"Zamiátin luta com as armas da literatura, do teatro, da música; ele entende que, se o poder esmagar a dissonância, o Gulag será apenas uma questão de tempo”. Luciano Trigo para a Gazeta do Povo:
“É
por isso que, embora seja um engenheiro, Zamiátin luta com as armas da
literatura, do teatro, da música; ele entende que, se o poder esmagar a
dissonância, o Gulag será apenas uma questão de tempo”.
Quem
fala é Vadim Baranov, personagem do romance O mago do Kremlin
(Vestígio, 2022), de Giuliano da Empoli, indicado ao Prêmio Goncourt.
Baranov é inspirado em Vladislav Surkov, braço direto de Putin até 2020.
Basicamente
todos os personagens do livro são inspirados em atores reais do
complexo e perigoso teatro político da Rússia, como Mikhail
Khodorkóvski, magnata de gás e petróleo, que foi preso e hoje vive
exilado em Londres; ou Boris Berezóvski, milionário que rompeu com Putin
e acabou se suicidando; ou ainda Ígor Sétchin, conselheiro de Putin. O
próprio Putin, por sua vez, aparece como o personagem Czar.
O
romance retrata de maneira inventiva os bastidores do poder russo,
marcado por uma guerra permanente entre os oligarcas e cortesãos que
orbitam o Kremlin e periodicamente perdem a simpatia de Putin.
Mas
a parte que mais me interessou está logo no começo da narrativa –
justamente, a digressão de Baranov sobre Yevgeny Zamiátin, escritor
perseguido por Stálin e autor, entre outros livros, do romance de ficção
científica Nós – que teria inspirado tanto 1984, de George Orwell,
quanto Admirável mundo novo, de Aldous Huxley.
Formado
em Engenharia Naval, Zamiátin foi enviado a Newcastle, na Inglaterra,
em 1916 – um ano antes da revolução – para supervisionar a construção de
dois quebra-gelos para o governo russo. Quando voltou, após 18 meses,
encontrou um país completamente diferente. Inicialmente simpático à
revolução, ele logo se deu conta de que o sonho de construção de uma
nova ordem social se transformaria rapidamente em um pesadelo distópico.
Depois
de publicar artigos criticando políticas de Lênin, incluindo a
perseguição a intelectuais dissidentes e camponeses resistentes à
coletivização, Zamiátin logo se tornou persona non grata, passando a ser
perseguido e violentamente difamado pela máquina soviética de moer
reputações.
Concluído
em 1921, o manuscrito de Nós foi classificado como “ideologicamente
indesejável” e sumariamente censurado; o mesmo aconteceria com o ensaio
Eu temo, no qual o escritor defendia a liberdade da criação literária,
ao mesmo tempo em que manifestava receio pela própria vida.
Quando
o manuscrito de Nós foi contrabandeado para Nova York, onde foi
publicado em tradução em 1924, Zamiátin foi demonizado de vez, expulso
da União Nacional dos Escritores e condenado ao ostracismo. Sem ter como
se sustentar, em 1931 Zamiátin decidiu escrever uma carta a Stálin,
solicitando permissão para emigrar. Surpreendentemente, Stálin
concordou.
No
exílio europeu, Zamiátin trabalhou como roteirista de cinema e viveu em
solidão e privação, até morrer discretamente em Paris em 1937, aos 53
anos. A imprensa soviética não noticiou o óbito. Nós só seria publicado
na União Soviética em 1988, quando o regime comunista já se encontrava
em adiantado estado de decomposição.
No
romance de Da Empoli, Baranov mostra ao narrador, um intelectual do
Ocidente em visita a Moscou, o original da carta enviada por Zamiátin a
Stálin, datada 15 de junho de 1931:
“Caro Iossif Vissariónovich
O
autor da presente, condenado à pena capital, se volta a ti para pedir a
comutação de sua pena. Meu nome provavelmente te é conhecido. para mim,
enquanto escritor, ser privado de escrever equivale a uma condenação à
morte”.
A íntegra da carta pode ser lida neste link (em inglês)
O
mago do Kremlin não deve ser entendido apenas como um roman à clef
sobre a Rússia de Putin, mas também como uma investigação ficcional
sobre o modo como a política funciona hoje em diferentes países do
mundo. Vivemos uma época na qual o autoritarismo se traveste de virtude,
e na qual a censura e a perseguição são vendidas como ferramentas de
defesa da democracia.
Escreve
o narrador: “Zamiátin era um oráculo, ele não se dirigia unicamente a
Stálin: ele alfinetava todos os futuros ditadores, os oligarcas do Vale
do Silício e os mandarins do partido único chinês. (...) O indivíduo
solitário, o livre arbítrio e a democracia se tornaram obsoletos: a
multiplicação dos dados transformou a humanidade em um único sistema
nervoso, um mecanismo feito de configurações padronizadas, como uma
nuvem de pássaros ou um cardume de peixes”.
O Gulag pode ser mesmo uma questão de tempo.
Postado há 3 weeks ago por Orlando Tambosi
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