"Em
defesa da política contra alguns de seus amigos", texto publicado hoje
no Estadão, Bolívar Lamounier relembra a trama urdida por Renan
Calheiros e Ricardo Lewandowski para livrar a cara de Dilma, em
detrimento do art. 52, parágrafo único, da Constituição:
Num
profícuo seminário sobre o sistema de governo promovido duas semanas
atrás pela Federação do Comércio de São Paulo, o ex-senador Bernardo
Cabral fez candente defesa da Constituição de 1988. Argumentou – a meu
ver, com razão – que ela tem mais qualidades que defeitos, e tem
normatizado razoavelmente bem a vida brasileira. Frisou, para
exemplificar, as generosas estipulações do artigo 5.º sobre direitos
individuais e coletivos e as referentes ao meio ambiente nos artigos 24 e
225, área em que foi pioneira.
O
problema – do qual o ex-senador tem evidentemente plena consciência – é
que Constituições não se autoaplicam. Uma coisa é o texto, outra, que
pode ser muito diferente, são a reverência e a lealdade prática que o
país e principalmente as autoridades constituídas lhe devotam. Durante
muito tempo, como bem sabemos, o Brasil conseguiu avançar na construção
da democracia, apesar do exíguo número de democratas sinceros que
ocuparam as mais altas magistraturas. Nesse aspecto, tudo faz crer que
atingimos um ponto irreversível, mas somos ainda, salvo melhor juízo, um
país um tanto lerdo quando se trata de exigir o estrito cumprimento da
Carta vigente.
O
pano de fundo da preocupação que venho de externar se compõe
principalmente dos fatos ocorridos na sessão final do impeachment de
Dilma Rousseff, realizada no dia 31 de agosto. Naquela ocasião, ao vivo e
em cores, entre impotente e estupefato, a Nação assistiu à fria
execução de uma manobra destinada a desfigurar o artigo 52, parágrafo
único, da Constituição, com o objetivo adrede cogitado de livrar a
presidente afastada da inabilitação, por oito anos, do exercício de
qualquer função pública.
Urdida,
como é de conhecimento geral, pelo presidente do Senado, sr. Renan
Calheiros, a trama foi levada a cabo com a anuência e ativa participação
do ministro Ricardo Lewandowski, então presidente do Supremo Tribunal
Federal (STF), que por essa razão presidia a sessão do Senado. Se viva
fosse, até Madre Teresa de Calcutá perceberia o caráter malicioso do
plano a que as duas citadas autoridades recorreram para descumprir o
mandamento cristalinamente expresso no texto constitucional. Rezo para
que a ministra Cármen Lúcia, agora presidente do egrégio tribunal, que
seguramente conserva o essencial daquela teimosia cívica característica
dos mineiros, trabalhe pela restauração em sua inteireza do artigo 52,
parágrafo único.
Dedicado
há várias décadas ao ofício de observador diário da realidade política
brasileira, tenho para mim que o srs. Lewandowski e Calheiros se
imbuíram de uma noção de política residualmente existente em qualquer
país, mas que no Brasil prosperou e se adensou num grau inusitado
durante os governos de Lula e Dilma Rousseff. Refiro-me, como é óbvio, a
uma tendência a dilatar os espaços da esperteza em detrimento do
respeito à letra e ao espírito das regras do jogo democrático. O
expediente a que recorreram no dia 31 de agosto, com o ambiente
brasileiro já profundamente transformado pelo combate à corrupção
sistêmica orquestrada pelo PT, dá e sobra como evidência dessa
afirmação. Se chegaram a tanto nesse clima de enérgica exigência que os
cidadãos ora vivenciam, é de perguntar aonde mais chegariam nos tempos
menos transparentes que, felizmente, estão ficando para trás.
Sabemos
que todo brasileiro questiona a memória curta dos demais. Seria deveras
lamentável se tal questionamento se mostrasse verdadeiro nesse caso, e
pior ainda se os excelentíssimos integrantes do STF relegassem ao olvido
a famigerada sessão de 31 de agosto. Infelizmente, o que se costuma
denominar “memória curta” é apenas a parte superior de um iceberg; a
parte imersa, muito maior, é um composto de impotência, indiferença e
descrença cívicas, às vezes reforçado por certa preguiça mental. Por
antigos e generalizados que sejam em nossa sociedade tais sentimentos,
parecem-me descabidos na conjuntura que ora se abre, por três motivos
que passo a expor.
O
primeiro é o fim da hegemonia petista. O desastre econômico – dois anos
de recessão e 12 milhões de desempregados – já seria suficiente para
provocá-lo. Mas a Lava Jato, escancarando a gigantesca teia de corrupção
arquitetada pelo partido, bateu outro prego no caixão petista. A
eleição de amanhã certamente baterá mais um. Nada avaliza melhor essa
previsão do que as patéticas aparições de Lula nos comícios e o número
de candidatos petistas que se esmeram em esconder as cores e os símbolos
da sigla. Desaparecer o PT não vai, mas tão cedo não resgatará a antiga
imagem de paladino da ética.
O
segundo motivo, decorrência do anterior, é que o petismo não intimida
mais ninguém. Lula pode blefar à vontade, pois agora, realmente, a praça
é do povo, não dos bandos estridentes que outrora conseguia mobilizar.
Acrescente-se que a parcela da sociedade que não reza por seu catecismo
está mobilizada para a mãe de todas as guerras: a de ideias. Nesse
aspecto, a ideologia petista – uma mescla mal ajambrada de milenarismo,
populismo e suposta sensibilidade social – está com os dias contados.
Terceiro,
e não menos importante, o governo Temer, consertando passo a passo a
economia, reunirá condições para repor o processo político do País em
seus devidos trilhos. Aqui não me refiro necessariamente a uma reforma
institucional abrangente, sabidamente difícil, muito menos a alguma
mágica ou utopia. Refiro-me apenas à reconstituição de um modus faciendi
adequado, assentado sobre uma base parlamentar de centro. Nenhum regime
democrático funciona a contento sem uma base desse tipo, e não era
mesmo concebível que o PT – notoriamente ambivalente a respeito da
alternância no poder, pedra angular da democracia representativa –
pudesse desempenhar tal papel. Quem acreditou nisso pode muito bem
acreditar em Papai Noel.
blog ORLANDO TAMBOSI
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