Escrever é uma atividade nobre demais para ser praticada por quem, sem ter nada melhor do que dizer, diz a primeira e pior coisa que lhe vem à mente. A crônica diária de Paulo Polzonoff Jr. para a Gazeta:
João
Paulo Cuenca está numa enrascada. Em junho, num surto criativo típico
dos artistas de uma geração sequestrada pela política e pelo narcisismo,
o escritor, mais conhecido por seu antibolsonarismo do que por sua
literatura, foi ao Twitter para expressar toda a compaixão
revolucionária de que é capaz. Para tanto, ele se apropriou da frase do
canalha francês Jean Meslier para dizer: “O brasileiro só será livre
quando o último Bolsonaro for enforcado nas tripas do último pastor da
Igreja Universal”.
Na
época, Cuenca foi demitido da Deutsche Welle Brasil, em cujo site
mantinha uma coluna. E chorou e chorou. Mas o pior ainda estava por vir.
Sentindo-se ultrajados e ameaçados pela paráfrase cuenquiana, vários
pastores da Igreja Universal entraram com ações na justiça pedindo
reparações. O que é reprovável, mas também é legítimo.
Nenhum
juiz em sã consciência condenaria um escritor menor por uma bobagem
dita nas redes sociais. Mas, como nem todo juiz tem a consciência sã, o
esperado aconteceu. E, numa das ações, Cuenca foi condenado a pagar R$10
mil em indenização a um pastor de São Paulo. O Twitter também foi
“condenado” a apagar a conta que Cuenca usava para suas diatribes
verbais – o que até agora não aconteceu e duvido que acontecerá.
O
escritor está feliz – se é que essa palavra se aplica ao personagem.
Afinal, a verborragia dele encontrou eco na estupidez do Judiciário e
agora está sendo replicada em todos os cantos. Inclusive aqui.
Pilniak
O
caso de Cuenca vs. pastores da Universal me fez lembrar de Boris
Pilniak. Um escritor do qual você provavelmente nunca ouviu falar e
muito menos leu. Boris Pilniak nasceu Boris Andreievich Vogau e escreveu
apenas duas obras, “O Volga Desemboca no Mar Cáspio” e “O Ano Nu”.
Pilniak,
dizem as boas línguas, era um cara legal e até talentoso. Como todo
escritor digno da alcunha, ele tinha lá seus demônios que tentava
exorcizar por meio da literatura. E, numa época e num país (um império!)
em que o cotidiano era sinônimo de revolução e política, ele não estava
alheio aos meandros do poder e do aparato repressivo soviético.
Era
um bom comunista, o tovarish Pilniak. Do tipo que talvez fizesse
paráfrases de revolucionários franceses só para agradar seus superiores e
seus leitores, também eles cheios de ímpeto revolucionário. Uma pena
ter escapado a Pilniak a obrigação de depositar oferendas à burocracia
da URSS. Isso lhe custaria a vida.
A
vida. E não R$10 mil e uma conta de rede social suprimida. A vida. Tudo
porque Pilniak, talvez certo do próprio talento e da compreensão dos
tovarishs beletristas, ousou publicar seus livros no exterior sem
aprovação prévia da burocracia da União Soviética. E, por isso, só por
isso, foi fuzilado com um tiro na nuca.
Do
conforto do meu apartamento neste dia nublado, imagino Pilniak
exultante ao pôr o ponto final em seu romance “O Ano Nu” (que não li).
Imagino-o celebrando a publicação, temendo as críticas, ansiando pela
reação dos leitores, antevendo o efeito de suas palavras em quem se
atrevesse a encarar sua obra.
Tudo
para morrer por falta de uma autorização, um carimbo, um meneio de
cabeça de um sacerdote qualquer do Estado. E para ter seu livro e sua
biografia soterrados pelo tempo.
Palavras & consequências
O
sacrifício de Pilniak transforma os sofrimentos do jovem Cuenca quase
numa piada sem graça. E ressalta o ativismo de sofá dos artistas
brasileiros que não arriscam absolutamente nada, uma vez que vivem de
editais, e que não entenderam ainda que palavras têm consequências.
Algumas dessas consequências são justas; outras, injustas. A isso se dá o
nome de vida.
Ao
expressar seu ódio por Jair Bolsonaro e pelos evangélicos de uma
denominação específica, Cuenca atiçou o ódio dos pastores da Igreja
Universal que, numa ação aparentemente orquestrada, entraram com
processos em diversas praças. Se é uma atitude reprovável, ainda mais
vinda de religiosos? Sem dúvida! Mas só mesmo nos delírios autoritários
de escritores neocomunistas a vida é reta, justa, inconsequente e
esteticamente perfeita.
Pilniak descobriu da pior forma a consequência de seus atos, palavras e omissões. Cuenca vai descobrindo aos poucos que escrever é uma atividade nobre demais para ser praticada por quem, sem ter nada melhor do que dizer, diz a primeira e pior coisa que lhe vem à mente
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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