MEDIÇÃO DE TERRA

MEDIÇÃO DE TERRA
MEDIÇÃO DE TERRAS

domingo, 8 de novembro de 2020

Julgando vítimas

 



Exatamente como ocorreu com Ângela Diniz, quem parece ter sido julgado no caso de Mariana Ferrer não foi o acusado, mas, mais uma vez, a vítima. Via Gazeta, artigo de Carlos Ramalhete, no alvo:


Quase 44 anos atrás, o caso Doca Street movimentou o Brasil. Resumindo muito: Ângela Diniz, uma senhora rica e desquitada (coisa então escandalosa) de 32 anos, foi assassinada com três tiros no rosto e um na nuca pelo seu amante, que poucos meses antes havia largado a esposa milionária e os filhos para ficar com ela. A razão do crime, segundo o caríssimo advogado do assassino (nada menos que um ex-ministro do Supremo Tribunal Federal!), teria sido a “legítima defesa da honra”. Que honra seria esta? A de Doca, o amante, ele mesmo um adúltero confesso e aparentemente um proxeneta; os ciúmes doentios do assassino o teriam levado a crer que ela seria culpada de violar-lhe a tal “honra”. Quem foi julgado no processo, então, como não poderia deixar de ser, não foi o assassino, mas sua vítima. A “pantera de Minas” teve sua vida sexual esmiuçada e condenada, enquanto Doca, claro, saiu do tribunal um homem livre, leve e solto, agradecendo com gestos de galã ao doentio fã-clube que lá se reunira.

Corta para o caso Mariana Ferrer, ocorrido ano retrasado, quase meio século após o que acabo de contar. A moça era virgem e bela, e tinha então 21 anos de idade. Trabalhava como “embaixadora” – em outras palavras, promotora de eventos – numa boate cara em Florianópolis. Para quem não conhece esta profissão, trata-se basicamente de uma espécie de recepcionista-publicitária: uma moça bonita deixa sua imagem ser utilizada pelo empreendimento, representando-o em eventos sociais e fazendo-se presente nele. Não se sabe exatamente como as coisas se deram, mesmo por ter o delegado encarregado do caso demorado tanto para pedir as imagens das câmeras de segurança que – quem diria – elas já haviam sido apagadas quando o pedido finalmente foi feito.

Em todo caso, o que se sabe é que André de Camargo Aranha, rico, filho de rico e cliente bem-pagante do local, conduziu uma cambaleante Mariana a um canto escondido na noite de 15 de dezembro de 2018, saindo de lá meros seis minutos depois. Na comanda dela estava uma única dose de gim, certamente insuficiente para fazê-la perder o equilíbrio como se vê nas únicas imagens de vídeo levadas a juízo. Estas a mostram descendo uma escada com dificuldade e apoiando-se às paredes, seguida pelo saltitante rapaz. A moça, desarvorada, foi imediatamente para casa num carro de aplicativo, chorando muito; o motorista disse que ela parecia estar drogada. Como tampouco foi feito tempestivamente o exame médico-legal de alcoolemia, não há outras provas de que a virgem pobre e o igualmente pobre motorista do carro falavam a verdade. Mais ainda uma verdade que vai contra os interesses de gente rica, filha de rico e bem-pagante.

Ao chegar em casa, a mãe de Mariana ficou chocada com o forte odor de esperma que a filha exalada, e descobriu em sua roupa de baixo sangue e sêmen. O sêmen era de Camargo Aranha. O sangue, do hímen da sua vítima.

O julgamento ocorreu em segredo de Justiça, mas a moça resolveu usar do que pensava ser o seu direito a ter a voz ouvida, fazendo forte campanha nas redes sociais e angariando farto apoio popular. O que aconteceu, todavia, parece decalcado do caso de há quase meio século: o Instagram apagou-lhe a página, e no fim e ao cabo do processo Aranha foi inocentado. Não se tinha noção de como se passou o julgamento, até que vazamento da página The Intercept Brasil, anteontem, apresentou alguns detalhes.

O primeiro deles é o que parece ser parte do arrazoado do promotor (trocado no decurso do processo, aliás; é o tipo de coincidência que sói acontecer em casos em que pobres são vítimas e ricos, acusados), apresentado pelo Intercept em papel timbrado do Ministério Público Estadual catarinense. Nele vê-se a defesa da estranhíssima figura legal dum “estupro culposo”.

Aos não versados no vocabulário forense, “culposo” é quando há causalidade, mas não intenção. É o caso, por exemplo, de um motorista que perde o controle do carro devido a uma mancha de óleo e atropela alguém que andava na calçada: trata-se de um homicídio culposo. Já quando há a intenção, ao menos presumida, como no caso de alguém que dá um tiro em outra pessoa, é dito doloso. O “estupro culposo” é evidentemente uma contradição em termos, mas vai que cola, não é mesmo? Se há “legítima defesa da honra”, por que não “estupro culposo”?

Confesso que, quando vi a expressão, pensei logo nas famosas “gravidezes por acidente”, em que a pessoa escorrega numa casca de banana e cai já encaixada. Parecia ser coisa do mesmo gênero. Mas ele seria caracterizado, segundo o texto em papel timbrado do MPSC apresentado pelo Intercept, pela incapacidade do acusado de saber que a moça não estaria em condições de consentir na relação sexual. Continua, a meus olhos, coisa do arco-da-velha: afinal, como alguém poderia deixar de notar que a moça não estaria “em condições de consentir” em perder a sua virgindade numa relação de seis minutos totais (incluindo preliminares, claro) com um absoluto desconhecido, num canto escuro do trabalho? Coisa tão normal, afinal.

O quiçá-estuprador-culposo, aliás, mudou sua história na medida em que iam aparecendo elementos. De início, claro, ele não havia feito nada. Nunca encostara na moça, imaginem! Sabia nem quem era. Devia ser uma dessas moças pobres que se jogam no seu colo o dia todo, todos os dias. Depois, ele teria feito sexo oral nela. Seis minutos de sexo oral, talvez. Depois, quando se viu que ela havia sido desvirginada por ele, e que ele deixara farto DNA na vítima, a coisa teria subitamente passado a ser consensual. É que a memória, sabemos todos, por vezes precisa de algum tipo de incentivo para se lembrar dum incidente.

Vale notar, entretanto, que a bizarra expressão “estupro culposo” não se encontra na sentença, e não há como saber se o documento apresentado pelo Intercept é realmente parte dos autos e de autoria do MPSC. A absolvição foi por mera “ausência de provas” de que ele saberia que a moça estava incapaz de dar o seu consentimento – o que, se não me engano, é a exata definição dum novo tipo penal que vim a conhecer agora, mas que não consigo me lembrar qual seja. De qualquer modo, presente ou não na sentença, é inegável que alguma bizarria andou pairando por ali, como antes pairara a “legítima defesa da honra” de Doca no julgamento de Ângela, sua vítima. Afinal, exatamente como ocorreu com Ângela Diniz, quem parece ter sido julgado ali não foi o acusado, mas, mais uma vez, a vítima.

Descobriu-se isto graças também ao Intercept, que vazou trecho de vídeo com cenas tão grotescas que o próprio Gilmar Mendes, não exatamente um varão de Plutarco, chamou-as de “estarrecedoras (...) tortura e humilhação”. O rico e bem-pago advogado do acusado rico, filho de rico e bem-pagante, aparentemente sem saber que já há coisa de 15 anos que inexiste na ordenação jurídica a figura da “mulher honesta”, tentou pintar a pobre Mariana de Messalina. Aliás, mesmo que ainda existisse tal lamentável figura em nosso direito, uma moça virgem e trabalhadora indisputavelmente estaria nela. Não que isso interesse, na medida em que a dignidade feminina é tamanha que nem mesmo uma sua suposta “desonestidade” a poderia diminuir ou negar.

Desta dignidade, porém, o nefando rábula não parece sequer cogitar. Insistiu em mostrar fotos da moça vestida, mas nas posições sensualizantes que hoje são moda até mesmo nas redes sociais, como se aquilo provasse por A+B que ela seria um monstro imoral, uma destruidora de lares, que sei lá eu. A moça, às lágrimas, afirma “estou de roupa, não tem nada de mais, mesmo! A pessoa que é virgem, ela não é... ela não é freira, não, doutor! A gente está no ano 2020”. O juiz e outros dois homens não identificados, todos de máscara, assistem impávidos à vítima sendo acusada. É assustador. É asqueroso. É degradante para todos nós, brasileiros, muito mais que para ela. Afinal, é em nosso nome que aquilo foi permitido, sendo ainda chamado de “Justiça”. Pode ter sido em nosso nome que o “estupro culposo” tenha sido inventado pelo MPSC, em sendo verdadeiro o documento mostrado pelo Intercept.

Neste mesmo ano de 2020, aliás, a famosa atriz Luana Piovani declarou: “já dei muito por educação”. O que seria “dar por educação”? Seria de alguma forma “consentir num estupro” ou torná-lo de alguma maneira “culposo”? Tanto o clima do famoso julgamento de 1976 levantando-se da tumba para massacrar outra mulher, outra vítima, quanto a declaração da atriz mostram que há algo de tremendamente errado no modo como a nossa sociedade lida com a dignidade e a sexualidade femininas.

A descarada expectativa atual é que a mulher seja mero objeto sexual, sem dignidade própria e sem vontade digna de respeito. Usa-se a ela e a seu corpo – ou melhor, a seu corpo sem nem sequer perceber que ela é uma pessoa – para vender todo tipo de porcaria, para “enfeitar” o feed das redes sociais com imagens que Doca Street acharia normais se visse na parede duma borracharia onde parasse com seu Maverick, e nada que não a exposição da mulher como mercadoria disponível parece ser socialmente aceitável. A pornografia, ubíqua e cada vez mais delirantemente distante daquilo a que se chamava “fazer amor”, ensina aos meninos – e a meninos cada vez mais novos – que o lugar “natural” da ejaculação é o rosto da mulher. Coisa sumamente respeitosa, claro, imaginem. Que mulher não ficaria feliz em ser assim tratada, afinal?! A mesma estética pornográfica leva as moças a eliminar cada pelinho que surja abaixo do pescoço, o que ninguém me convence que não tenha forte influência no avassalador crescimento da violação violenta de crianças impúberes.

A mulher, como já disse John Lennon, é “o crioulo do mundo”. Ela é menor que o homem; ela é cobiçada antes de ser conhecida, pela mera aparência; ela tende a tentar evitar o conflito físico. E é então que o pior da masculinidade, o que se poderia realmente chamar de “masculinidade tóxica” – a falsa masculinidade que nega a dignidade feminina, a que percebe a mulher como um mero auxílio masturbatório impessoal que não merece respeito algum – tende a crescer. E a levar uma mocinha para um canto escuro e, literalmente, abusar dela em seis minutos, limpar-se na cortina e ir embora assoviando. Para, depois, primeiro negar, depois mudar o discurso, e depois, quem sabe, talvez até inventar um “estupro culposo” na impossibilidade de negar ter realmente havido estupro.

A Revolução Sexual de maio de 1968 começou atribuindo às moças exatamente a mesma sexualidade masculina: uma sexualidade que pode se tornar predatória, uma sexualidade que busca a quantidade antes que a qualidade, uma sexualidade que nunca diz “não”. E, quando as moças diziam “não”, eram tidas por “caretas”, “quadradas”. Ou, na expressão mais atual da Piovani, “mal-educadas”. É, continua.

Nenhuma mulher deveria jamais ser forçada a receber dentro de si um homem sem o desejar. Nenhuma mulher deveria jamais ser forçada a “dar por educação”. E, menos ainda, nenhuma vítima deveria jamais ser submetida ao que a pobre Mariana foi, quase meio século depois de o mesmo ter sido feito por sobre o cadáver assassinado de Ângela Diniz. “A gente está no ano 2020”, disse a vítima mais recente. Só não sei se isso piora ou melhora a situação. Temo que piore.

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