* Daniel Medeiros
No período 1946-1964, não foram poucas as tentativas de destruir as instituições que mantinham de pé nossa primeira experiência democrática: o fechamento do PCB, em uma decisão controversa do Superior Tribunal Eleitoral foi somente a primeira delas; depois tivemos a República do Galeão, que contribuiu decisivamente para o suicídio de Vargas; daí veio a tentativa de impedir a posse de JK, sustada graças ao general Teixeira Lott, que leu e entendeu o que estava escrito na Constituição sobre o papel das Forças Armadas; e ainda tivemos as revoltas de Jacareacanga e Aragarças contra o mesmo presidente, cujos protagonistas, militares da Aeronáutica, foram parar diretamente no lixo da História. E então tivemos a renúncia inexplicável de Jânio e, na sequência, a tentativa de golpe dos ministros militares, querendo impedir a volta de João Goulart.
A crise é superada, mas com um preço elevado: a limitação dos poderes do vice-presidente, com a emenda do parlamentarismo. Até que, finalmente, depois de tantas vontades abortadas pela coragem de muitos e a força das leis, veio o golpe. Lição aprendida: a Democracia verga e quebra. Foram 21 anos de restrições às liberdades, oposição amordaçada (e, por vezes, violentada e morta), instituições claudicantes. Mas o desastre da gestão econômica dos militares e a mudança do cenário internacional, com o governo Jimmy Carter nos Estados Unidos, fizeram os ventos soprarem em favor de uma retomada democrática no Brasil.
E, desde então, foram décadas para a recuperação do estrago dos governos dos generais: estabilização da moeda, recuperação de crédito, políticas fiscais mais sensatas, medidas necessárias de melhor distribuição de renda e, principalmente, uma nova Constituição, criando um novo marco institucional no país, remodelando e aperfeiçoando a experiência democrática dos anos 40 e 50. Um exemplo: na Constituição de 46 ainda se viam direitos como “todo poder emana do povo e em seu nome é exercido”. Em 1988, a redação passou a ser: “todo poder emana do povo que o exerce por meio dos seus representantes”. Claro e direto: voltamos ao jogo.
No entanto, nos últimos anos, acompanhamos um desgaste democrático, um esgarçamento da ideia de que a Democracia pode ser uma realidade duradoura para nós. Muitos brasileiros concordam com a ideia de intervenção, fechamento de Congresso, STF, restrição das liberdades, censura, como se, de repente, despertássemos em 1970 com as pessoas gritando nas ruas com a vitória da Seleção e as pessoas gritando nos porões com a violência dos seus carrascos.
E por que essa nostalgia - que é a crença de que existiu um tempo melhor e que é possível resgatá-lo - nos assombra? Basicamente porque não soubemos avançar nas promessas da Democracia. E essa demora em implementar políticas que ampliassem a experiência democrática, ou a incompetência, cansou uma parte da população, que não viu e não vê mais vantagens no modelo. Pelo contrário: veem que há inclusão de diversas pessoas que estavam atrás na fila dos direitos, mas a fila deles não andou ou, pior, regrediu.
Esse é um ponto nevrálgico da crise que vivemos hoje. Muitas pessoas de classe média baixa, ou da classe média média, se sentem culpabilizadas pela enorme dívida social que temos com as pessoas pobres do país. Sentem-se vilões sem terem praticado nenhum crime. E se revoltam da pior maneira, alimentando um ressentimento contra os grupos que são incluídos, mesmo que precariamente, no mundo de direitos e consumo que eles levaram tanto tempo, sem apoio de ninguém, pra alcançar. É como ver alguém ganhando um par de sandálias e você, com os sapatos furados, reclamar que também precisa de ajuda e, então, ouvir: mas você está de sapatos! Está reclamando do quê?
Recuperar os passos da Democracia e avançar nos seus propósitos exige, urgentemente, um esforço de conciliação entre esses grupos que compõem a imensa maioria da população brasileira. E, para isso, é preciso lembrar, antes de qualquer coisa, que o obstáculo a ser superado é o da falta de direitos, da falta de equidade, da falta de políticas transparentes e eficazes que permitam diminuir o enorme fosso da desigualdade social que gera pobreza, doença, ignorância, violência, embaçando qualquer perspectiva de futuro. E não o confronto surrealista entre pobres e remediados.
Na mitologia grega, o Minotauro era um monstro que matava, todos os anos, sete rapazes e sete moças que Atenas era obrigada a mandar para Creta, onde o Minotauro vivia, dentro de um labirinto. Teseu, filho de rei grego, voluntaria-se para ir com o propósito de matar o feroz animal e livrar sua cidade desse sacrifício insano. Não sabia o que fazer, mas tinha a disposição de fazê-lo. Chegando à Creta, a filha do rei Minos, Ariadne, apaixona-se por Teseu e resolve ajudá-lo em sua empreitada. Isso significava uma traição ao seu pai, mas, ao mesmo tempo, o amor permitira a ela ver com clareza a injustiça daquele sacrifício. E então, ela se dispõe a contribuir para que os fatos sejam corrigidos. Ariadne entrega uma espada para Teseu e também a ponta de um novelo de lã. Assim, ele poderia entrar no labirinto, matar o monstro e depois sair dele, ileso. Contanto que ela ficasse segurando o novelo para ele.
Esse mito é uma alegoria precisa da situação na qual vivemos hoje. Para fazermos a coisa certa, precisamos dar as mãos aos que, muitas vezes, consideramos nossos adversários. Precisamos confiar que eles continuarão segurando o novelo que garante nossa liberdade, nossa própria vida. Só a disposição em nos unirmos e a confiança que temos de depositar neles pode permitir que vençamos o verdadeiro inimigo, que se esconde no labirinto e consome o nosso futuro.
A Democracia está por um fio. O fio que une, o fio que possibilita uma ação conjunta, o fio que permite que não nos percamos, o fio que aponta uma saída. O fio da confiança, que é o compartilhamento da mesma fé em uma sociedade melhor. O fio da tolerância. Da esperança.
* Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica e professor no Curso Positivo.
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