Na perspectiva otimista, as ideias circularão como nunca na História da humanidade e o conhecimento alcançará os rincões mais atrasados do planeta. Mas a rede de satélites de órbita baixa poderá comprometer a detecção de asteroides e outros corpos celestes. Dagomir Marquezi para a revista Oeste:
Controlamos
nosso dinheiro. Assistimos a filmes. Marcamos consultas com nossos
médicos. Permanecemos em contato com a família. Lemos nossas revistas.
Participamos de reuniões. Estudamos. Damos aula. Administramos nossa
agenda. Pedimos comida. Fazemos compras. Ouvimos música. Reservamos
hotéis. Visitamos museus. Vendemos nossos produtos. Debatemos política e
futebol. Monitoramos a saúde. Exibimos ao mundo nossa roupa nova. Damos
parabéns por aniversários. Fazemos terapia. A pergunta é: o que não
fazemos hoje pela internet?
A
segunda pergunta: e quem não tem internet? O site Internet World Stats
calcula que 57% da população mundial tem acesso à rede global de
computadores e a todas as oportunidades que ela oferece. Mas a internet
ainda não chegou a quase metade da população do mundo, ou 3,5 bilhões de
pessoas. É muita gente sem acesso a informação, cultura e serviços. E
um mercado monumental a ser desenvolvido e integrado.
Calcula-se
que apenas 39% da população africana esteja conectada. E temos os casos
mais graves, como Afeganistão (19%), Etiópia (18%), Madagascar (10%),
Sudão do Sul (8%). O pior caso, como não podia deixar de ser, é a Coreia
do Norte, onde apenas 0,1% da população — a elite do Partido dos
Trabalhadores — tem o direito de acessar a rede. Na sua vizinha
capitalista do sul, 96% da população está conectada.
A
Coreia é o exemplo mais marcante do que se chama de digital divide, ou a
divisão digital entre os que têm acesso à internet e os que não têm.
Nesse caso, a causa para a divisão é clara: um país é uma democracia
próspera, o outro é uma ditadura comunista. Mas existem outras condições
que provocam essa divisão.
Centros
urbanos costumam possuir redes de internet de sobra, com a redundância
de sinais por cabo, fibra óptica e celulares. Mas zonas rurais mais
afastadas ou reservas ambientais como as que existem na Amazônia sofrem
com a falta de conexão ou, quando ela existe, com sua má qualidade. Se a
gente pensar que o Brasil ainda depende primordialmente do agronegócio,
essas falhas de cobertura se tornam mais graves. A ministra da
Agricultura, Tereza Cristina, já afirmou que a implantação da rede 5G no
campo poderá contribuir decisivamente para que o agro brasileiro dobre
de tamanho rapidamente com a expansão da “internet das coisas”,
interligando e automatizando processos de produção. Mas não se pode
esquecer que sinal de celular depende de torres de distribuição. E não é
tarefa fácil estabelecer essa rede de torres em propriedades rurais
mais remotas ou em regiões de preservação ambiental.
Boa
conexão pela internet virou questão de sobrevivência para cada vez mais
gente. Segundo pesquisa do Instituto Locomotiva, a pandemia levou mais
11,4 milhões de brasileiros a garantir ou aumentar sua renda por meio de
aplicativos. Vinte por cento da população brasileira adulta (32,4
milhões de pessoas) utiliza algum tipo de aplicativo para trabalhar.
Antes da pandemia, o índice era de 13%. Pelas facilidades que
proporciona, esse uso da internet só tende a crescer, mesmo com o fim da
pandemia.
O
objetivo agora é chegar aos 100% de conexão global com qualidade. Ainda
é uma utopia. Empresas como Facebook e Google experimentaram levar o
sinal da internet a lugares inóspitos com uso de drones e balões. Não
deu certo. A solução técnica escolhida pelas grandes empresas do ramo
foi instalar uma rede de satélites que possibilite o alcance de qualquer
cidadão do mundo à internet, em qualquer local. Você poderá estar no
alto do Monte Everest, ou atravessando de canoa o Rio Japurá, numa base
da Antártida, sobrevoando o Deserto de Gobi, na Mongólia, num navio no
meio do Atlântico ou numa aldeia da Groenlândia. Não importa. O sinal de
internet chegará tão bom quanto se você estivesse em São Paulo, Chicago
ou Berlim.
O
principal projeto em curso hoje é o Starlink, da empresa SpaceX, de
Elon Musk. Musk, que não sabe pensar pequeno, está “saturando” as
camadas mais próximas do espaço (a 550 quilômetros de altura) com
satélites que deverão cobrir toda a superfície terrestre. Segundo o site
Olhar Digital, já estão em operação 1.380 satélites a 550 quilômetros
de altitude. Só nessa primeira etapa do projeto serão 12 mil satélites.
O
plano da SpaceX é colocar um total de 42 mil em três camadas do espaço.
Existem hoje 2.300 satélites em órbita, e a empresa de Musk pretende
multiplicar esse número por 18. A cada lançamento um foguete Falcon 9
acrescenta uma rede de 60 satélites. Eles podem ser observados em certas
condições a olho nu, como um “colar de pérolas” que reflete a luz do
Sol. Muita gente achou que eram UFOs.
O
Starlink ainda está em sua fase beta. Dez mil usuários estão pagando um
valor alto para instalar sua anteninha redonda e receber os sinais. O
preço agora é de US$ 99 por mês. E a empresa sai no prejuízo, pois cada
terminal está custando US$1,5 mil nesse período experimental.
As
condições técnicas de transmissão começaram precárias e estão
melhorando rapidamente. Já foram registrados downloads de 400 Mbps de
velocidade. A meta da Starlink é chegar a 10.000 Mbps, que já é padrão
em algumas redes terrestres de fibra óptica. O recorde mundial de
velocidade pertence a um experimento da University College London:
178.000.000 Mbps. Para efeito de comparação, o serviço médio no Brasil
não chega atualmente a 50 Mbps.
A
empresa de Elon Musk registrou com sócios brasileiros em dezembro
último o CNPJ da Starlink Brazil Serviços de Internet Ltda. Já está
aceitando endereços brasileiros para enviar, quando for liberado pela
Anatel, o kit de instalação. Segundo o site Tecnoblog, a cobertura
brasileira começa até o fim deste ano.
O
Starlink não é o único serviço disponível de internet por satélite. O
Brasil já conta com o HughesNet e a Viasat. O preço mensal pelo serviço
varia entre R$ 180 e R$ 600. Seu alcance geográfico é bem limitado, e a
velocidade de download parece dos tempos da internet discada, de 10 a 30
Mbps.
No
mercado internacional, Elon Musk já enfrenta seu arquirrival Jeff
Bezos, o homem mais rico do mundo, que pretende investir US$ 10 bilhões
com seu Projeto Kuiper. A tradicional empresa canadense Telesat (fundada
em 1969) já anunciou que também entrará no jogo dos LEO Satellites (ou
“satélites de órbita baixa”) a partir de 2023 com o projeto Lightspeed,
voltado para clientes empresariais. Outras empresas, como a britânica
OneWeb e a chinesa Hongyan, também avisaram que estão na disputa.
Essa
corrida provocou por enquanto forte reação numa atividade milenar, a
astronomia. Os astrônomos temem que essa rede vá atrapalhar em
definitivo a visão que temos do espaço, o que poderá eventualmente
comprometer a detecção de asteroides e outros corpos celestes que nos
ameacem.
Os
primeiros Starlink deixaram muita gente deslumbrada com a fila de
objetos brilhantes seguindo no céu como colares de pérolas. Para os
astrônomos, aquele clarão artificial foi péssima notícia. A SpaceX
passou a lançar satélites com as partes brilhantes pintadas de negro. E
avisou que os satélites ficarão menos visíveis conforme subirem para sua
órbita definitiva. Mas os astrônomos continuam reclamando do excesso de
objetos que vão se interpor entre eles e seus focos de estudo.
Outro
perigo em potencial é bem mais assustador: um choque acidental de
satélites que pode gerar uma reação em cadeia conhecida como síndrome de
Kessler. E produzir entulho que passará décadas flutuando caoticamente
sobre a cabeça de todos nós. Especialistas ouvidos pela revista Business
Insider calculam que poderemos ter em pouco tempo 100 mil satélites de
baixa altitude, provocando um perigoso congestionamento e eventualmente
um grande desastre.
Em
30 de março passado, a Força Espacial dos EUA emitiu um alerta vermelho
avisando que um dos satélites da OneWeb poderia estar em rota de
colisão com outro da Starlink. A probabilidade de choque era baixa, de
1,3%. Mas eles passariam a 58 metros um do outro, mais ou menos a
distância entre a trave e o meio do campo de futebol. Isso, em termos
espaciais, é um raspão cheio de riscos. A OneWeb e a SpaceX
comunicaram-se sobre o alerta por e-mail e acertaram uma manobra para
evitar o risco.
Temos
aparentemente duas possibilidades a considerar. Na otimista, a conexão
pela internet vai unir o planeta inteiro na maior comunidade/mercado que
nossa imaginação for capaz de imaginar. Mesmo nas piores ditaduras
haverá a chance de contrabandear a anteninha receptora que quebrará o
isolamento de um país. Qualquer aldeia do interior da África terá a
chance de colocar seus produtos no mercado internacional por meio de
aplicativos cada vez mais simples e funcionais. As ideias circularão
como nunca na História da humanidade. O conhecimento alcançará os
rincões mais atrasados do globo. Participaremos do início de uma nova e
promissora era de progresso para todos.
A
pessimista: o excesso de satélites e a ausência de regras podem
provocar uma terrível catástrofe na órbita terrestre, com milhões de
detritos metálicos viajando em alta velocidade e interrompendo a
exploração internacional. Os detritos serão atraídos para a superfície.
Alguns queimarão na atmosfera. Outros cairão sobre nós.
“Não
existem leis internacionais para regular o tráfego especial”, notou o
jornal The Times. “E ninguém para forçar os operadores a agir de forma a
evitar um potencial choque. A quase colisão com o OneWeb mostra que é
necessário um tratado para governar o tráfego espacial. Ou um evento
desastroso acabará acontecendo.”
Diante
das vantagens de uma rede global de conexão, pode valer a pena correr o
risco. E os países, em troca dessas vantagens, terão de se entender
nessa nova fronteira.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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