Artigo do professor Alberto Oliva, publicado pela revista Amálgama,
aborda a crise moral brasileira, indagando "de que matéria se compõe o
senso comum" - tão antiliberal e contrário os fatos. É ideologia demais
para conhecimento de menos:
É
espantoso, mas a grande maioria dos juízos que emitimos sobre as coisas e
as pessoas está redondamente errada. E, no entanto, o mundo funciona e a
vida vai sendo tocada. Isso não significa que o conhecimento é, na
maioria dos casos, dispensável e sim que há pouca ciência em quase tudo
que pensamos e fazemos. É cabível supor que mais conhecimento propicie
uma maior serenidade nos julgamentos. Igualmente defensável é a
avaliação de que o conhecimento é colocado de lado quando temos de
avaliar matérias que se deixam permear por interesses, emoções ou
paixões. Nesse caso, não vale a recomendação do grande Leibniz: “não
discutamos, calculemos”.
Mais
conhecimento pode ou não levar à reta ação. Não basta saber o que é
certo para fazê-lo. O conhecimento não é panaceia. Conjugado com a
virtude, pode inibir os pré-conceitos, os pré-juízos que infestam o
panorama intelectual e midiático brasileiro. É fato que os temas que
mais mobilizam o ser humano geram acalorados debates, sendo grandes as
dificuldades para a eles se dispensar tratamento rigoroso. Questões
políticas e econômicas suscitam no Brasil mais posicionamento ideológico
que fundado entendimento. As preferências ideológicas servem, entre
outras coisas, para esconder na Terra de Santa Cruz as fragilidades
intelectuais. É perfeita a combinação entre monocromatismo ideológico e
arrogância. Os juízos emitidos em conformidade com antolhos
político-ideológicos – que desprezam solenemente fatos – evidenciam que
nossa crise é essencialmente moral. Em nossa cultura antiempirista, os
fatos não contam. Tudo o que importa é o que pensamos sobre eles. Quanto
mais densas as trevas mais brilham os vagalumes…
O senso
comum costuma se escravizar ao fluxo visível dos acontecimentos. No
cotidiano político das coletividades os holofotes se voltam
primacialmente para as decisões do executivo e legislativo que
diretamente afetam os cidadãos. O que se esconde no subsolo dos poderes e
sob a teia das relações sociais tende a passar despercebido. Raramente,
as pessoas atentam para a “fisiologia” oculta dos fenômenos que se
manifestam no corpo social. Quando muito, a curiosidade é despertada
para o que se passa nos bastidores das tramas político-econômicas do
espetáculo da vida nacional.
O fato é
que uma sociedade, para bem e para mal, é também movida pelo invisível e
pelo oculto. As forças invisíveis que se movimentam no leito do rio
social não resultam das tramas das elites manipuladoras. Não devem, por
isso, ser confundidas com os meteorismos nos subterrâneos obscuros do
poder. Com atuação viva e permanente, essas forças invisíveis participam
de modo decisivo dos complexos processos de formação das
“peculiaridades nacionais”. São, numa certa medida, as principais
responsáveis pelas idiossincrasias dos povos. A cristalização dos
costumes centenários exemplifica seu poderio psicossocial. Pode-se mesmo
dizer que sem a compreensão dos hábitos coletivos, fundamente
arraigados, não se consegue reconstituir o tortuoso processo de
construção da identidade de uma sociedade.
O
problema é que os costumes enraizados, os que plasmam condutas, resultam
da atuação de forças sobre as quais as coletividades têm escasso
conhecimento e diminuto controle. O consenso profundo que dá unidade à
vida social muito deve à penetração dessas forças no “inconsciente
coletivo”. A informalidade, o calor humano, a vista grossa contra
práticas e atitudes pouco recomendáveis no espaço público, a corrupção
endêmica e sistêmica e tantos outros traços distintivos, se reproduzem
como hábitos calcificados no tecido social brasileiro. É até provável
que a maioria se sinta incomodada com a “frouxidão” comportamental
difundida. Mas é difícil resistir à contaminação do laxismo, do “deixa
rolar”, que se alastra como uma epidemia contra os órgãos responsáveis
pela saúde imunológica da sociedade. É interessante observar que a
frequência com que se joga lixo nas ruas, e se cometem deslizes de
magnitude similar, é proporcional à indiferença da grande maioria que a
tudo assiste de modo distanciado.
Na
verdade, o comportamento antissocial se espalha em virtude de ser pouco
incisiva a reação da coletividade aos espetáculos de incivilidade. Não é
que caiba a cada um de nós repreender o próximo. Só que a cumplicidade
do olhar não pode deixar de dar a impressão de que as posturas
desrespeitosas a poucos incomodam. A ausência da reprovação veemente do
“olho coletivo” é uma dessas posturas centenárias que por estas plagas
se consolidaram pela atuação de forças invisíveis cuja gênese se perde
no tempo da nacionalidade. O grave é tanto o que se faz de errado no
espaço público quanto a falta de pressão orquestrada da maioria. Essa
omissão coletiva está incorporada ao nosso ser social como se fosse um
traço de personalidade.
A fraca
pressão da coletividade em parte explica por que as autoridades tanto
hesitam em colocar em ação os dispositivos legais de combate às
ilicitudes. A repressão ao crime, dentro da lei e do respeito à pessoa
humana, só é legítima quando desdobramento natural da pressão que a
própria sociedade exerce sobre os atos que contrariam suas regras
fundamentais de convivência. Se a coletividade exibe silêncio conivente
com os pequenos delitos, a atuação dos órgãos repressivos tenderá sempre
a parecer extemporânea. Isto porque se a pressão difusa da sociedade é
débil, o desgaste político e o custo operacional da repressão passam a
ser altos.
Por mais
que não se deva crer em entidades misteriosas como “A Sociedade”, não
se pode deixar de reconhecer que a história vai gerando uma espécie de
“alma nacional” como resultado de um processo, em parte aleatório, de
construção de uma identidade societária. Os diferentes modos de atuação
das chamadas forças ocultas nos porões da sociedade também ajudam a
forjar a “alma coletiva”. Junto com as forças invisíveis, as ações de
bastidores, as alianças secretas que loteiam o poder e os cargos no
interior das instituições, constituem o código genético de uma
sociedade. Se o cidadão pudesse juntar a paisagem tangível com a
ultrassonografia das forças invisíveis e dos cordéis dos bastidores
teria uma visão mais completa da vida social. Talvez um pouco
assustadora, mas certamente reveladora.
O senso
comum brasileiro é muito receptivo às bobagens proferidas por
pseudointelectuais e semiletrados diplomados. As crenças que vão se
formando de maneira espontânea no interior de nossa cultura passam por
poucos crivos. Na era da aldeia globalizada pela mídia, tende a se
tornar residual a espontaneidade que outrora se fazia presente na teia
de crenças que se formava no mundo social. Mas se determinadas ideias
prosperam em certas sociedades é porque estas têm uma história que as
torna propensas a elas. Não basta denunciarmos que o ensino das
humanidades está no Brasil todo dominado pela óptica do marxismo vulgar.
É fundamental indagarmos o que possibilitou isso.
Por que
as pessoas ouvem os catecismos ideológicos passiva e receptivamente, por
que não questionam sua veracidade, por que aceitam a versão
caricaturada das visões alternativas? Se não nos colocamos este tipo de
questão, ficamos confinados aos efeitos sem saber que antídoto procurar
para fazer frente ao envenenamento das consciências. Se há doutrinadores
profissionais é porque há quem acolha empaticamente suas mensagens. A
opinião pública só se deixa manipular por ideias que se mostram
minimamente compatíveis com suas predisposições, inclinações. Sem
envolvimento “afetivo” com o sequestrador de consciências, ninguém se
deixa doutrinar.
Uma
sociedade que não valora de forma adequada a liberdade acolhe com
simpatia os discursos que aberta ou veladamente propugnam por um Estado
intervencionista e dirigista. Uma sociedade que não tem um senso
arraigado de propriedade privada é conivente com pregações contra ela, e
cúmplice dos que a desrespeitam na prática. Sem uma longa e profunda
reforma de mentalidade, é muito difícil ideias incompatíveis com o senso
comum prosperarem em uma sociedade.
A
perseguição silenciosa a certas ideias no Brasil é consequência de o
senso comum tupiniquim não prezá-las como merecem. As torpezas e
baixezas proferidas contra o liberalismo no Brasil se explicam pela
ignorância e pela subserviência do senso comum aos governantes dos quais
espera a solução de seus aflitivos problemas. Os poucos que expõem
ideias liberais, que diferentemente das do marxismo não estão na origem
dos regimes que produziram milhões de cadáveres ideológicos, são
chamados pela intelligentsia de conservadores ou direitistas. Se os
brasileiros tivessem o devido apreço pela liberdade, recusando-se a ser
tão dependentes do Estado, não seriam manipulados pelos políticos que
capturam o aparato estatal, e as estatais que gravitam em torno dele, em
beneficio próprio.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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