Exatamente como ocorreu com Ângela Diniz, quem parece ter sido julgado no caso de Mariana Ferrer não foi o acusado, mas, mais uma vez, a vítima. Via Gazeta, artigo de Carlos Ramalhete, no alvo:
Quase
44 anos atrás, o caso Doca Street movimentou o Brasil. Resumindo muito:
Ângela Diniz, uma senhora rica e desquitada (coisa então escandalosa)
de 32 anos, foi assassinada com três tiros no rosto e um na nuca pelo
seu amante, que poucos meses antes havia largado a esposa milionária e
os filhos para ficar com ela. A razão do crime, segundo o caríssimo
advogado do assassino (nada menos que um ex-ministro do Supremo Tribunal
Federal!), teria sido a “legítima defesa da honra”. Que honra seria
esta? A de Doca, o amante, ele mesmo um adúltero confesso e
aparentemente um proxeneta; os ciúmes doentios do assassino o teriam
levado a crer que ela seria culpada de violar-lhe a tal “honra”. Quem
foi julgado no processo, então, como não poderia deixar de ser, não foi o
assassino, mas sua vítima. A “pantera de Minas” teve sua vida sexual
esmiuçada e condenada, enquanto Doca, claro, saiu do tribunal um homem
livre, leve e solto, agradecendo com gestos de galã ao doentio fã-clube
que lá se reunira.
Corta
para o caso Mariana Ferrer, ocorrido ano retrasado, quase meio século
após o que acabo de contar. A moça era virgem e bela, e tinha então 21
anos de idade. Trabalhava como “embaixadora” – em outras palavras,
promotora de eventos – numa boate cara em Florianópolis. Para quem não
conhece esta profissão, trata-se basicamente de uma espécie de
recepcionista-publicitária: uma moça bonita deixa sua imagem ser
utilizada pelo empreendimento, representando-o em eventos sociais e
fazendo-se presente nele. Não se sabe exatamente como as coisas se
deram, mesmo por ter o delegado encarregado do caso demorado tanto para
pedir as imagens das câmeras de segurança que – quem diria – elas já
haviam sido apagadas quando o pedido finalmente foi feito.
Em
todo caso, o que se sabe é que André de Camargo Aranha, rico, filho de
rico e cliente bem-pagante do local, conduziu uma cambaleante Mariana a
um canto escondido na noite de 15 de dezembro de 2018, saindo de lá
meros seis minutos depois. Na comanda dela estava uma única dose de gim,
certamente insuficiente para fazê-la perder o equilíbrio como se vê nas
únicas imagens de vídeo levadas a juízo. Estas a mostram descendo uma
escada com dificuldade e apoiando-se às paredes, seguida pelo saltitante
rapaz. A moça, desarvorada, foi imediatamente para casa num carro de
aplicativo, chorando muito; o motorista disse que ela parecia estar
drogada. Como tampouco foi feito tempestivamente o exame médico-legal de
alcoolemia, não há outras provas de que a virgem pobre e o igualmente
pobre motorista do carro falavam a verdade. Mais ainda uma verdade que
vai contra os interesses de gente rica, filha de rico e bem-pagante.
Ao
chegar em casa, a mãe de Mariana ficou chocada com o forte odor de
esperma que a filha exalada, e descobriu em sua roupa de baixo sangue e
sêmen. O sêmen era de Camargo Aranha. O sangue, do hímen da sua vítima.
O
julgamento ocorreu em segredo de Justiça, mas a moça resolveu usar do
que pensava ser o seu direito a ter a voz ouvida, fazendo forte campanha
nas redes sociais e angariando farto apoio popular. O que aconteceu,
todavia, parece decalcado do caso de há quase meio século: o Instagram
apagou-lhe a página, e no fim e ao cabo do processo Aranha foi
inocentado. Não se tinha noção de como se passou o julgamento, até que
vazamento da página The Intercept Brasil, anteontem, apresentou alguns
detalhes.
O
primeiro deles é o que parece ser parte do arrazoado do promotor
(trocado no decurso do processo, aliás; é o tipo de coincidência que sói
acontecer em casos em que pobres são vítimas e ricos, acusados),
apresentado pelo Intercept em papel timbrado do Ministério Público
Estadual catarinense. Nele vê-se a defesa da estranhíssima figura legal
dum “estupro culposo”.
Aos
não versados no vocabulário forense, “culposo” é quando há causalidade,
mas não intenção. É o caso, por exemplo, de um motorista que perde o
controle do carro devido a uma mancha de óleo e atropela alguém que
andava na calçada: trata-se de um homicídio culposo. Já quando há a
intenção, ao menos presumida, como no caso de alguém que dá um tiro em
outra pessoa, é dito doloso. O “estupro culposo” é evidentemente uma
contradição em termos, mas vai que cola, não é mesmo? Se há “legítima
defesa da honra”, por que não “estupro culposo”?
Confesso
que, quando vi a expressão, pensei logo nas famosas “gravidezes por
acidente”, em que a pessoa escorrega numa casca de banana e cai já
encaixada. Parecia ser coisa do mesmo gênero. Mas ele seria
caracterizado, segundo o texto em papel timbrado do MPSC apresentado
pelo Intercept, pela incapacidade do acusado de saber que a moça não
estaria em condições de consentir na relação sexual. Continua, a meus
olhos, coisa do arco-da-velha: afinal, como alguém poderia deixar de
notar que a moça não estaria “em condições de consentir” em perder a sua
virgindade numa relação de seis minutos totais (incluindo preliminares,
claro) com um absoluto desconhecido, num canto escuro do trabalho?
Coisa tão normal, afinal.
O
quiçá-estuprador-culposo, aliás, mudou sua história na medida em que
iam aparecendo elementos. De início, claro, ele não havia feito nada.
Nunca encostara na moça, imaginem! Sabia nem quem era. Devia ser uma
dessas moças pobres que se jogam no seu colo o dia todo, todos os dias.
Depois, ele teria feito sexo oral nela. Seis minutos de sexo oral,
talvez. Depois, quando se viu que ela havia sido desvirginada por ele, e
que ele deixara farto DNA na vítima, a coisa teria subitamente passado a
ser consensual. É que a memória, sabemos todos, por vezes precisa de
algum tipo de incentivo para se lembrar dum incidente.
Vale
notar, entretanto, que a bizarra expressão “estupro culposo” não se
encontra na sentença, e não há como saber se o documento apresentado
pelo Intercept é realmente parte dos autos e de autoria do MPSC. A
absolvição foi por mera “ausência de provas” de que ele saberia que a
moça estava incapaz de dar o seu consentimento – o que, se não me
engano, é a exata definição dum novo tipo penal que vim a conhecer
agora, mas que não consigo me lembrar qual seja. De qualquer modo,
presente ou não na sentença, é inegável que alguma bizarria andou
pairando por ali, como antes pairara a “legítima defesa da honra” de
Doca no julgamento de Ângela, sua vítima. Afinal, exatamente como
ocorreu com Ângela Diniz, quem parece ter sido julgado ali não foi o
acusado, mas, mais uma vez, a vítima.
Descobriu-se
isto graças também ao Intercept, que vazou trecho de vídeo com cenas
tão grotescas que o próprio Gilmar Mendes, não exatamente um varão de
Plutarco, chamou-as de “estarrecedoras (...) tortura e humilhação”. O
rico e bem-pago advogado do acusado rico, filho de rico e bem-pagante,
aparentemente sem saber que já há coisa de 15 anos que inexiste na
ordenação jurídica a figura da “mulher honesta”, tentou pintar a pobre
Mariana de Messalina. Aliás, mesmo que ainda existisse tal lamentável
figura em nosso direito, uma moça virgem e trabalhadora
indisputavelmente estaria nela. Não que isso interesse, na medida em que
a dignidade feminina é tamanha que nem mesmo uma sua suposta
“desonestidade” a poderia diminuir ou negar.
Desta
dignidade, porém, o nefando rábula não parece sequer cogitar. Insistiu
em mostrar fotos da moça vestida, mas nas posições sensualizantes que
hoje são moda até mesmo nas redes sociais, como se aquilo provasse por
A+B que ela seria um monstro imoral, uma destruidora de lares, que sei
lá eu. A moça, às lágrimas, afirma “estou de roupa, não tem nada de
mais, mesmo! A pessoa que é virgem, ela não é... ela não é freira, não,
doutor! A gente está no ano 2020”. O juiz e outros dois homens não
identificados, todos de máscara, assistem impávidos à vítima sendo
acusada. É assustador. É asqueroso. É degradante para todos nós,
brasileiros, muito mais que para ela. Afinal, é em nosso nome que aquilo
foi permitido, sendo ainda chamado de “Justiça”. Pode ter sido em nosso
nome que o “estupro culposo” tenha sido inventado pelo MPSC, em sendo
verdadeiro o documento mostrado pelo Intercept.
Neste
mesmo ano de 2020, aliás, a famosa atriz Luana Piovani declarou: “já
dei muito por educação”. O que seria “dar por educação”? Seria de alguma
forma “consentir num estupro” ou torná-lo de alguma maneira “culposo”?
Tanto o clima do famoso julgamento de 1976 levantando-se da tumba para
massacrar outra mulher, outra vítima, quanto a declaração da atriz
mostram que há algo de tremendamente errado no modo como a nossa
sociedade lida com a dignidade e a sexualidade femininas.
A
descarada expectativa atual é que a mulher seja mero objeto sexual, sem
dignidade própria e sem vontade digna de respeito. Usa-se a ela e a seu
corpo – ou melhor, a seu corpo sem nem sequer perceber que ela é uma
pessoa – para vender todo tipo de porcaria, para “enfeitar” o feed das
redes sociais com imagens que Doca Street acharia normais se visse na
parede duma borracharia onde parasse com seu Maverick, e nada que não a
exposição da mulher como mercadoria disponível parece ser socialmente
aceitável. A pornografia, ubíqua e cada vez mais delirantemente distante
daquilo a que se chamava “fazer amor”, ensina aos meninos – e a meninos
cada vez mais novos – que o lugar “natural” da ejaculação é o rosto da
mulher. Coisa sumamente respeitosa, claro, imaginem. Que mulher não
ficaria feliz em ser assim tratada, afinal?! A mesma estética
pornográfica leva as moças a eliminar cada pelinho que surja abaixo do
pescoço, o que ninguém me convence que não tenha forte influência no
avassalador crescimento da violação violenta de crianças impúberes.
A
mulher, como já disse John Lennon, é “o crioulo do mundo”. Ela é menor
que o homem; ela é cobiçada antes de ser conhecida, pela mera aparência;
ela tende a tentar evitar o conflito físico. E é então que o pior da
masculinidade, o que se poderia realmente chamar de “masculinidade
tóxica” – a falsa masculinidade que nega a dignidade feminina, a que
percebe a mulher como um mero auxílio masturbatório impessoal que não
merece respeito algum – tende a crescer. E a levar uma mocinha para um
canto escuro e, literalmente, abusar dela em seis minutos, limpar-se na
cortina e ir embora assoviando. Para, depois, primeiro negar, depois
mudar o discurso, e depois, quem sabe, talvez até inventar um “estupro
culposo” na impossibilidade de negar ter realmente havido estupro.
A
Revolução Sexual de maio de 1968 começou atribuindo às moças exatamente
a mesma sexualidade masculina: uma sexualidade que pode se tornar
predatória, uma sexualidade que busca a quantidade antes que a
qualidade, uma sexualidade que nunca diz “não”. E, quando as moças
diziam “não”, eram tidas por “caretas”, “quadradas”. Ou, na expressão
mais atual da Piovani, “mal-educadas”. É, continua.
Nenhuma
mulher deveria jamais ser forçada a receber dentro de si um homem sem o
desejar. Nenhuma mulher deveria jamais ser forçada a “dar por
educação”. E, menos ainda, nenhuma vítima deveria jamais ser submetida
ao que a pobre Mariana foi, quase meio século depois de o mesmo ter sido
feito por sobre o cadáver assassinado de Ângela Diniz. “A gente está no
ano 2020”, disse a vítima mais recente. Só não sei se isso piora ou
melhora a situação. Temo que piore.
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