Pouco conhecido no Brasil, Leo Strauss, teuto-americano de origem judaica, foi um dos mais importantes filósofos do século XX. Ensaio de Pedro Henrique Alves para a Gazeta:
Leo
Strauss (1899-1973) é o típico filósofo incômodo para a modernidade,
não porque foi um tradicionalista inconveniente, fechado aos avanços
civilizacionais, mas sim porque ele via no próprio método moderno de
investigação filosófica uma falha terrível que fazia da Filosofia
Política, a partir do século XVII, uma constante prostituição
ideológica.
Mas
antes de entender a sua crítica, devemos entender que Strauss, esse
filósofo raiz, uma das cabeças mais independentes no meio conservador,
não se importava de forma alguma com esses rótulos políticos, apesar de
encontrar no pensamento liberal-conservador o filete de sanidade que o
progressismo abandonou a partir da modernidade.
Mas
quem de fato foi o tal filósofo teuto-americano que ousou não se dobrar
ao historicismo moderno, ao dogma inconteste da modernidade, ao
conceito já pré-aceito como condição mesma de seriedade acadêmica? Quem
foi o judeu amigo de Eric Voegelin (1902-1985), Raymond Aron (1905-1983)
e Étienne Gilson (1884-1978)? O filósofo que se correspondeu ativamente
por cartas com intelectuais do calibre de Isaiah Berlin (1909-1997),
Gerhard Krüger (1902-1972), Hans-Georg Gadamer (1900-2002), Alexander
Altmann (1906-1987), Hannah Arendt (1906-1975), Walter Benjamin
(1892-1940) e Alexandre Kojève (1902-1968)? O pensador
liberal-conservador que renovou o debate filosófico nas escolas modernas
de hermenêutica e filosofia política nos Estados Unidos e na França? O
professor acadêmico que influenciou até mesmo os governos de Ronald
Reagan (1911-1989) e George W. Bush? Vamos tentar responder.
Vida e atuação acadêmica
Leo
Strauss nasceu em 20 de setembro de 1899, em Kirchhain, antiga Prússia e
atual Alemanha. Apesar de seus pais, Hugo Strauss e Jennie David
Strauss, não serem fervorosos na fé que professavam, isso não impediu
que insistissem em uma educação familiar clássica aos moldes judaicos,
ao mesmo tempo que apresentavam academicamente os filhos ao mundo
moderno, porém ainda rigoroso, dos colégios laicos do mundo alemão. Seu
pai, comerciante de implementos agrícolas, sempre pediu a Strauss que
ele se dedicasse à erudição, e, como veremos, foi isso o que ele fez até
o último dia de sua vida.
Alguns
biógrafos afirmam que, ainda nos anos de estudos no secundário, Strauss
se interessou pela filosofia após ler Friedrich Nietzsche (1944-1900) e
se apaixonar pela ideia niilista. No entanto, tal afirmação é um tanto
quanto duvidosa, já que carece de confirmação. O que é certo, todavia, é
que seu desenvolvimento acadêmico se deu principalmente na esteira
neokantiana do debate ético; a consequência dessa aproximação dos
espólios filosóficos de Emmanuel Kant (1724-1804) foi um doutorado sob a
orientação de ninguém menos que Ernest Cassirer (1874-1945). Sua tese
foi defendida em 1921, no mesmo ano em que recebeu o título de doutor
pela Universidade de Hamburgo.
Após
finalizar o doutorado, migrou para a Universidade de Friburgo para ser
aluno de Edmund Husserl (1859-1938) e Martin Heidegger (1889-1976); após
um ano, em 1925, foi convidado a ser pesquisador na Academia Judaica.
Cabe salientar que é nesse ínterim, de 1923 a 1925, que Strauss começa a
manter um contato mais próximo dos partidários do sionismo, bem como
com os demais filósofos relacionados à crítica política de seu tempo.
Após
iniciar sua pesquisa no ramo da Filosofia da Religião, e fazer uma
crítica contundente à concepção histórica de religião de Baruch de
Espinosa (1632-1677), Strauss recebeu uma bolsa de estudos da Fundação
Rockfeller para estudar primeiramente em Paris, e logo após, em
Cambridge, em 1938. Em 1939, foi para os Estados Unidos, onde faria
definitivamente a sua carreira de intelectual. Na terra do Tio Sam,
lecionou na New School for Social Reasearch até 1949; depois atuou na
Universidade de Chicago como professor do departamento de Ciência
Política até 1968, ano de sua aposentadoria.
Um
dado interessante de sua vida pessoal que cabe salientar aqui é que, no
ano de 1932, Strauss se casou com Marie Bernsohn Strauss (?-1985), e,
apesar de nunca terem tido filhos, adotaram a sobrinha Jenny Strauss
Clay, filha de sua irmã, Betty Strauss, e do historiador alemão Paul
Kraus (1904-1944). Jenny é hoje professora do departamento de filologia
da Universidade da Virgínia.
Cabe
salientar também, como aponta seu discípulo Allan Bloom (1930-1992),
que Leo Strauss não era exatamente um homem de sociabilidade fulminante,
de carinhos comunitários frondosos. Ele assemelhava-se mais a um gato
incomodado com excesso de pessoas ao seu redor, sempre predisposto a se
recolher na solidão de seus estudos e reflexões.
De
fato, como bem apontamos no início deste ensaio, o seu ciclo de amizade
e contatos foi realmente grande e célebre, o que demonstra uma boa
vontade para o intercâmbio de ideias entre aqueles que possuem erudições
a compartilhar. No entanto, não há dúvidas de que preferia o silêncio
intelectualizado de um livro, do que as redes, conexões ou grupos de
estudos ― tão comuns em seu tempo.
Podemos
dizer, de certa forma, que Strauss se escondia do mundo popular para
encontrar-se com os filósofos em seu escritório. Allan Bloom afirma que
Strauss localizou no mundo contemporâneo uma histeria social da qual
ele, definitivamente, não queria fazer parte. Entenderemos mais adiante a
que histeria se refere Strauss.
Tal
característica ressoa em toda a sua filosofia, e entender isso é
demasiado urgente para iniciar logo essa empreitada; pois bem, chegou a
hora, teremos que enfrentar o árduo trabalho de falar sobre o pensamento
de alguém que deliberadamente escondia suas ideias a fim de que somente
os obstinados e centrados na busca do saber filosófico clássico
pudessem encontrar.
O fundamento straussiano
Não
se discute que Strauss se diferencia e muito dos filósofos políticos
modernos. Geralmente os biógrafos intelectuais de Strauss ― tal como a
professora Talyta Carvalho, no ótimo livro "Leo Strauss: uma introdução à
sua filosofia política" ― iniciam essa árdua tarefa de explicar suas
ideias de forma cronológica, acompanhando seu desenvolvimento acadêmico;
eu, todavia, adotarei outro caminho, exporei pura e simplesmente as
ideias do filósofo como sendo um prédio já construído, focalizando meu
canhão de luz nas regiões que julgo serem os pontos principais para a
compreensão de seu pensamento.
Optei
por esse caminho por um motivo muito simples: tal exposição cronológica
é facilmente encontrada ou na internet ou na supracitada ― e,
novamente, excelente ― obra de Talyta Carvalho. Desta maneira,
observaremos as ideias de Strauss tal como um engenheiro avalia uma
construção já finalizada, tentando reconstruir mentalmente seus
alicerces, somando as vigas e avaliando onde estão as sustentações para
as suas afirmações.
Pois
bem, a primeira coisa que temos que entender é a crítica de Strauss ao
historicismo iluminista/moderno, pois isso influencia diretamente na
compreensão política do homem no mundo. E política, segundo Strauss, não
é separável da filosofia em si mesma; assim, fazer filosofia requer
automaticamente compreender política. A crítica ao historicismo do
acadêmico será o cerne mesmo de sua filosofia e modo de vida, aquilo que
fará de suas ideias algo tão diferente, incômodo e profundo que, até
hoje, o “straussianismo” está em profundo e acalorado debate entre seus
entusiastas, críticos e curiosos.
Ainda
na década de 1930 a 1940, quando Thomas Hobbes (1588-1679) era o centro
de sua crítica filosófica e política, Leo Strauss começou a perceber
que o conceito de ética para os modernos, a partir do iluminismo,
tornou-se algo vazio, sustentado tão somente por uma vontade popular
doutrinada e por um positivismo jurídico que formava, no final, um corpo
tirânico anormal.
Na
obra "Direito Natural e História", Strauss destrincha a alma do
historicismo moderno; afirma que o centro da ideologização do pensamento
moderno está no abandono do conceito de natureza das leis morais, e na
diferenciação de fato-valor ― veremos isso no próximo tópico.
Para Strauss, a modernidade, a partir de Nicolau Maquiavel (1469-1527) e Thomas Hobbes, iniciou um processo de apartamento das regras sociais, antes ligadas pela noção de Natureza-Convenção (Tradição), agora ligadas tão somente por positivações jurídicas racionalistas e por uma confusa e sempre maculada noção de “natureza humana”. O que a tal noção social de Natureza-Convenção sustentava, afinal(?), nada mais nada menos do que o milenar Direito Natural. Tal alicerce social engolido pelo empirismo moderno, na verdade, é justamente o que promovia a possibilidade da sociabilidade entre os indivíduos, o senso de justiça comunitário, e, em suma, a coesão social.
Obviamente
que o conceito de “convenção” e “tradição” não cabia mais à revolução
intelectual racionalista e laica ascendida pelo iluminismo extremista ―
principalmente de linha francesa. Por um tempo, aponta Strauss, a noção
de universalidade ética pautada na “natureza humana” se manteve robusta,
pois colaborava com a ânsia revolucionária contrária ao status quo
habitualmente balizado na rechaçada tradição religiosa. Ora, o discurso
de que os homens são naturalmente livres, mas que por todos os lados os
grilhões do despotismo inculto os mantêm agarrados às pedras da tradição
ortodoxa, é, talvez, o discurso mais sedutor para o individualismo
pós-renascimento. Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), afinal, construiu
sua obra intelectual sobre esse novo conceito de história
autossuficiente.
No
entanto, como aponta o autor, quando se quebra a noção mesma de
tradição e experiência civilizacional, a ideia de natureza passa
paulatinamente a ser corrompida. Logo, o individualismo como filosofia, e
a própria noção inculturada da teologia protestante, as famosas suas
solas, deram ao homem moderno uma noção antinatural sobre a natureza que
“malemá” ele seguia. Querendo cada um o seu bem pessoal ― ou o do seu
grupo ―, perdendo sistematicamente a percepção de universalidade ética, a
única universalidade concebida passou a ser a da razão ― um salve a
René Descartes (1596-1650). Tudo isso, é claro, sob os recentes moldes
empiricistas e cientificistas, os novos dogmas religiosos da laica
modernidade. A certeza, dizia cada canto filosófico da modernidade, não é
mais matéria da moral tradicional.
Mas
um problema, logo captado pelos revolucionários, fazia mais barulho do
que a descida gloriosa da guilhotina na Praça da Concórdia; ora: se não
se arrogasse nenhuma regra ética universal impositiva, para além da
normas constitucionais, os próprios princípios das revoluções modernas
se tornariam relativos e, logo mais, ignoráveis, dispensáveis e ― deus
nos livre ― o novo status quo a ser batido. O jeito era encontrar uma
universalidade temporal, que agisse tal como as verdades transcendentes
clássicas.
Sobre
isso, comenta Guilherme da Silveira no artigo "Leo Strauss: em defesa
da filosofia", publicado na Revista Contextura nº 15: “(...) o local e o
temporal passaram a ter mais valor do que o universal, e toda
legalidade é restringida a um direito positivo”. Desta forma, a
modernidade derrubou a universalidade ética pautada no Direito Natural e
levantou uma capenga universalidade ética positivista, baseada no
império da vontade dos intelectuais normativistas, e nas culturas de
momento de cada país.
Podemos
resumir que o historicismo, no fim, tornou-se um método de criação de
uma realidade racionalista aparte da natureza ética clássica, da
percepção mesma dos indivíduos e suas consciências. Esse racionalismo
tinha a missão de encerrar o horizonte de “certo e errado” dos homens,
nos julgamentos analíticos dos filósofos profissionais em calcular os
insumos morais necessários para conseguir uma universalidade doutrinária
que ditasse os moldes de uma nova política qualquer. Rousseau previu
esse movimento intelectual em seu contrato social e o denominou de
“religião civil”; aliás, o próprio conceito de “contrato social” é tudo
isso que estamos descrevendo acima.
A
crítica straussiana ao erro da Teoria do Conhecimento progressista é
longa e profunda, não temos o espaço necessário para destrinchá-la aqui.
Mas antes de finalizar este tópico, devemos fazer referência à
espetacular concepção de “insuficiência histórica” do autor. Strauss dá
seu golpe de misericórdia no historicismo quando afirma que a própria
história mostra como o projeto de universalidade ética local, tentada
ferrenhamente pela modernidade no século XX, falhou de forma brutal ―
como bem sabemos.
Não
só não conseguiram erigir a tal universalidade ética histórica, como,
quando tentaram com mais afinco, seguindo as regras doutas dos gurus de
mundos perfeitos, descambaram a humanidade em morticínios tão horrorosos
e espetaculares que até os demônios se sentiriam assustados com o
resultado.
Strauss
finaliza afirmando que as ideologias modernas, as filhas desse
historicismo de éticas de proveta, arrogam-se agora como métodos seguros
de compreensão “científica” da realidade, as intérpretes racionais da
história ― tanto passada, quanto daquela que há de vir.
O
problema de romper a compreensão política clássica, sustentada nos
pilares de “Jerusalém-Atenas”, Cidade de Deus e a Cidade dos Homens, é a
que a política deixa de ser a matéria do possível, do desenvolvimento
humano, isto é: do finito.
Para
Strauss o erro moderno está no próprio enfoque, pretensão e julgamento
da filosofia e da política. Ainda em "Direito Natural e História", o
filósofo critica Max Weber (1864-1920) por tentar desassociar fatos de
valores, dizendo que não há fatos que venham a ser entendidos sem a
primeira compreensão de valor daquele que o julga. Isso ocorre desde o
momento que decidimos estudar algo determinado ao invés de outra coisa,
nesse ato mesmo já existe um julgamento de valor.
Nas
palavras do próprio Strauss, no ensaio "Jerusalém e Atenas: algumas
reflexões preliminares", publicado aqui no Brasil no livro "Fé e
Filosofia Política: a correspondência entre Leo Strauss e Eric
Voegelin", pela editora É realizações: “Por mais que a ciência de todas
as culturas proteste sua inocência em relação a todas as preferências e
valorações, ela nutre uma postura moral específica”.
Por
exemplo, negar a tradição civilizacional do Ocidente e a natureza
humana compreendida pelos filósofos clássicos, como se a Tradição e
Natureza não fossem fatores verdadeiramente inclusos na construção
social da civilização, é, per se, algo parcial, ideológico. Um
julgamento de valor político, uma escolha enviesada em detrimento de
outra. Ou seja, o próprio pressuposto historicista do iluminismo se
corrompe após fazer sua primeira escolha moral ― a lembrar: a recusa da
Tradição e do Direito Natural.
Como
querem, então, que acreditemos em sua racionalidade imparcial e em
sociedades científicas? Desde Sócrates e Platão, afirma Strauss, a
política se dá na esteira da busca do melhor governo possível ―
POSSÍVEL, que fique claro ―, desta maneira, encerrar a política temporal
num cientificismo inerrante, de pretensões universais, é em si mesmo um
contrassenso inescapável.
Ao
tentar robotizar o estudo político num montante de tubos de ensaios
sociais, como se a vontade humana, a real matéria-prima da política,
fosse algum elemento laboratorial passível de certezas exatas; mas a
política não é geométrica, um cálculo cujas conclusões são plenamente
profetizáveis, a política é naturalmente volátil e leva conta a
arbitrariedade humana, os jogos de poderes e todas as demais
possibilidades existenciais.
Ao
negar isso, a modernidade acabou por encerrar a sociedade em novos
preconceitos, agora não mais religiosos, mas racionalistas, preconceitos
que não levam em conta a realidade avaliada a partir daquelas ideias e
princípios realmente humanos. A política moderna tornou-se uma espécie
de produto construído por deuses pseudofilósofos em jalecos
laboratoriais.
O
historiador Paul Hazard (1878-1944), sobre as pretensões empiricistas e
cientificistas da modernidade, afirma: “O espírito geométrico não é tão
ligado à geometria que não possa dela ser retirado e transportado a
outros conhecimentos. Uma obra de política, de moral, de crítica, talvez
mesmo de retórica, será mais bela, em todos esses casos, se produzida
pelas mãos de um geômetra”.
Comentando
a obra "Da Tirania" de Leo Strauss, no livro já citado, "Leo Strauss:
uma introdução à sua filosofia política", Talyta Carvalho observa:
"Embora o texto seja em essência um comentário, é original a conclusão de Strauss de que a ambição moderna por um estado homogêneo, universal e totalmente igualitário seria na realidade a constituição de uma tirania, e não a melhor forma de sociedade que poderíamos ter. Para o pensador, a filosofia moderna se colocou um ideal social que é em si mesmo uma ilusão, pois em vez de produzir a melhor ordem para os homens, produzirá sua destruição.Ao tentar criar um novo método de conhecimento político, a modernidade acabou corrompendo suas próprias pretensões, finalizando a jornada renascentista numa nova religião, talvez mais dogmática que qualquer catolicismo, a ideologia."
O filósofo pródigo
Para
o filósofo aqui explanado, a única forma de buscar novamente uma reta
compreensão filosófica da política é retornar aos braços dos filósofos
clássicos, a fim de lê-los não com os métodos de análise hermenêuticos
modernos, não a partir das ponderações empiricistas de isenção, da
escola crítica frankfurtiana, não através dos mil comentaristas e
especialistas em Parmênides, Platão e Aristóteles que entopem as
livrarias e universidades, mas ler os clássicos a partir deles mesmos,
imbuídos da mentalidade que eles ostentavam, no contexto filosófico e a
partir das dúvidas epistemológicas que eles mesmo carregavam na ocasião
de suas considerações.
Leo
Strauss argumentava que as conceituações primeiras, assim como as
dúvidas fundamentais sobre o que é política, homem, verdade, realidade,
conhecimento, cidade, justiça, etc., são as estruturas de qualquer
reflexão social e política, e abster-se desse conhecimento clássico, ou
obtê-lo somente por meio de compilados, resumos ou comentários, é negar a
explicação das ideias ofertada pelo próprio autor delas.
Tal
compreensão o aproxima consideravelmente do caminho traçado por outro
eminente intelectual conservador do século XX: Eric Voegelin, que também
voltou aos clássicos de forma radical, inclusive lendo-os na língua
original. Voegelin também arrogou ser esse o único caminho para a reta
compreensão política; como método para tal imersão, teorizou
profundamente a “anamnese”, método filosófico que, em suma, significa
realizar um DETOX mental e intelectual para bem compreender aquilo que
os clássicos disseram, e não o que os especialistas disseram que os
clássicos disseram. A leitura dos clássicos gregos era a condição mesma
de filosofia, segundo o professor Strauss e Voegelin; por isso mesmo
que, após a década de 1960, Strauss se viu renegado por muitos dos seus
pares filosóficos na academia ― caminho não muito diferente do qual
Voegelin enfrentou.
A
proposta de Leo Strauss era simplesmente inconveniente, pois cobrava de
seus pares filósofos um esforço de releitura dos clássicos que a
modernidade ― “intérprete fiel” e “racionalizadora inconteste” da
vontade humana ― já há muito tempo havia julgado não ser mais a
prioridade, cabendo à intelectualidade moderna somente a interpretação
da interpretação, a análise da análise, e não a leitura crua dos pilares
gregos. Strauss lembrou aos filósofos que eles deveriam visitar seus
pais, ao invés de fazer proselitismo intelectual com as heranças deles.
Para
Strauss, em suma, era um absurdo filosófico tantos especialistas em
Habbermas e Foucault (1926-1984), e tão poucos abnegados filósofos
discípulos de Sócrates e Platão, aqueles que erigiram não uma escola
interpretativa, ou uma ideologia moderna famosinha, mas sim a própria
estrutura do conhecimento filosófico ocidental.
A escrita exotérica e a vocação do filósofo
Em
"Perseguição e a Arte de Escrever", livro também publicado aqui pela É
realizações, Strauss anuncia seu método de escrita filosófica,
denominada “exotérica”. A técnica adotada consiste em não escrever
abruptamente sobre as conclusões às quais suas pesquisas e estudos
chegaram, mas sim escondê-las por de trás de uma camada linguística que
só revelará seu conteúdo para aqueles que de fato estão abertos a
investigar os pormenores do conhecimento ali expresso. Ou seja, a
escrita filosófica, para Strauss, deve ter duas camadas, a primeira (a
explícita) deve conduzir o leitor a uma viagem conjectural, por vezes
árdua e desconfortável, para que somente depois revele as verdades da
camada inferior (a implícita), a camada que guarda a conclusão ao qual o
escritor se propôs a realmente chegar.
Tal
técnica é muito parecida com a forma reflexiva dos filósofos clássicos,
basta ler os diálogos platônicos ou as reflexões metafísicas de
Aristóteles para perceber isso. Para o professor teuto-americano, era
fato que a filosofia não era para todos, e por isso mesmo ela não
deveria ser algo escancarado irrefreavelmente. Não porque a filosofia
deva ser inacessível ou monetariamente elitista, mas porque ela requer
condições para ser manuseada.
Um
indivíduo que se aventura na arte do conhecimento filosófico deve estar
preparado para fazê-lo com sacrifícios existenciais, e não por meros
fetiches grupais e sociais. A filosofia é vocação, e uma vocação das
pesadas, um modo de vida que não lhe pede apenas parte de seu tempo,
algumas horas do seu dia, ela requer a sua vida como um todo, pede a
cada instante um ânimo novo e concentrado para perscrutar o Ser.
Para
os clássicos, ser filósofo não era um título concebido pelo MEC, ou um
status qualquer a alguém que mostre certa inteligência prática; ser
filósofo é um modo de vida, uma inclinação quase metafísica em direção à
verdade. Leo Strauss brada corajosamente à modernidade aquilo que ela
ainda não está preparada para ouvir: “a filosofia não é para qualquer
um”.
O conservadorismo de Strauss
A
percepção sobre o conservadorismo de Strauss é quase automática quando
perpassamos todo este itinerário ensaístico. Ele conclama uma volta
virtuosa aos clássicos a fim de balizar o reto conhecimento da política;
afasta de sua visão o historicismo ideológico da modernidade, tal como
todos os pensadores conservadores o fazem; encontra no elo
Natureza-Tradição o sustentáculo da sociedade, e, por conseguinte, na
Lei Natural, a justificativa atemporal para constância civilizacional,
contrária à revolução metodológica dos ideólogos; e, por fim, recoloca a
filosofia nos moldes originários, apartando a reflexão política da
concepção cientificista e popular do iluminismo.
Ao
escrever "Liberalism Ancient and Modern", Strauss renova a compreensão
de “liberalismo” na medida em que desassocia o liberalismo de uma
compreensão arrastada de progressismo. Ele afirma que liberalismo, na
acepção clássica, é sinônimo de busca de erudição e conhecimento, a
única via de real libertação. Por isso, e somente por isso, o conceito
clássico de “Educação Liberal” faz sentido.
Na
modernidade, afirma Strauss, tanto o liberalismo quanto o
conservadorismo estão do mesmo lado político. Se, por um lado, o
liberalismo recusa o igualitarismo comunista, por ocasião de seus
métodos antidemocráticos, pela supressão dos indivíduos e seus anseios; o
conservadorismo, por outro, renega a empreitada socialista de igualdade
e a dispensa da Tradição como velharia inútil.
Para
os conservadores, diz o professor, a heterogeneidade é expressão mesma
da natureza humana, e, por isso, suprimi-la seria o mesmo que ser
ditatorial na raiz; da mesma maneira, o conservadorismo, ao contrário do
comunismo, considera a tradição como componente indispensável de avanço
social e manutenção ética. Politicamente dizendo, os cemitérios (isto
é, a tradição) são as ágoras onde as ideias mais promissoras são
defendidas e levadas à prática.
Talvez
essa seja a mais explícita confissão conservadora de Strauss, dado que
ele oferece tanto ao liberalismo clássico, quanto ao conservadorismo,
ponderações elogiosas e o caráter de herdeiro da filosofia clássica.
Segundo Strauss, o liberalismo é o herdeiro da filosofia clássica à
medida que conhecimento dos fundamentos é condição para libertação e
busca de melhoria social; da mesma forma é o conservadorismo,
principalmente pela manutenção da concepção de natureza humana e apreço
pela manutenção tradicional das benesses da civilização.
Devido
a considerações como essas que, na década de 1980 a 1990, ao rastrear
os impulsos ideários de dois dos governos republicanos nos EUA, muitos
analistas políticos relegaram a Leo Strauss boa parte dessa influência
intelectual sobre as decisões de estado dos governos de Ronald Reagan e
George W. Bush.
Alerta aos palpiteiros
Com
certeza Leo Strauss é aquela excentricidade filosófica que faz qualquer
um parar e analisar, nem que seja apenas para repudiá-lo ou admirá-lo. A
coragem de contrapor os principais dogmas acadêmicos, estando do lado
de dentro da academia, na matéria que deveria ser o baluarte de defesa
do historicismo, é algo quase heroico. Suas críticas podem ser chamadas
de reacionárias, incômodas e antiquadas, mas jamais poderão ser
consideradas irrelevantes.
Ao
conservadorismo, serviu de alerta aos palpiteiros neoconservadores que
se acotovelam nas redes sociais em busca de prestígio, mostrando a eles
que a Filosofia Política é muito mais do que posts no Facebook, e
lacrações no Twitter. O homem que praticamente sozinho teve a coragem de
peitar o deus inconteste da modernidade e seus métodos deveria no
mínimo ser lido e respeitado.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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