É preciso, para se analisar com nitidez qualquer processo econômico, político e social, distinguir bem os fatos. Estou me referindo à perspectiva de repatriação de depósitos brasileiros em bancos no exterior elevar-se a 45,8 bilhões de reais, de acordo com a reportagem de Martha Beck, edição de sexta-feira de O Globo, na qual se encontram inseridas declarações de Ana Paula Veescovi, secretária do Tesouro Nacional.
Não é fato que tal parcela de dinheiro transferido da esfera bancária internacional contribua, por exemplo, para reduzir uma parte do déficit fiscal previsto para 2016, da ordem de 170 bilhões de reais. Pode se considerar uma parte das multas e impostos a serem recolhidos como receita pública. Mas não, é claro, o total da repatriação.
TRADUÇÃO PERMANENTE – Afinal de contas, esse montante de dinheiro, em dólares, cerca de 14 bilhões, tem donos, pessoas físicas ou empresas. Não se encontra, portanto, disponível para aplicações governamentais.
O ministro Henrique Meirelles, ex-presidente do Banco de Boston, anos atrás comprado pelo Itaú Personalité para operações no Brasil, conhece perfeitamente o tema. O prazo para repatriação termina nesta segunda-feira, 31.
A vida, como dizia meu saudoso amigo Antônio Houaiss, é uma tradução permanente. De fato, a todo momento nos deparamos com indagações a responder com clareza e com enigmas a decifrar. São raras as certezas absolutas, mesmo porque elas variam de contextos. Nem sempre são os mesmos em contextos e planos diferentes. Não se deve deixar-se levar por slogans. A repatriação virou adjetivo, sinônimo de solução. Na realidade é um substantivo diluído no imenso universo financeiro que nos cerca. Pois, no final da ópera, tudo é relativo, só Deus e absoluto, na definição de Einstein.
QUESTÃO NEBULOSA – Vejam só. Se a repatriação prevista por Paula Vescovo, é de 45,8 bilhões (de reais), evidentemente a tributação sobre tal valor não pode ser integral. Neste caso, se assim fosse, ninguém repatriaria dinheiro algum. No fundo, os que repatriarem estão lucrando alguma coisa. Só um ingênuo, para não dizer idiota, pensaria o contrário. A questão, portanto, é nebulosa.
Isso porque os depósitos foram convertidos em dólar ou euro, moedas que, para brasileiros ou residentes no Brasil, podem representar rentabilidade maior que investimentos em outros ativos financeiros. Não se pode receber esta afirmativa minha como regra, mas sim como hipótese. Para esclarecer, basta comparar o valor do dólar ou euro no início de 2016 com o que representa hoje em reais. A lucratividade, sem risco, é um fato. Caso contrário pessoa alguma se disporia a adquirir a moeda norte-americana ou europeia. Se adquire, é porque acha positivo, ou então para efeito de financiar sua viagem e de sua família ao exterior.
Entretanto o turismo significa, por ano, parcela em torno de 18 bilhões de dólares, menos de um quinto do balanço de pagamento do Brasil em um ano. Mas esta é outra questão.
LANCE ISOLADO – O aspecto essencial anti-slogan está, creio, contido sinteticamente no título deste artigo. O dinheiro que retorna não vai todo para a receita do Tesouro Nacional. Martha Beck e Ana Paula sabem disso. No fim, significa um percentual muito pequeno para equilibrar as contas públicas.
E a repatriação é um lance isolado. Ao passo que a sonegação representa um processo permanente de violação da lei do país.
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