O presidente Bolsonaro já defendeu todas as posições concebíveis, como que fazendo questão de demonstrar não só sua insensibilidade social, mas também seu desprezo pela lógica. Artigo do professor Bolívar Lamounier, publicado pelo Estadão:
“... do mal será queimada a semente/
e o amor será eterno novamente”
Nelson Cavaquinho,
Juízo Final
Para
o poeta Manuel Bandeira, o verso “tu pisavas nos astros distraída”, de
Orestes Barbosa e Sílvio Caldas, é o mais bonito da língua portuguesa.
Sem pretender contestar sua avaliação, atrevo-me a pôr o verso de Nelson
Cavaquinho mais ou menos no mesmo plano.
A
grande diferença é que o verso de Orestes e Sílvio é estritamente
lírico; o de Nelson Cavaquinho pode ser lido em qualquer plano,
inclusive no social e no político. É essa a linha que tentarei
desenvolver neste artigo. Quais são, no momento, os males que precisamos
queimar para que o amor de todos em relação a todos possa prevalecer
pelo menos como aspiração?
A indagação, como se vê, já traz implícita uma afirmação: a quadra em que nos encontramos não é a do bem. É a do mal.
Começa
pela pandemia, sobre a qual poderíamos ter feito muito mais, mas que,
estritamente falando, não decorre da maldade que todos temos na alma.
Suponhamos,
então, que sejamos capazes de vencer a pandemia em mais alguns meses. A
partir daí, qual ou quais males deveremos combater com todas as nossas
forças? A estagnação econômica, sem dúvida; a desigualdade de renda e
riqueza; os milhões de crianças que mal e mal conseguimos tirar das
trevas do analfabetismo. Tudo isso é certo.
Arrisco-me,
entretanto, a afirmar que não iremos muito longe se antes não
compreendermos o que vem acontecendo no plano das instituições e da
política. O mal, como esclareceu Thomas Hobbes (1651), é antes de tudo
“a guerra de todos contra todos”, e não há como queimá-la senão
construindo e respeitando a institucionalidade política. O homem é o
lobo do homem.
Não
por acaso, a tradução mais expressiva do verbo latino rebellare é a que
surge como nos séculos 17-18, com a doutrina contratualista. Fazendo
contraponto com rebelar-se, pegar em armas contra o governo, acepções
mais estreitas, os contratualistas passaram a entender rebellare em seu
sentido mais literal: “voltar ao estado de guerra”. O contrato social,
geralmente codificado em Constituições, estabelece os termos mediante os
quais os homens se poriam ao abrigo de instituições de governo, com a
condição de que estas também respeitem e cumpram o pacto.
O
“amor”, ou pelo menos a paz, o respeito mútuo e a civilidade, permanece
como aspiração na medida em que essa condição for observada; se não o
for, cedo ou tarde sobrevirão a anarquia, o caos e a guerra civil. A
recaída no estado de guerra poderia ser causada por qualquer um dos
principais grupos ou instituições que compõem a sociedade, em especial
por um governo tirânico, ou por súditos que se recusassem a reconhecer a
legitimidade de um governo que fizesse por merecê-la.
Deixando
para trás a argumentação abstrata, cumpre-nos, pois, indagar onde, no
Brasil de hoje, estão as sementes do mal. Há multidões armadas ocupando
as ruas e praças, atacando autoridades, destruindo propriedades e
patrimônios? Não, não há. E, no entanto, nenhum cidadão na plenitude de
suas faculdades mentais dirá que estamos em paz, convivendo e
colaborando uns com os outros como devemos.
É
certo que nem todos os males decorrem da ação ou omissão dos atuais
titulares das mais altas esferas institucionais. Alguns deles foram em
mau momento insculpidos no próprio texto constitucional de 1988, o
melhor exemplo sendo, sem dúvida, o inciso LVII do artigo 5.º: “ninguém
será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal
condenatória”. Salta aos olhos que esse dispositivo estabelece que nossa
sociedade será regida por duas justiças, uma para os ricos e outra para
os pobres. Os que dispuserem de meios para remunerar advogados caros
podem protelar indefinidamente, até a prescrição, os processos em que
forem enquadrados. Os que não dispuserem caem na categoria dos três pês
(pobres, pretos e putas), cujo destino é se amontoarem em masmorras
sub-humanas, não raro se entrematando ou se decapitando uns aos outros.
Temos como mudar isso? Sim, convocando outra assembleia constituinte,
dado que tal alteração exigiria a convocação de outro poder constituinte
originário.
A
antípoda do trânsito em julgado é a conduta do atual presidente da
República, e não só em conexão com o combate à pandemia de covid-19.
Nesse particular, o presidente Bolsonaro já defendeu todas as posições
concebíveis, como que fazendo questão de demonstrar não só sua
insensibilidade social, mas também seu desprezo pela lógica.
Contrapondo-se de forma flagrante ao que a Constituição estabelece no
tocante à competência da União, dos Estados e municípios, Sua Excelência
sabota as ações dos agentes de saúde, movido não só por um instinto
semelhante ao de Iago no Otelo de Shakespeare, mas também com o
objetivo, claramente, de se manter bem visível no meio do pandemônio da
pandemia. A liturgia do cargo, a obrigação de se pôr como símbolo e
exemplo para as demais instituições e para a sociedade não parecem
passar-lhe pela cabeça.
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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