Ajuste fiscal sem hipocrisia
Ricardo Viveiros* O
debate sobre o ajuste fiscal no Brasil parece girar em torno de um eixo
fixo: o sacrifício dos mais vulneráveis. A cada nova proposta ou clamor
dos “procuradores” da Faria Lima – aqueles agentes do mercado que,
dentro ou fora do governo, sempre encontram aplausos nos mais
favorecidos – o alvo permanece inalterado: cortar investimentos sociais.
Para eles, o equilíbrio das contas públicas é mágico, mas seletivo.
Os
números não mentem, ainda que a interpretação seja frequentemente
enviesada. No orçamento de 2024, os gastos com Forças Armadas somam R$
86,8 bilhões, enquanto incentivos fiscais para empresas alcançam R$ 97,7
bilhões até agosto. Acrescente-se a isso os R$ 44,67 bilhões destinados
às emendas parlamentares – muitas vezes instrumentos de barganha
política –, e temos um total de R$ 229,17 bilhões que raramente entram
na mira dos “ajustes”. E isso sem falar na generosidade do Plano Safra
2024/2025: R$ 400,59 bilhões para os gigantes do agronegócio, muitas
vezes os mesmos que acumulam dívidas monumentais.
O discurso
hegemônico evita tocar em privilégios estabelecidos, optando por
sacrificar o pouco que sustenta muitos. Quando se fala em cortes, não
são os incentivos bilionários ao setor empresarial ou os subsídios ao
agro que entram em pauta. Ao contrário, é a proteção social que se torna
alvo preferencial. Programas como o Bolsa Família (R$ 14 bilhões), o
Benefício de Prestação Continuada (R$ 30 bilhões), o Farmácia Popular
(R$ 3,4 bilhões) e até iniciativas modestas, como o Vale Gás (R$ 3,7
bilhões), são tratados como “excessos” a serem eliminados.
Somados,
esses programas representam R$ 60,8 bilhões – menos de um sexto do que é
destinado às Forças Armadas, incentivos fiscais e emendas
parlamentares. Ainda assim, são apresentados como o grande problema
fiscal. Sem falar, claro, também das sempre sacrificadas áreas como Meio
Ambiente e Cultura. É uma narrativa que desconsidera vidas humanas e
ignora o papel essencial desses programas para a sobrevivência de
milhões de brasileiros.
Há um padrão evidente nessa dança de
cortes: desmontar, pouco a pouco, as bases de um projeto de governo que
foi escolhido democraticamente nas urnas. E que, como vemos, é rejeitado
pela seita que não aceita o resultado das últimas eleições e trama um
golpe de Estado. Enquanto a retórica dos “ajustes” é propagada como
técnica e neutra, seu impacto é profundamente político e ideológico.
Trata-se, na prática, de inviabilizar políticas públicas que combatem
desigualdades históricas, ao mesmo tempo em que se preserva – ou mesmo
se amplia – a “bondade” destinada aos setores mais abastados.
Esse
golpe fiscal, embora mais sutil do que os atrapalhados ataques
terroristas aos prédios dos três poderes e as ameaças de morte contra
personalidades públicas, tem consequências igualmente preocupantes. Cada
corte em programas sociais cobra um preço em vidas humanas, seja no
aumento da fome, na precarização da saúde ou na exclusão educacional. E,
ao contrário do que apregoam os arautos do mercado, não é o Estado
“inchado” que pesa sobre o orçamento, mas sim as escolhas deliberadas
que priorizam poucos em detrimento de muitos.
A discussão sobre
ajuste fiscal não precisa ser tabu. É verdade que há gastos
injustificáveis e outros que, no mínimo, merecem revisão. No entanto, o
debate deveria começar por onde o impacto social é menor – como os
incentivos ao grande capital e as benesses ao agronegócio – e não pela
exclusão dos mais vulneráveis. Várias empresas responsáveis do setor
agrícola não dependem de favores, são geradoras de empregos e renda,
tratam com respeito seus trabalhadores, não agridem o meio ambiente e
pagam impostos como qualquer negócio. Idem na indústria, no comércio e
nos serviços.
A narrativa dominante precisa ser desafiada. Não há
mágica no ajuste fiscal, apenas escolhas políticas. E, enquanto essas
escolhas ignorarem os mais necessitados, o “ajuste” continuará sendo
apenas um eufemismo para a perpetuação da desigualdade.
*Ricardo Viveiros,
jornalista, professor e escritor, é doutor em Educação, Arte e História
da Cultura; autor, entre outros livros, de “A Vila que Descobriu o
Brasil” (Geração), “Justiça Seja Feita” (Sesi-SP) e “Memórias de um
Tempo Obscuro” (Contexto).
![]() Ricardo Viveiros. Crédito: divulgação. |
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