A uniformização do bem e do mal, que também se manifesta na revisão ou na anulação da história, tende à não aceitação da alteridade, como tão bem nos mostraram as criações sociais de Hitler e Stálin. Sofia Madureira para o Observador:
Lucky
Luke fumava. Agora tem uma palha entre os dentes. A palavra “nigger”
foi substituída pela palavra “slave” nas Aventuras de Huckleberry Finn.
Por enquanto, as pirâmides do Egipto e o Padrão dos Descobrimentos
permanecem de pé — mas não sei durante quanto tempo, afinal, umas
resultam do trabalho escravo, e o outro homenageia a apropriação do
mundo por via marítima, subsidiada pelos valores quatrocentistas. Porém,
com os impostos do tabaco que Lucky Luke já não fuma, os Estados
continuam a financiar serviços fundamentais, mesmo de saúde. A palavra
“nigger” é dita entre negros, como forma de tratamento, ainda que mais
nenhuma etnia a possa pronunciar. E o racismo existe, a escravatura
existe. No nosso país como noutros: do tráfico de mulheres ao de
imigrantes ilegais que vivem em condições infra-humanas em explorações
agrícolas ou industriais.
Estes
que propõem o arremesso de monumentos, estátuas, e extração de plantas
pela raiz, são os mesmos que se indignaram, e bem, com a destruição de
Palmira. Como somos, cada um de nós responsáveis pela exploração laboral
em cada vez que usamos os nossos mais-que-perfeitos smart phones.
Entre
quem cavalga a última questão fraturante e os que aceitam que não há
inocentes, há diferenças fundamentais, como a do branqueamento através
do politicamente correcto. Seja com o cigarro que passa a palha, ou com o
“nigger” que passa a “slave”, isto é, seja por símbolos, por palavras,
ou por comportamentos, estamos no espaço orweliano da novilíngua que,
mais do que apagar a velhilíngua, apaga o homem velho, aquele que pensa,
aquele que se relaciona com a verdade. A verdade como ela existe:
cigarros, niggers, racismo, escravatura. E diferenças de valores,
diversidade política, religiosa, étnica, sexual. E a extraordinária
complexidade humana no tempo, como na história. A capacidade de cometer
as piores barbáries e os actos de maior elevação.
A
uniformização do bem e do mal, que também se manifesta na revisão ou na
anulação da história, como na arte, na literatura, ou no ensino, tende à
não aceitação da alteridade, como tão bem nos mostraram as criações
sociais de Hitler e Estaline.
A
democracia espelha-nos: nos nossos vícios, nas nossas virtudes, nos
pecados cometidos e por cometer. Somos nós à procura do melhor de nós,
co-criadores do mundo que fazemos.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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