O DEFENSOR
Acusada
de tráfico internacional de drogas, a brasileira Elaine Araújo Silva
esteve nove meses detida e outros três meses em prisão domiciliar na
Itália, antes de conseguir comprovar a sua inocência.
Nove
anos depois da sentença de absolvição, ela ainda sofre com crises de
depressão e ataques de pânico, doenças que tiveram início durante o
período de reclusão e que a obrigaram a deixar o emprego.
“Depois
da prisão passei a ter medo mesmo em situações normais de vida
cotidiana. Até hoje preciso de acompanhamento farmacológico e
psiquiátrico”, diz em entrevista à BBC Brasil a recifense de 42 anos.
A depressão a impediu até mesmo de solicitar o ressarcimento previsto pelo Estado italiano em casos de prisão injusta.
“Elaine
estava devastada psicologicamente. Mesmo tendo sido aconselhada a
solicitar a reparação por injusta detenção, ela só queria esquecer toda
aquela história. Não podíamos agir sem o seu consenso”, conta à BBC
Brasil o advogado da brasileira, Piero Venture.
O
valor atual previsto pela lei italiana para esta indenização é de
235,82 euros por cada dia de reclusão e 177,91 euros para cada dia de
prisão domiciliar consideradas injustas.
“Se
tivesse feito a solicitação dentro do prazo de dois anos após o
trânsito em julgado da sentença de absolvição, muito provavelmente ela
teria recebido esta indenização”, afirma Venture.
O
tormento de Elaine teve início em 7 de junho de 2008, após uma noite
normal de trabalho como garçonete em uma discoteca na cidade de Rimini.
“Cheguei
em casa por volta das 3h da manhã. Tentei abrir a porta, mas ela estava
fechada por dentro. Antes que eu tocasse a campainha, um rapaz que eu
nunca vira me abriu a porta. Entrei e fui diretamente ao quarto da mãe
da amiga com a qual eu morava, para perguntar quem era aquele homem. Ela
me respondeu que era um amigo da filha e então fui dormir.”
No
dia seguinte, Elaine foi acordada por policiais armados. Confusa,
vestiu-se às pressas e foi acompanhada até a sala onde estavam a amiga, a
mãe dela, e o rapaz que lhe abrira a porta, todos cidadãos dominicanos.
A brasileira soube, então, que o jovem chegara da Espanha no dia
anterior, trazendo cápsulas de cocaína no estômago. De acordo com os
policiais, no momento da blitz a droga estava à vista, em cima da mesa.
Mesmo
assustada, Elaine acreditava que conseguiria demonstrar a sua inocência
rapidamente. Ela morava na Itália havia quase dez anos, trabalhava
legalmente, tinha amigos e estava para se casar com um atleta turco, com
o qual havia passado seis meses em Istambul e com quem iria viver nos
Estados Unidos. Um dia antes da prisão, o namorado de Elaine,
proprietário de uma rede de academia de artes marciais, viajara a
trabalho para a Califórnia.
Elaine
foi levada para a delegacia junto com a mãe da amiga, uma senhora idosa
que estava na Itália para passar uns dias com a filha, enquanto os
outros dois acusados foram acompanhados em outra viatura.
“A
pressão psicológica dos policiais era enorme. As acusações e os termos
usados por eles me deixaram desesperada. Assinei papéis sem mesmo tê-los
lido, confiando que isso me ajudaria a ir embora. Ao mesmo tempo, eu
tentava consolar a mãe da minha amiga, dizendo que era tudo um mal
entendido e que logo seríamos liberadas”.
“Os policiais me deixaram fazer uma ligação, ma só tive tempo para dizer ao meu namorado que eu estava presa”, conta Elaine.
No
mesmo dia, Elaine e a idosa dominicana foram transferidas para o
cárcere de Forli. “Não pude acreditar quando vi abrirem-se os portões da
penitenciária.”
“Disseram-nos
que se tratava de uma investigação internacional e que não seríamos
liberadas até prenderem todos os membros da quadrilha”, conta.
“Quando
nos trancaram numa cela com outras prisioneiras comecei a passar mal
porque tenho dificuldades em estar em lugares fechados.”
Os
amigos de Elaine contrataram um advogado para defendê-la, mas durante a
audiência de custódia o juiz confirmou a prisão preventiva da
brasileira, que em casos de tráfico de entorpecentes – cuja pena
prevista é de 6 a 20 anos de reclusão – pode durar até um ano.
Com o passar dos dias, além de ter suportado “na marra” a sua claustrofobia, Elaine pediu ajuda também ao Consulado brasileiro.
“Escrevi
várias cartas contando a minha situação e explicando que eu não estava
bem de saúde. Recebi uma única resposta, onde diziam que o Consulado não
poderia intervir em questões da Justiça italiana e, para me ajudar,
mandaram-me selos para que eu enviasse cartas ao Brasil. Seria menos
humilhante não ter recebido resposta alguma”, diz.
Na
prisão, Elaine sentia-se constantemente ameaçada. “Durante todo aquele
período fui torturada psicologicamente pelas detentas por declarar-me
inocente. Quando eu passava pelo corredores elas gritavam, me ameaçavam,
me chamavam de ‘bellina’. E quando viam que eu era tratada com respeito
pelas agentes penitenciárias tornavam-se ainda mais agressivas”.
“Mas
o pior era durante a noite, quando algumas detentas liberavam o gás de
um pequeno botijão que tínhamos na cela para fazer café, para se
entorpecerem. Todas as manhãs eu acordava com dores de cabeça e
náuseas”.
Outros
momentos difíceis eram os dias de visita. “Todas as terças e
sextas-feiras eu me arrumava, esperava, e não aparecia ninguém”, diz
emocionada.
Elaine
não recebia visitas nem mesmo do seu advogado que, sucessivamente foi
substituído. Ela conta tê-lo visto apenas duas vezes, a última delas
seis meses depois de ter sido presa, quando fora transferida para o
cárcere da cidade de Rovigo.
“Ele
se apresentou sem ter lido o meu processo, não sabia nem o nome dos
outros acusados. Disse-me apenas que eu deveria ser condenada a uma pena
entre sete e 10 anos de reclusão. Provavelmente, ele esperava receber
mais dinheiro dos meus amigos”.
No
mesmo dia do encontro com o advogado, Elaine recebeu uma carta do
namorado rompendo a relação deles. “Ele não suportou aquela situação,
porque era muito famoso no mundo esportivo e não queria ter o seu nome
associado a mim”.
Tocar o fundo
“Tive
uma crise histérica fortíssima. Para conseguir me conter, as agentes
penitenciárias tiveram que usar água fria. Depois de seis meses de
sofrimento, eu chegara ao meu limite.”
Após
uma tentativa de suicídio, Elaine passou a ser medicada contra
depressão. Além dos distúrbios psicológicos, a brasileira teve ainda
outros problemas de saúde durante a sua detenção, como catapora, que a
obrigou a um isolamento de dez dias, e uma diagnose de um tumor uterino
em fase inicial, com consequente impossibilidade de ter filhos.
“Foi quando eu toquei o fundo. Depois disso, decidi reagir. Pior não poderia ficar”.
Os
únicos consolos eram as cartas que recebia da mãe, que aprendera a
escrever especialmente para conseguir demonstrar o afeto pela filha, e a
amizade com uma detenta. “Certo dia, uma agente penitenciária pediu que
eu tomasse conta de uma nova prisioneira, uma jovem dependente de
drogas. Ela sofria terríveis crises de abstinência e eu a ajudava a
lavar-se, a vestir-se. Cuidar de outra pessoa foi a minha salvação, fez
com que eu me sentisse útil.”
“Nos tornamos ótimas amigas. Finalmente, alguém acreditava em mim”.
A
guinada positiva continuou quando Mario Cantafio, um militar da
aeronáutica italiana e ex-namorado da amiga com a qual Elaine fora
presa, contratou um novo advogado para defendê-la.
“Nos
conhecíamos porque ele e minha amiga foram namorados por seis anos, bem
antes que ela se envolvesse com más companhias”, conta.
O
militar passou a escrever para Elaine na prisão e a amizade entre eles
se reforçou. “No início éramos apenas amigos, mas naquele período
passamos a nos conhecer melhor.’
Graças
ao novo advogado e com um imóvel disponibilizado por Mario, no dia 16
de março de 2010, nove meses depois de ter sido detida, Elaine obteve a
prisão domiciliar. Poucos dias depois, conseguiu autorização para voltar
a seu trabalho. “Eu saia às seis da tarde e voltava às 2h da
madrugada”.
“Finalmente
eu estava feliz, trabalhando com entusiasmo e namorando com o Mario.
Mas eu tinha sempre em mente a data da audiência, temendo que o pesadelo
pudesse recomeçar”.
Ao
contrário das previsões dos médicos da prisão, Elaine descobriu estar
grávida. “Foi uma alegria, mas ao mesmo tempo eu estava aterrorizada com
a hipótese de voltar para a penitenciária com meu bebê”.
Durante
a audiência, o casal de traficantes dominicanos confirmou as afirmações
das testemunhas de Elaine, dizendo que ela e a mãe da criminosa eram
completamente alheias ao crime. Ambas foram absolvidas, enquanto a
ex-amiga e seu companheiro foram condenados a 4 e 8 anos de prisão,
respectivamente.
“O advogado foi um anjo na minha vida. Eu só queria sair logo dali, voltar pra casa e esquecer tudo aquilo”.
Elaine hoje está casada com Mario, com quem tem dois filhos, um garoto de oito anos e uma menina de cinco.
“Não
tenho vergonha, contarei para os meus filhos a história toda. Prefiro
pensar que o destino quis assim. Para chegar onde estou hoje, foi
preciso passar por aquilo”.
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