A filosofia pode isolar os grandes problemas e fornecer-nos uma luz
indireta para nos ajudar a pensar as dificuldades da nossa vida prática e
das suas questões mais essenciais, escreve o professor Paulo Tunhas, em
sua coluna no Observador:
Olha-se para dentro, para Portugal, e para fora, para essa obscura
totalidade mais aberta do que se pensa chamada mundo, e encontramos
vários problemas que se repetem, variando nauralmente em modo e
intensidade. Três são talvez dominantes: a preocupação da segurança –
queremos viver, enquanto indivíduos, sem a ameaça permanente do que nos
põe, de múltiplas maneiras, em risco no interior da nossa própria
sociedade; o desejo da paz – sentimos as guerras como um pesadelo que
retorna ciclicamente e cujo renascer procuramos adiar indefinidamente
ou, no mínimo, manter o mais possível longe de nós; e aspiramos a uma
sociedade em que as maneiras de viver proporcionem uma realização o mais
plena possível das nossas melhores possibilidades como seres humanos –
buscamos, dito de outra maneira, o acordo entre a felicidade individual e
a felicidade colectiva, sendo uma e outra entendidas como formas do bom
viver, que comporta uma reflexão sobre um certo número de regras que
nos devem orientar no comércio com os nossos semelhantes.
Longe de mim pensar que os maiores sistemas filosóficos fornecem a
chave mágica a resolução destes grandes problemas práticos. Os sistemas
filosóficos são mundos fechados sobre si mesmos, dotados de uma
realidade que é específica a cada um deles e dos quais não é nunca
inteiramente lícito deduzir princípios indiscutíveis de acção política.
As vezes em que isso foi tentado, de resto, deu quase sempre muito maus
resultados – e assim continuará sem dúvida a ser. Mas a filosofia pode,
isso sim, isolar os grandes problemas e fornecer-nos uma luz indirecta
para nos ajudar a pensar as dificuldades da nossa vida prática e das
suas questões mais essenciais.
Em relação aos três problemas que mencionei no primeiro parágrafo – a
segurança, a paz e a vida política feliz -, três filosofias consagraram
especial atenção. Hobbes construiu a sua filosofia política dando
particular importância ao primeiro, Kant ao segundo e Aristóteles ao
terceiro. Nenhum deles de forma exclusiva, bem entendido, até porque
tais problemas reenviam uns aos outros, mas tratando-os como problemas
centrais. Em muitas versões populares das doutrinas, elas aparecem
caricaturadas, de modos diferentes e com intenções diversas. Assim,
Hobbes teria sacrificado tudo o que há de valioso na vida das
comunidades políticas em nome de uma exigência de segurança ditada por
um medo constante e obsessivo da morte violenta às mãos dos outros seres
humanos. Kant teria desejado a abolição da soberania dos Estados e a
formação de uma federação que tenderia à constituição de um governo
mundial. E Aristóteles teria fundado toda a sua concepção da felicidade
do bom viver na comunidade política na condição indispensável da
existência do esclavagismo. Todas estas interpretações caricaturais são
demonstravelmente falsas com a ajuda dos textos. Mas não vou, é claro,
ocupar-me aqui dessa demonstração.
Em contrapartida, é interessante constatar a actualidade do que nos
dizem. Comecemos por Hobbes e pela segurança. Sem um Estado forte que
assegure, com a possibilidade do recurso à força, o controle dos mais
violentos desejos dos seres humanos, toda e qualquer sociedade
rapidamente soçobrará em conflitos intestinos. E quanto menos o Estado
conseguir levar a cabo essa sua missão, mais a sociedade tenderá à
desagregação e à falta de respeito pela lei. De facto, se o Estado não
cumpre já a função que é essencialmente a sua – proteger a nossa
segurança e a nossa vida -, que razão se pode imaginar para seguirmos as
suas leis? A degradação infiltrar-se-á por todo o lado. Por muito que a
existência de conflitos seja necessária à vida em sociedade, a sua
radicalização para lá de um certo grau, bem como a sua generalização ao
todo social, tem efeitos indiscutivelmente letais. O diagnóstico de
Hobbes – aqui apresentado com uma generalidade que lhe retira, admito,
os seus traços mais distintivos – parece-me indisputável. E basta olhar
um pouco para a realidade à nossa volta para lhe reconhecermos a
actualidade.
O mesmo vale certamente para Kant e para o que ele diz sobre a paz. A
paz entre os Estados corresponde a um desejo que é sinal da capacidade
da especie humana de progredir, no seu comportamento externo (não nas
profundezas do seu coração), em direcção ao melhor. Para tal, parece
necessária a constituição de uma federação dos povos. Mas tal federação
não pode, de modo algum, constituir o embrião de um Estado mundial, que
representaria sem dúvida uma forma de despotismo e que rapidamente
engendraria, nas suas periferias, a anarquia e a desordem. Dito de outra
maneira: a tal federação de que fala Kant mantém perfeitamente intacto o
princípio da soberania dos Estados. O exacto contrário, pois, de uma
centralização autoritária do poder num núcleo central ao qual tudo o
resto se subordinaria. Os mecanismos conducentes à criação de um tratado
da “paz perpétua”, unindo a espécie humana, devem obrigatoriamente
preservar, para lá de um mínimo de identidade comum, a diversidade das
formas que as várias organizações humanas sedimentaram. O desejo da paz
não pode, por definição, pôr em cheque o princípio da soberania. Mais
uma vez, encontramos nesta proposição algo que se apresenta dotado de
uma enorme verosimilhança. E, mais uma vez, algo cuja pertinência é
atestada por um simples olhar dirigido ao mundo que nos rodeia.
Por fim, Aristóteles e a ideia de felicidade da comunidade política. A
felicidade de que se trata aqui é aquela que resulta da deliberação
colectiva sobre as formas do bom viver. O que supõe, em grande medida, a
participação de todos na reflexão sobre o que é uma sociedade justa e
sobre as diferentes formas da justiça. Dessa reflexão colectiva deve
nascer o sentimento de uma identidade entre os cidadãos. A identidade
não exclui, também aqui (como, num outro plano, em Kant), a diversidade,
mas pertencer a uma sociedade é partilhar um certo número de valores
que são a condição de existência da amizade política. A amizade
política, definida muito geralmente, não é uma coisa de facções. É antes
algo que funciona quase como um princípio de existência social. Sem
ela, o bom viver comum não pode nunca ter lugar e o que resta é a vida
dos cíclopes, cada um na sua caverna, mandando nas mulheres e nos
filhos. Também aqui nos deparamos com algo que parece verdadeiramente
ser uma exigência da boa vida em sociedade. E também aqui, face ao
espectáculo quotidiano do facciosismo ciclópico e do desinteresse último
pelo bem comum, há algo a aprender.
Não pretendo de modo algum sugerir que haja uma espécie de harmonia
pré-estabelecida entre as filosofias políticas de Aristóteles, Hobbes e
Kant. Não há, de todo. Cada uma se integra num mundo particular, o mundo
dos seus sistemas. Mas – era isso que queria dizer – a luz indirecta
que cada um desses mundos lança sobre as nossas questões mais
inquietantes, uma vez ganha alguma distância para com o seu contexto
original, é susceptível de iluminar muitos dos nossos problemas
práticos. Não para os resolver como por um passe de mágica, mas para nos
fazer pensar neles com mais liberdade e fora das tiranias da opinião
comum, que vive do recalcamento da ágora intemporal das ideias. É para
isso, entre outras coisas, que serve a filosofia política.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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