O
exemplo da Guatemala demonstra que é possível haver uma arquitetura
contemporânea com raízes naquilo que o passado tem de melhor. E que essa
escolha é, além de tudo, lucrativa. Estamos tão profundamente imersos
na feiura, e tão habituados a ela, que parece difícil que um projeto do
tipo prospere no Brasil. Mas as levas de turistas que tomam as ruas de
Paraty (RJ), Ouro Preto (MG), Pirenópolis (GO) e São Luiz do Paraitinga
(SP) são um sinal de que, apesar de toda a pregação contemporânea contra
a beleza clássica, as pessoas ainda sabem apreciar uma cidade
construída de forma harmônica. Aliás, é interessante observar que,
quando foi a vez de Oscar Niemeyer desenhar a própria casa onde viveria
em Brasília, ele optou por um formato convencional, de inspiração
colonial: a construção tem uma larga varanda, telhas de barro e muitas
janelas, como uma boa casa de fazenda brasileira.
O
que houve com a arquitetura no Brasil — e não só no Brasil — não foi
mera mudança no padrão de beleza. Houve, na verdade, o abandono da
própria ideia de beleza. Um fenômeno semelhante aconteceu, quase ao
mesmo tempo, nas artes visuais como um todo. A exposição permanente do
Masp é pedagógica: em vez de dividir suas obras em salas separadas, o
museu apresenta todas as obras, organizadas por ordem cronológica, em um
mesmo pavilhão. Na última vez em que estive por lá, em 2019, a “obra de
arte” mais recente, como que a simbolizar o ápice da realização humana,
era um cartaz amarelo reclamando da falta de obras apresentadas por
mulheres. A apreciação pelo belo deu lugar à simples militância
ideológica.
Felizmente,
o Brasil não precisa contratar Léon Krier para reencontrar sua
arquitetura perdida. Pouco antes de o modernismo tomar conta das escolas
de arquitetura país afora, tínhamos uma escola arquitetônica que se
opunha tanto aos traços abstratos quanto à mera importação de estilos
estrangeiros: é a chamada arquitetura neocolonial, que teve seu auge
durante os anos 20 e 30 e nos deixou prédios como a Universidade Federal
Rural do Rio de Janeiro, talvez o câmpus universitário mais bonito do
Brasil. Com sorte, ainda é possível esbarrar em uma casa nesse estilo em
uma caminhada pelas grandes cidades brasileiras. As construções
neocoloniais são, ao mesmo tempo, agradáveis aos olhos, funcionais e
explicitamente brasileiras.
Mas
a tentativa de retomada de nossa tradição arquitetônica não durou
muito. Nos anos 50, os arquitetos neocoloniais perderam a queda de braço
com os modernistas da turma de Niemeyer e Lúcio Costa. Os dois, aliás,
transformaram Brasília em um antiexemplo: em vez de construir uma
capital que reforçasse, por meio de sua arquitetura, a identidade
nacional, eles optaram por um modernismo que causa mais estranheza do
que inspiração ou admiração.
Infelizmente,
a arquitetura e o urbanismo parecem estar ausentes da agenda de
liberais e conservadores brasileiros. Na verdade, o mau gosto nesse
campo está longe de ser um vício restrito à esquerda. Parte da direita
pretende transformar nossas cidades em cópias baratas dos bairros de
novos-ricos da Flórida, que, por sua vez, são meros pastiches repletos
de construções ocas (literal e figurativamente). Não deveria ser assim.
Como Winston Churchill resumiu, “nós damos forma aos nossos prédios, e
eles depois dão forma a nós”. Não será possível resgatar o que o país
tem de mais valioso e revitalizar as metrópoles brasileiras sem que o
desenho de nossas ruas e prédios seja levado a sério. Talvez seja o
momento de pensarmos em uma arquitetura neoneocolonial para o Brasil.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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