(O Globo) O pagamento de propina a agentes públicos não era o único mecanismo
de atuação do cartel investigado pela Operação Lava-Jato. Documentos
obtidos pelo GLOBO mostram que o grupo conseguiu interferir diretamente
em procedimentos internos da Petrobras, causando prejuízos milionários à
estatal por meio da Associação Brasileira de Engenharia Industrial
(Abemi), entidade que teve como presidente o líder do “Clube das
empreiteiras”, Ricardo Pessoa, entre 2004 e 2008. Em grupo de trabalho
com participação da Petrobras, a associação produziu, desde 2002, pelo
menos 157 procedimentos e comunicados com revisão de regras de
contratação. Hoje, os próprios funcionários da Petrobras admitem que boa
parte foi lesiva à estatal.
Comunicado produzido por Abemi e Petrobras, em dezembro de 2007,
instituiu, por exemplo, procedimento para pagamento de indenização por
chuvas ou descarga elétrica, fazendo com que a estatal assumisse
automaticamente o risco do empreendimento. Dentre os novos
procedimentos, um deles chamou a atenção por fazer com que as chuvas
fizessem aumentar o valor de uma obra em até 50%. No contrato de
terraplanagem assinado no Comperj com o consórcio formado por Andrade
Gutierrez, Odebrecht e Queiroz Galvão, a obra, planejada por R$ 819
milhões, terminou 16 meses depois ao custo de R$ 1,223 bilhão — a
diferença de R$ 404 milhões se deu justamente por conta de quatro
aditivos relacionados às chuvas.
As cláusulas passaram a valer para
todas as empreiteiras com contratos com a Petrobras e também foram
usadas, pelo menos, nas obras da Refinaria Abreu e Lima, em Pernambuco. A
nova regra foi defendida pelo então gerente da estatal, Pedro Barusco, e
levada à Diretoria Executiva da Petrobras por Renato Duque.
Em depoimento ao Ministério Público Federal, Barusco relatou
pagamentos de propinas nessa obra do Comperj que podem ter chegado a R$
34,3 milhões, se considerados o contrato principal e aditivos. Esse
valor teria sido pago a Paulo Roberto Costa e ao PT, mas o ex-gerente
não soube detalhar como isso teria sido efetivado.
CUSTO ADICIONAL
Para determinar o valor a ser
desembolsado pela estatal em função de chuvas, a referência era uma
tabela da Abemi com custos médios diários de paralisação. Os pagamentos
ocorriam tanto em função de precipitações já ocorridas quanto em função
de estimativas para os meses seguintes. Quando o contrato da obra foi
assinado, em março de 2008, já estavam previstos R$ 130 milhões para
indenização por paralisações.
“Embora geralmente, conforme previsão nos contratos, cada uma das
partes fique responsável pelos próprios prejuízos decorrentes de caso
fortuito, é possível que umas das partes se responsabilize pela
integralidade dos custos”, escreveu o departamento jurídico da estatal
em parecer em defesa do uso da tabela Abemi de chuvas na obra do
Comperj.
Em depoimento à Justiça Federal no Paraná no início deste mês, o
gerente de Segurança Empresarial da Petrobras, Pedro Aramis, criticou a
regra instituída: — O volume de chuvas histórico de uma região já deveria fazer parte
do contrato de uma obra, sem qualquer custo adicional — diz o dirigente,
para quem a implantação da tabela Abemi representou maiores custos à
estatal: — A Petrobras passou a indenizar por chuvas que ela não
indenizava antes.
Mestre em Direito civil, diretor executivo do Instituto de Direito
Privado (IDP) e atualmente vinculado à Universidade Mackenzie, Diogo
Leonardo Machado de Melo diz que cláusulas de chuva são admissíveis em
contratos de grandes obras. Mas devem ser baseadas em estudos de
pluviometria da área e nunca ultrapassar 20% do valor total da obra.
— Apenas em casos como os de calamidade pública, que fogem da
previsão de qualquer governo ou empresa, pagamentos acima de 20% são
admissíveis. Mas a empresa contratada tem que provar que algo absurdo
aconteceu, em um processo administrativo. Um bom gestor deve pedir a
realização de perícia, o pagamento não é automático. A Petrobras não
poderia abrir os cofres e aceitar a excepcionalidade como regra — afirma
o especialista.
Em dezembro do ano passado, o ex-gerente jurídico da área de
Abastecimento da Petrobras Fernando de Castro Sá afirmou em depoimento à
Polícia Federal que a interferência da Abemi nas premissas de
contratação da estatal coincidiu com a atuação do cartel de empreiteiras
denunciado pelo MPF. Segundo ele, a partir daí, as regras reunidas
desde 1999 no manual de procedimentos contratuais foram “rasgadas”. — A
minuta que tinha que ser elaborada pelo jurídico e aprovada pela
diretoria passou a ter que contar com o crivo da Abemi — diz o
dirigente, que atribui ao ex-diretor de Serviços, Renato Duque, a
atuação mais relevante em nome dos interesses da Abemi dentro da
estatal.
Castro Sá afirma ter se “assustado” quando a estatal passou a revisar
a minuta contratual padrão e exigir que seu setor submetesse os
documentos para “análise da Abemi” antes das reuniões do grupo de
trabalho. Ao alertar colegas sobre a irregularidade, ele afirma ter sido
reprimido em reunião por Renato Duque: — Eu e a Venina (Fonseca, ex-gerente de Abastecimento) levamos uma
escovada do diretor Duque. (Ele dizia) que a gente estava atrapalhando,
não sabia como as empreiteiras trabalhavam, e que se não fosse do jeito
que faziam, não ia se conseguir contratar.
GRUPO SEM AUTONOMIA, DIZ NOTA
Por meio de
nota, a Abemi informou que o grupo de trabalho com a Petrobras era
“técnico e normativo”, mas sem autonomia ou autorização “para ir além de
propor sugestões”. “O objetivo do GT sempre se concentrou em buscar a
melhoria das condições de execução dos empreendimentos”, afirmou a
entidade, para quem os procedimentos discutidos tratavam “principalmente
de segurança, saúde e meio ambiente”. A associação destacou ter dado
sempre “publicidade ao conteúdo de todos os trabalhos desenvolvidos,
inclusive perante a Petrobras, para um universo de mais de 100 empresas”
e disse “defender a livre concorrência”.
O GLOBO perguntou à Petrobras qual era a média histórica e qual foi a
média de chuvas entre 2008 e 2010 na região do Comperj, mas a estatal
não respondeu. A assessoria informou que soluções apresentadas após
discussão com a Abemi não eram obrigatórias e passavam por análise
“jurídica e técnica”. Segundo a estatal, as soluções teriam “se mostrado
benéficas na implantação de projetos”. Andrade Gutierrez, Odebrecht e
Queiroz Galvão negaram irregularidades na execução do contrato de
terraplanagem do Comperj. A Andrade Gutierrez, líder no consórcio, disse
que os contratos com a Petrobras teriam ocorrido “dentro dos processos
legais de contratação” e que apenas “o cliente poderia se pronunciar”
sobre detalhes da obra. As três empresas negaram ter pagado propina.
blog do coronel
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