MEDIÇÃO DE TERRA

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MEDIÇÃO DE TERRAS

domingo, 18 de abril de 2021

Há salvação para a feiura das nossas cidades?

 



Um experimento na Guatemala apresenta um bom caminho para o urbanismo contemporâneo. Gabriel de Arruda Castro para a revista Oeste:


A praga da feiura une as grandes cidades brasileiras. É difícil ver uma fotografia da Rua General Osório, no centro de São Paulo, e diferenciá-la da General Vitorino, no centro de Porto Alegre, ou da General Sampaio, no centro de Fortaleza. O que se nota são fios elétricos em profusão, portas de aço enroláveis, pichações, calçadas irregulares, prédios pouco inspiradores. E o problema estético não se restringe às regiões mais antigas e degradadas: nos bairros mais novos e ricos, multiplicam-se as casas quadradas e combinações infinitas de prédios com vidros espelhados, que poderiam estar tanto em Goiânia quanto em Xangai ou Chicago.

O desenho de nossas ruas, calçadas e prédios tem um efeito real sobre a qualidade de vida. Diretamente, porque neurocientistas já sabem que existe uma correlação entre beleza e bem-estar. Indiretamente, porque a feiura urbana reduz o convívio social, alimenta a violência e deprecia o valor dos imóveis. Ou seja: a má arquitetura empobrece espiritualmente e materialmente. No fim das contas, os seres humanos não gostam de lugares feios e malcuidados. Essa não é, convenhamos, uma descoberta revolucionária. Mas, embora muitos concordem com o diagnóstico, um bom número de pessoas argumenta que, no caso do Brasil, é tarde demais para desfazer o estrago. Acontece que isso não é verdade. E talvez, surpreendentemente, o melhor exemplo venha da Guatemala.

A Cidade Cayalá parece, à primeira vista, uma vizinhança cenográfica, construída para alguma série de televisão. Mas, com suas ruas sem carros, em uma escala humana, e seus prédios charmosos, essa região da Cidade da Guatemala não é um parque temático: é uma cidade viva, com apartamentos, lojas, escritórios, cinema, centros culturais e igreja. O empreendimento foi construído em uma área privada. Os donos do local contrataram o arquiteto luxemburguês Léon Krier para planejar tanto o projeto urbanístico quanto a arquitetura dos prédios. O resultado é uma pequena cidade que funciona de forma orgânica e é permeada pela beleza — ao mesmo tempo em que resgata as tradições arquitetônicas do país.

A escolha por Krier não foi por acaso: autor de diversos livros e dono de um currículo acadêmico de respeito, é reconhecido como um dos principais expoentes de uma escola arquitetônica que pretende revitalizar os ideais clássicos de ordem e beleza, ao mesmo tempo em que respeita a riqueza gerada pelas diferentes tradições urbanísticas de cada país. De certa forma, Krier é um anti-Oscar Niemeyer. Enquanto os prédios de Niemeyer têm os mesmos traços, seja em Paris, seja em Niterói, Léon Krier faz o contrário. Seu projeto para a cidadela Poundbury, na Inglaterra, por exemplo, usa materiais e estilos arquitetônicos muito diferentes dos da Cidade Cayalá. Ainda assim, em ambos os casos o resultado é agradável aos olhos e, mais importante, reforça o sentimento de pertencimento dos moradores locais: Poundbury é uma cidade inglesa por excelência. Cayalá é uma cidade guatemalteca por excelência. Ironicamente, Niemeyer é, nesse certo sentido, o menos brasileiro dos arquitetos.

Uma das teses de Krier é a de que a forma dos prédios precisa se adaptar à sua função: nada mais deprimente, ele apregoa, do que uma cidade em que igrejas, indústrias e escolas têm o mesmo formato, indistinguível de um galpão industrial.

Os arquitetos brasileiros têm o que aprender com Krier. Boa parte deles comete o erro de simplesmente copiar a última moda europeia ou norte-americana. Outra parte produz aberrações em nome da “originalidade” (vide Brasília). Tanto em um caso quanto em outro, o problema fundamental é o profundo desprezo pelas tradições arquitetônicas e urbanísticas brasileiras. Considerações sobre o clima, as matérias-primas disponíveis e o modo de vida brasileiros não podem ser negligenciadas. Sem um estilo arquitetônico próprio, a noção de identidade nacional fica enfraquecida. É difícil esperar que os cidadãos amem o país sem antes amarem sua rua, seu bairro e sua cidade. Por isso, a arquitetura é importante demais para ser deixada apenas nas mãos dos arquitetos.


O desenho de uma cidade e de seus prédios também tem consequências diretas sobre a economia. Inaugurada há dez anos e espalhada em 440 mil metros quadrados, a Cidade Cayalá não é apenas um exemplo de bom gosto estético; é também um sucesso financeiro para seus idealizadores. O exemplo da Guatemala demonstra que é possível haver uma arquitetura contemporânea com raízes naquilo que o passado tem de melhor. E que essa escolha é, além de tudo, lucrativa. Estamos tão profundamente imersos na feiura, e tão habituados a ela, que parece difícil que um projeto do tipo prospere no Brasil. Mas as levas de turistas que tomam as ruas de Paraty (RJ), Ouro Preto (MG), Pirenópolis (GO) e São Luiz do Paraitinga (SP) são um sinal de que, apesar de toda a pregação contemporânea contra a beleza clássica, as pessoas ainda sabem apreciar uma cidade construída de forma harmônica. Aliás, é interessante observar que, quando foi a vez de Oscar Niemeyer desenhar a própria casa onde viveria em Brasília, ele optou por um formato convencional, de inspiração colonial: a construção tem uma larga varanda, telhas de barro e muitas janelas, como uma boa casa de fazenda brasileira.

O que houve com a arquitetura no Brasil — e não só no Brasil — não foi mera mudança no padrão de beleza. Houve, na verdade, o abandono da própria ideia de beleza. Um fenômeno semelhante aconteceu, quase ao mesmo tempo, nas artes visuais como um todo. A exposição permanente do Masp é pedagógica: em vez de dividir suas obras em salas separadas, o museu apresenta todas as obras, organizadas por ordem cronológica, em um mesmo pavilhão. Na última vez em que estive por lá, em 2019, a “obra de arte” mais recente, como que a simbolizar o ápice da realização humana, era um cartaz amarelo reclamando da falta de obras apresentadas por mulheres. A apreciação pelo belo deu lugar à simples militância ideológica.

Felizmente, o Brasil não precisa contratar Léon Krier para reencontrar sua arquitetura perdida. Pouco antes de o modernismo tomar conta das escolas de arquitetura país afora, tínhamos uma escola arquitetônica que se opunha tanto aos traços abstratos quanto à mera importação de estilos estrangeiros: é a chamada arquitetura neocolonial, que teve seu auge durante os anos 20 e 30 e nos deixou prédios como a Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, talvez o câmpus universitário mais bonito do Brasil. Com sorte, ainda é possível esbarrar em uma casa nesse estilo em uma caminhada pelas grandes cidades brasileiras. As construções neocoloniais são, ao mesmo tempo, agradáveis aos olhos, funcionais e explicitamente brasileiras.

Mas a tentativa de retomada de nossa tradição arquitetônica não durou muito. Nos anos 50, os arquitetos neocoloniais perderam a queda de braço com os modernistas da turma de Niemeyer e Lúcio Costa. Os dois, aliás, transformaram Brasília em um antiexemplo: em vez de construir uma capital que reforçasse, por meio de sua arquitetura, a identidade nacional, eles optaram por um modernismo que causa mais estranheza do que inspiração ou admiração.

Infelizmente, a arquitetura e o urbanismo parecem estar ausentes da agenda de liberais e conservadores brasileiros. Na verdade, o mau gosto nesse campo está longe de ser um vício restrito à esquerda. Parte da direita pretende transformar nossas cidades em cópias baratas dos bairros de novos-ricos da Flórida, que, por sua vez, são meros pastiches repletos de construções ocas (literal e figurativamente). Não deveria ser assim. Como Winston Churchill resumiu, “nós damos forma aos nossos prédios, e eles depois dão forma a nós”. Não será possível resgatar o que o país tem de mais valioso e revitalizar as metrópoles brasileiras sem que o desenho de nossas ruas e prédios seja levado a sério. Talvez seja o momento de pensarmos em uma arquitetura neoneocolonial para o Brasil.
 
BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

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