É um governo que se aproxima de uma situação limite, como foi o caso de
Collor e Dilma. Mas num contexto de pandemia que jogou o planeta na
maior crise econômica e social da história contemporânea. Alto risco de
tragédia. Artigo de Fernando Gabeira para O Globo:
Num momento em que todos reprisam, o governo é pródigo em lançar
novelas inéditas. Mal acabou a novela Mandetta, entrou no ar a Sergio
Moro, e começaram as filmagens da Paulo Guedes. O que está acontecendo
na cabeça do presidente Bolsonaro? Ela foi sacudida pelo impacto do
coronavírus.
Muitas mudanças estão sendo determinadas, no fundo, pela política
escolhida por Bolsonaro para enfrentar este que é o maior acontecimento
trágico no mundo moderno. Onde governos conservadores ou progressistas
triunfaram, como é o caso da Austrália e da Nova Zelândia, Bolsonaro
afundou.
Desde o princípio, tenho apontado a causa. Bolsonaro aderiu à camada
de gordura que cerca o vírus e seus fluidos ideológicos e o transformou
num tema da guerra cultural. Exatamente o oposto do que fizeram Scott
Morrison, na Austrália, e Jacinda Ardern, na Nova Zelândia:
despolitizaram o vírus.
Ainda esta semana, o chanceler Ernesto Araújo escreveu um artigo
contra o que chama de comunavírus. Ele ficou impressionado com um livro
do pensador de esquerda Slavoj Zizek que previa enfim a chegada do
comunismo. Depois de sonhar com a classe operária ou mesmo o lúmpen
proletariado, alguns teóricos de esquerda concentram suas esperanças no
vírus como agente transformador. E os bolsonaristas acreditam.
Desde o princípio, Bolsonaro viu a chegada do vírus como algo que
ameaçava seu governo. A única forma de neutralizar sua importância era
adotar uma tese que permitisse neutralizar os impactos econômicos. Esta
tese foi a de imunização de rebanho: a maioria vai ser contaminada, é
melhor que isso aconteça logo para que nos livremos do vírus.
Bolsonaro jamais considerou seriamente o fato de que, se muitos se
contaminarem ao mesmo tempo, o sistema de saúde entraria em colapso,
muitas pessoas morreriam na porta dos hospitais ou em casa. Um cenário
que, de certa forma, se desenhou na Itália e mais tarde, de forma
grotesca, em Guayaquil.
Foi por aí que caiu Mandetta. E indiretamente Moro. Bolsonaro sempre
pensou em concentrar poderes. Mas a impossibilidade de determinar
sozinho uma política contra o coronavírus condensou seu drama. Os
governadores e prefeitos tiveram um papel decisivo. O Congresso os
apoiou, o STF chancelou essa autonomia local.
A relação com Moro já sofria um desgaste. Mas Bolsonaro, na sua
solidão, reclamou da ausência do ministro em sua cruzada contra o
isolamento social. Moro, segundo alguns, não só era favorável à política
de Mandetta, como pensou em decretar multas para quem rompesse com o
isolamento social. O que, aliás, acontece em muitos países da Europa.
Sem o Congresso, STF, ministro da Saúde e da Justiça, Bolsonaro deu
um passo decisivo participando de manifestação antidemocrática diante do
QG do Exército. Isso resultou num inquérito que acabou se entrelaçando
com outro: o das fake news. Os investigados são os mesmos: apoiadores do
presidente e, possivelmente, até familiares de Bolsonaro.
Moro teve uma chance de sair depois daquela manifestação.
Possivelmente estava incomodado com a posição temerária de Bolsonaro
sobre o coronavírus. Mas agora estava diante de uma posição temerária
contra a democracia.
Moro não se pronunciou. Num determinado momento de sua trajetória, a
mulher de Moro escreveu numa rede social que ele e Bolsonaro eram a
mesma coisa.
Ele pode ter sido salvo agora pela maneira como cai. A tentativa de
interferir na autonomia da Polícia Federal é algo que não encontra
apenas resistência na corporação, mas em muitos setores conscientes da
sociedade. É inconstitucional.
Nesse sentido, Moro cai de pé. Mas, para que sua trajetória política
tenha viabilidade, será necessário se distinguir de Bolsonaro, algo que
não fez quando esteve no governo. O tom de seu discurso de saída é um
indício de que compreendeu isto. Pelo menos se distanciou da visão
atrasada de submeter o trabalho da PF aos desígnios de um presidente. O
que é no fundo um crime de responsabilidade.
Mas Moro indicou claramente que Bolsonaro teme o inquérito no
Supremo. Resta agora ao STF assumir seu papel institucional e não
amarelar diante da pressão de Bolsonaro.
É um governo que se aproxima de uma situação limite, como foi o caso
de Collor e Dilma. Mas num contexto de pandemia que jogou o planeta na
maior crise econômica e social da história contemporânea. Alto risco de
tragédia.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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