O escritor Mario Vargas Llosa comenta, no El País,
o livro de Jordi Gracia que recupera a biografia do filósofo espanhol
José Ortega y Gasset (1883-1955), um escritor que não desdenhava o
estilo literário nem a exposição de suas ideias ao público em jornais ou
palestras. Ortega viveu no período em que floresceram o fascismo e o
comunismo, as duas pragas ideológicas que infestaram o século passado e
deixam sangrentos rastros até hoje. Boa leitura - ainda mais que Ortega y
Gasset é praticamente desconhecido no Brasil de tradição autoritária
positivista e católico-marxista (A rebelião das massas é a única obra que mereceu comentários por aqui, em geral de detratores):
Eu
gostaria de ter ouvido uma palestra de Ortega y Gasset, ou melhor ainda,
de ter acompanhado algum dos seus cursos. Todos os que o ouviram dizem
que falava com a mesma elegância e inteligência com que escrevia, em um
espanhol rico e fluente, muito seguro de si, com certos desplantes de
vaidade que não ofendiam ninguém, pela enorme cultura que exibia e pela
clareza com que era capaz de desenvolver os temas mais complexos. A
doutora Margot Arce, que foi sua aluna, me contava em Porto Rico, meio
século depois de tê-lo ouvido, sobre o silêncio reverencial e extático
que sua palavra impunha ao público. Posso imaginar muito bem; mesmo
quando o lemos – e eu o li bastante, sempre com prazer – temos a
sensação de ouvi-lo, porque em sua prosa clara e frondosa há sempre algo
de oral.
A
biografia que Jordi Gracia (Taurus) acaba de publicar mostra um Ortega y
Gasset muito menos robusto e firme em suas ideias e convicções do que
se pensava, um intelectual que, de quando em quando, experimenta crises
profundas de desânimo que paralisam essa energia que, em outros
momentos, parece inesgotável e o faz escrever, estudar e meditar sem
trégua durante semanas e meses, produzindo artigos, ensaios, uma
correspondência imensa, dando aulas e palestras e desenvolvendo ao mesmo
tempo um trabalho editorial que deixava uma marca importante na cultura
de sua época. Mostra, ainda, que esse trabalhador incansável era, como
um Isaiah Berlin, praticamente incapaz de planejar e terminar um livro
orgânico, apesar de ter a intuição premonitória de muitos de que nunca
chegaria a escrever, porque a dispersão o vencia. Por isso foi, acima de
tudo, um escritor de artigos e ensaios curtos, e seus livros, todos
eles, com exceção do primeiro –Meditações do Quixote –, são
recompilações ou inconclusos. Nada disso empobrece nem diminui a
originalidade do seu pensamento; pelo contrário, como acontece com os
textos quase sempre curtos de Isaiah Berlin, os artigos de Ortega são
geralmente algo muito mais rico e profundo do que costuma ser um artigo
jornalístico: análises, exposições e críticas que muitas vezes abordam
temas de altíssimo nível intelectual, carregadas de sugestões por vezes
deslumbrantes e, no entanto, sempre acessíveis ao leitor não
especializado.
Por isso,
Jordi Gracia fez muito bem ao rastrear como um sabujo toda a trajetória
dos artigos de Ortega y Gasset; é a forma mais segura de se aproximar
da sua intimidade de pensador e escritor, de averiguar como fluía nele
sua vocação de filósofo e literato. Tudo começava com uma ideia ou uma
intuição que despejava em um artigo (às vezes em vários). A partir daí,
esse embrião passava pela prova de uma aula ou palestra pública e,
enriquecido, ganhava corpo em um ensaio. Embora muitas vezes tivesse a
ideia de estendê-lo em um livro, em geral não chegava a fazê-lo, porque
outra intuição, descoberta ou invenção genial o desviava para outro
artigo que, então, seguindo o mesmo percurso, acabava desembocando em um
desses ensaios – com frequência excelentes, não raro soberbos –, que
são a espinha dorsal de sua obra e que ocuparam boa parte de sua vida.
Jordi
Gracia também mostra que, em Ortega, a vocação política foi tão
importante quanto a intelectual. Na sua juventude, assim como na idade
madura, ambas as vocações se fundiam em uma; queria ser um grande
pensador e um grande escritor para mudar radicalmente a Espanha,
torná-la europeia, modernizá-la, democratizá-la, o que para ele – como
para os intelectuais que atraiu para o Agrupamento a Serviço da
República – significava deixar o país ser governado por seus filhos mais
cultos, inteligentes e decentes, em vez da classe política que despreza
como medíocre, desprovida de ideias e criatividade, acomodada e cínica.
Dedica boa parte do seu tempo a tentar formar um movimento que
materialize esse projeto, pois está convencido de que se trata de uma
ação cultural, da disseminação de ideias novas e férteis, e isso explica
que se entregue à tarefa jornalística em jornais e revistas, convencido
de que esta é a melhor maneira de mudar a política vigente, espalhando
entusiasmo com ideias e valores que devem chegar ao público da mesma
forma que chegavam aos seus alunos: através da persuasão. Nisso
consistia o que ele chamava de liberalismo, embora, muitas vezes,
acrescentasse a palavra socialismo, para indicar que essa revolução
cultural da vida política não estaria isenta de um forte conteúdo
social. A República lhe pareceu ser o regime mais propício para a
transformação política da Espanha.
No
entanto, aqueles não eram tempos para a saudável controvérsia das
ideias, como queria Ortega, e sim para os fanatismos em que insultos e
pistolas rapidamente substituíam os debates e diálogos entre
adversários. Este será o grande fracasso de Ortega, a absoluta
inoperância daquela pacífica revolução cultural que propunha e que seria
enterrada por mais de meio século pela violenta experiência
republicana, seguida pelo levante fascista e pela guerra.
O livro
de Jordi Gracia descreve em pormenores e com admirável objetividade a
experiência traumática que significou para Ortega o desmoronamento de
todos os seus anseios políticos. Primeiro, a desilusão com a República
que não se parecia em nada com a ilustrada coexistência na diversidade
que havia previsto, e depois o levante militar e a Guerra Civil. A
impotência o levou ao silêncio. Mas nunca traiu o seu próprio ideal,
embora admitisse que, nessa circunstância, fosse simplesmente
impraticável, desprovido de qualquer realidade. O silêncio que manteve
em tantos anos de exílio na França, em Portugal e na Argentina
desprestigiou Ortega aos olhos de muitos. Creio ter sido um ato de
grande coragem tentar se manter à margem, sem tomar partido, diante de
duas opções que lhe pareciam igualmente inaceitáveis: o fascismo e uma
república muito pouco democrática, dominada por extremismos sectários.
Considero
ter sido um grande erro de sua parte retornar à Espanha em plena
ditadura, acreditando ingenuamente que o regime se abriria com o
pós-guerra; e a verdade é que pagou caro, pois, como mostra Jordi Gracia
com riqueza de detalhes, enquanto era continuamente atacado (e
silenciado) com ferocidade pelo nacional-catolicismo, determinados
sectores falangistas tentavam apropriar-se dele, semeando a confusão ao
seu redor, a ponto de seguidores tão fiéis como María Zambrano chegarem a
acreditar que havia traído seus antigos ideais. Nunca os traiu; até o
fim de seus dias foi laico e ateu, defensor de uma democracia liberal
marcada pela tolerância. Ao mesmo tempo, apesar do desconforto político
permanente em que passou seus últimos anos, sua vitalidade intelectual
nunca deixou de se manifestar, em ensaios e artigos que às vezes
retomavam o vigor expressivo e a riqueza criativa do passado. O
reconhecimento que teve nos últimos anos foi no exterior, sobretudo na
Alemanha, mas também na Inglaterra e nos Estados Unidos. Na Espanha, por
outro lado, até hoje nunca foi totalmente reabilitado porque, para
alguns, é uma figura ambígua e reticente, que manteve durante a Guerra
Civil e o subsequente pós-guerra um silêncio covarde que constituía uma
discreta cumplicidade com os fascistas, ou um conservador inveterado e
irremediavelmente indisposto com a modernidade.
Um dos
grandes méritos do livro de Jordi Gracia é o balanço que faz, sem
desculpar nenhum de seus equívocos e erros políticos, nem deixar de
observar como, por vezes, a vaidade o cegava e o levava a exagerar em
seus rompantes: Ortega y Gasset é um dos grandes pensadores de nosso
tempo e, precisamente no momento em que vivemos – não no que ele viveu
–, suas ideias políticas têm sido amplamente confirmadas pela realidade.
Lê-lo agora não é uma tarefa arqueológica, mas uma imersão em um
pensamento brilhante, muito útil para examinar a problemática atual, ao
mesmo tempo em que se desfruta do prazer sofisticado que produz um
escritor que pensava com grande liberdade e originalidade e expressava
suas ideias com a beleza e a precisão dos melhores prosadores do nosso
idioma.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário