Artigo do professor Ricardo Vélez Rodrígues,
publicado hoje no Estadão, aborda a origem do patrimonialismo, hoje
reforçado, no Brasil, por Lula e pelo PT: com eles, é sempre mais Estado
e menos sociedade:
O que é mais velho no mundo como organização política? Não há dúvida
de que o Estado patrimonial, surgido ao ensejo dos grandes impérios
hidráulicos da Antiguidade, na Mesopotâmia, no Antigo Egito, no Império
Chinês da dinastia Chin, que unificou os antigos “Estados guerreiros”,
nos arcaicos impérios pré-colombianos inca e asteca, nos califados
árabes, no Império Russo, etc. Ora, a modalidade de Estado mais forte do
que a sociedade surgiu justamente ali, onde grandes organizações
pré-burocráticas ligadas ao controle da água se estruturaram, tendo dado
ensejo aos primeiros grandes Estados despóticos de que tomou
conhecimento a humanidade. Era o modelo caracterizado por Marx como
“despotismo asiático”.
Foi tão poderosa a presença desses Estados hidráulicos que os dois
grandes impérios ocidentais que o mundo conheceu na Antiguidade, o de
Alexandre, o Grande, e o Império Romano, sofreram definitivamente a
influência despótica dos patrimonialismos hidráulicos, mediante a
incorporação de práticas absolutistas, tanto da parte do jovem general
macedônio quanto dos césares romanos. Somente séculos depois (a partir
de 1400) apareceram os Estados contratualistas, aqueles que, ao ensejo
da luta de classes, deram lugar aos modernos Estados nacionais, que
solidificaram a prática da representação como forma de garantir a
participação dos cidadãos na res publica, mantendo clara diferenciação entre esfera pública e privada.
Max Weber denominou a primeira forma de organização política,
relativa aos Estados de modalidade hidráulica, como “Estado das
autoridades”, contraposta ao “Estado contratualista”, denominado por ele
“Estado do povo”. Ora, a herança que chegou até nós, na América Latina,
do velho despotismo ibérico pós-feudal foi a dos Estados patrimoniais,
intermediada, na Península Ibérica, pelos oito séculos de dominação
muçulmana, que deu ensejo a Estados mais fortes do que a sociedade na
modalidade concentrada e familística de poder que vingou nos califados
de Sevilla e Granada. Estes somente foram desmontados pelas monarquias
espanhola e portuguesa após séculos de combate contra o invasor
muçulmano, tendo os cristãos, vencedores, copiado os modelos de poder
concentrado e familístico típico das organizações hidráulicas
patrimonialistas. O vencido, no caso os mouros, do ângulo da gestão
pública, terminou impondo o seu modelo despótico ao vencedor.
Algo semelhante, conforme destaca Wittfogel, aconteceu no oriente da
ilha europeia, no Principado de Moscou, que só conseguiu ver-se livre da
dominação despótica da Horda Dourada de Genghis Khan copiando os
procedimentos centralizadores dos invasores asiáticos e anexando a
imensa extensão dos seus territórios na Eurásia, ao ensejo da derrota
definitiva dos mongóis por Ivã IV, o Terrível (que foi czar da Rússia
entre 1547 e 1584).
O patrimonialismo é, portanto, fenômeno político de longa data e
somente conhecendo a sua história será possível elaborar um roteiro que
vise ao seu desmonte. Reza o ditado espanhol que “más sabe el diablo por
viejo que por diablo”. Aplicado o princípio ao caso sobre o qual
refletimos, o Estado patrimonial, este é possuidor de rotinas
administrativas que potencializam as suas forças, de modo a se
autoperpetuar quando surgem dificuldades. É uma espécie de DNA que
preserva a essência patrimonialista, em que pesem as dificuldades que
aparecerem no horizonte. Wittfogel lembra que foi o economista americano
John Maurice Clark que formulou o princípio vigente nos Estados
patrimoniais da “racionalidade administrativa variável”. Estes, quando
postos numa situação de insegurança em decorrência da atuação de forças
que ameacem a sua estabilidade, promovem reformas limitadas, dirigidas
apenas a esconjurar o perigo de extinção da dominação patrimonialista.
Mas uma vez desmontado o risco, as coisas voltam às antigas praxes de
privatização do poder por parte da elite dominante. Era o princípio
getuliano presente nos mandamentos de gestão que o velho líder
são-borjense utilizava nos momentos de crise: “deixar como está para ver
como é que fica” e “não fazer inimigos que não se possa converter em
amigos”.
Ora, com o PT em risco de ser banido do poder está em funcionamento
algo semelhante. Lula mostrou-se amplo conhecedor da dialética
patrimonialista e tece as linhas do roteiro que leve à salvação, mesmo
que temporária, da máquina petista. Isso dá ensejo a uma guerrilha de
desgaste que não soluciona os problemas, mas possibilita uma dose de
oxigênio necessária para manter as coisas como estão, mesmo que o
conjunto da gestão regrida. Convenhamos que o inimigo se encontra acima:
é o Estado mais forte do que a sociedade. Com Dilma ou sem Dilma, ele
está bem de saúde. Mas já seria um passo à frente a saída de Dilma e do
PT do poder.
Nessa longa batalha contra o Estado patrimonial, Antônio Paim lembra, na sua obra A Querela do Estatismo,
que deveriam ser identificados quatro segmentos na análise do Estado
patrimonial brasileiro: militares, tecnocratas, burocracia tradicional e
classe política. Na época em que o mestre escrevia a sua análise
(1978), os dois primeiros segmentos se contrapunham aos outros dois. A
dinâmica para tirar força ao Estado patrimonial estaria ligada,
portanto, a uma prevalência desses segmentos na vida política.
Hoje as coisas estão um pouco mais complexas. A primeira diferença
corre por conta de algo que em 1978 não aparecia claramente: a
organização da sociedade civil e a sua reação contra o estatismo
vigente. Atualmente ela constitui uma quinta variável, e é por aí, a meu
ver, que se deve vislumbrar o caminho para pôr limites ao reforço do
Estado mais forte do que a sociedade.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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