O tenente-coronel vai admitir que vendeu as peças nos EUA, transferiu clandestinamente o dinheiro para o Brasil e o entregou em espécie ao ex-presidente. Reportagem de capa da revista Veja:
O
tenente-coronel Mauro Cid está preso preventivamente há três meses em
uma cela do Batalhão de Polícia do Exército, em Brasília. Por quatro
anos, ele serviu como ajudante de ordens de Jair Bolsonaro,
posto que lhe deu acesso como a mais ninguém ao dia a dia do governo e à
intimidade do ex-presidente. Cid foi preso depois que a Polícia Federal
descobriu que ele falsificou cartões de vacinação dele, de sua família e
do próprio ex-presidente da República. As investigações prosseguiram e
no telefone do militar, apreendido com autorização judicial, foi
encontrado o roteiro de um plano golpista para anular o resultado das
eleições de 2022. Por último, soube-se que o coronel também se envolveu
numa insólita tentativa de vender joias, relógios, canetas e outros
presentes recebidos por Bolsonaro durante o mandato — uma tramoia
planejada e executada na surdina que teria rendido alguns milhares de
dólares ao ex-presidente. Sórdidos, os detalhes do caso trincaram a
imagem de vestal cultivada por Jair Bolsonaro, agravaram ainda mais a
sua complicada situação jurídica, silenciaram seus apoiadores
estridentes e ainda mancharam a imagem do país com uma bandalheira
típica de uma república bananeira. E tende a ficar pior — muito pior.
Mauro
Cid, que se manteve em silêncio desde que foi preso, decidiu confessar.
Acuado diante das múltiplas evidências colhidas pela polícia, o
ex-ajudante de ordens vai assumir sua participação nos crimes. No caso
dos presentes, vai confirmar que participou da venda das joias nos
Estados Unidos, providenciou a transferência para o Brasil do dinheiro
arrecadado e o entregou a Jair Bolsonaro — em espécie, para não deixar
rastros. Mas o tenente-coronel não vai assumir sozinho a
responsabilidade pelo que aconteceu. Ele vai dizer às autoridades que
fez tudo isso cumprindo ordens diretas do então presidente da República,
que seria o mandante do esquema. A revelação vai provocar um estrondo
na investigação, já que a defesa de Bolsonaro afirmou que ele “jamais se
apropriou ou desviou quaisquer bens públicos”. Em março deste ano, o
ex-presidente teria, inclusive, devolvido “voluntariamente” algumas das
joias que estavam em seu poder. A defesa também alegou que, por
considerar alguns presentes como sendo “personalíssimos” — ou seja, que
não pertenciam ao acervo público —, podia dar a eles a destinação que
bem entendesse. Como não tinha interesse em ficar com determinados
itens, Bolsonaro teria recebido a sugestão de vendê-los, mas só soube os
detalhes de como as negociações haviam sido feitas através da Polícia Federal.
A
confissão de Cid, confirmada a VEJA pelo criminalista Cezar Bitencourt,
seu advogado, obviamente, põe essa versão em xeque. Pelos detalhes que
ele pretende contar, ficará evidente que o presidente sabia, sim, que,
se não todos, ao menos alguns dos procedimentos adotados eram totalmente
irregulares, outros criminosos mesmo. A questão do dinheiro, por
exemplo. A venda de dois relógios de luxo, um Rolex e um Patek Philippe,
rendeu 68 000 dólares à “organização criminosa” que, segundo a Polícia
Federal, usou a estrutura do Estado para enriquecimento ilícito. Cid
dirá à Justiça que negociou as mercadorias por ordem do chefe. “Resolve
lá”, teria dito Bolsonaro, numa determinação que incluía ainda trazer
para o Brasil o dinheiro amealhado. “A relação de subordinação na
iniciativa privada é uma coisa. O funcionário pode cumprir ou não. No
funcionalismo público, é diferente. Em se tratando de um militar, essa
subordinação é muito maior”, explica o advogado.
Cid pai: o general, cuja imagem aparece refletida em um dos presentes, emprestou a conta bancária
Partiu
do próprio Cid, porém, a solução de usar uma conta bancária nos Estados
Unidos, em nome do pai dele, o general Mauro Lourena Cid, para receber
os pagamentos pelas joias negociadas. Os valores posteriormente eram
enviados ao Brasil. Num primeiro momento, o pai teria refutado a ideia,
mas acabou cedendo aos apelos do filho após ouvir dele que seria
arriscado sacar o dinheiro e viajar com ele na mala. A PF obteve
mensagens trocadas entre a família Cid que indicam a concepção do plano.
Num diálogo travado em fevereiro deste ano, o tenente-coronel avisa que
Bolsonaro está indo para Miami e pergunta se o ex-mandatário poderia
dormir na casa do pai. Na sequência, Mauro Cid menciona que a hospedagem
daria espaço à entrega a Bolsonaro do “que está faltando aí”. Noutra
mensagem, Cid conta que o pai pretende entregar 25 000 dólares a
Bolsonaro, de preferência pessoalmente e em espécie, para não deixar
registro no sistema bancário. “Conforme o quadro fático exposto no
transcorrer da presente representação, há fortes indícios de que os
investigados utilizaram a estrutura do Estado brasileiro para desviar de
bens de alto valor patrimonial entregues por autoridades estrangeiras
ao Presidente da República ou agentes públicos a seu serviço, e
posterior ocultação da origem, localização e propriedade dos valores
provenientes, com o intuito de gerar o enriquecimento ilícito do
ex-presidente da República”, diz o relatório policial.
Recheada
de trapalhadas, a operação de recuperação de joias foi um desastre — do
ponto de vista de reputação e também jurídico. “A questão é que isso
pode ser caracterizado também como contrabando. Tem a internalização do
dinheiro e crime contra o sistema financeiro”, diz Bitencourt. “Mas o
dinheiro era do Bolsonaro”, ressalta. O novo defensor do ajudante de
ordens conta que pretende se reunir com o ministro Alexandre de Moraes
para tratar da confissão, que, segundo ele, servirá de atenuante na
hora da definição da pena de seu cliente. O Código Penal estabelece que a
confissão espontânea sempre deve mitigar a sanção imposta ao
investigado. Ao contrário da delação premiada, em que o tamanho da
penalidade do colaborador integra as cláusulas da colaboração, na
confissão cabe ao juiz decidir de quanto será o abatimento. Também é
considerada circunstância atenuante quando o investigado comete o crime
“em cumprimento de ordem de autoridade superior” — no caso de Mauro Cid,
por ordem de Bolsonaro.
Frederick Wassef: o advogado do ex-presidente recomprou numa loja da Pensilvânia o relógio que fazia parte do kit de joias
A
confissão agravará a situação do ex-presidente, que ainda não aparece
como investigado no caso, apesar de a PF sugerir que ele é o
beneficiário final do esquema que surrupiou joias do acervo da
Presidência da República, tirou-as clandestinamente do Brasil em voos
oficiais da Força Aérea Brasileira (FAB) e vendeu as peças valiosas nos
Estados Unidos. Segundo as investigações, Mauro Cid e outros assessores
de Bolsonaro tentaram negociar pelo menos três kits de joias recebidas
de chefes de Estado e autoridades estrangeiras. Um deles, composto de um
barco e uma árvore, dado pelo governo do Bahrein, não foi negociado
porque, ao contrário do que imaginavam os envolvidos, não valia muito.
Outro chegou a ser anunciado numa loja do ramo, mas não foi comprado, o
que rendeu uma lamúria de Mauro Cid. “Só dá pena porque estamos falando
de 120 000 dólares. Hahahaha”, escreveu o tenente-coronel para Marcelo
Câmara, outro assessor do ex-presidente na lista de investigados. Com
base em mensagens de texto e áudios, a PF registra que as tentativas de
venda se desenrolaram sem constrangimento até o jornal O Estado de S.
Paulo divulgar que o mesmo Mauro Cid tentou desembaraçar na Receita
Federal um kit de joias presenteado pelo governo saudita à
ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro.
Em
reação a esse episódio, o Tribunal de Contas da União (TCU) abriu uma
investigação sobre os presentes e ameaçou checar se eles estavam
devidamente guardados. Os assessores de Bolsonaro, então, deflagraram
uma operação para reaver as peças negociadas, uma precaução que não
seria necessária caso todas as transações realizadas tivessem amparo
legal. Advogado do ex-presidente, Frederick Wassef conseguiu recomprar o
Rolex. De início, ele disse que era vítima de fake news e não sabia de
joia alguma. Depois, foi obrigado a mudar de posição. Confrontado com a
revelação de que a PF tinha em mãos o comprovante da recompra do
relógio, emitido em seu nome, o advogado afirmou que pagou com recursos
próprios, que o ex-presidente não sabia de sua iniciativa e que seu
objetivo era devolver o relógio ao TCU. Wassef, segundo suas próprias
palavras, fez um favor ao Brasil. A polícia, obviamente, pensa diferente
e o incluiu entre os suspeitos de usar a “estrutura do Estado para
obter vantagens”, o que configura crime de peculato, cuja pena chega a
até doze anos de cadeia. “Os elementos de prova colhidos demonstraram
que na gestão do ex-presidente Jair Messias Bolsonaro foi criada uma
estrutura para desviar os bens de alto valor presenteados por
autoridades estrangeiras ao ex-presidente da República para serem
posteriormente evadidos do Brasil e vendidos nos Estados Unidos, fatos
que, além de ilícitos criminais, demonstram total desprezo pelo
patrimônio histórico brasileiro e desrespeito ao Estado estrangeiro”,
afirma a PF.
Michelle Bolsonaro: presente destinado à primeira-dama foi apreendido pela Receita Federal
As
descobertas levaram à abertura de outro flanco de investigações contra
Bolsonaro, já acossado por suspeitas de atacar adversários e
instituições, promover desmandos na pandemia, contestar a credibilidade
do sistema eleitoral e insuflar um golpe de Estado. O potencial de dano
ao ex-presidente é enorme nos campos político e jurídico. Pesquisa Atlas
divulgada na quarta-feira 16 mostrou que 54% dos entrevistados acham
que ele está envolvido no caso das joias, 49% consideram que ele cometeu
crime e o mesmo percentual afirma que Bolsonaro não é vítima de
perseguição, como ele sempre alega ao ser confrontado com uma acusação.
Uma sondagem da Quaest divulgada revelou que 66% de mais de 2 000
entrevistados tomaram conhecimento do caso. Do total de pessoas
consultadas, 41% acham que o capitão deve ser preso, ante 43% que não
concordam com a iniciativa. No debate público, Bolsonaro está
emparedado. Seus apoiadores, sempre aguerridos nas redes sociais e no
Congresso, reagiram, em geral, com o silêncio. Bolsonarista de quatro
costados, o deputado Bibo Nunes (PL-RS) até tentou responder, dizendo
que só acreditava na recompra do Rolex se o recibo aparecesse. Apareceu,
e o silêncio ensurdecedor continuou, deixando Bolsonaro — o homem
simples como a gente, que cultiva a autodeclarada fama de honesto — sem a
blindagem costumeira.
Escultura recebida do governo do Bahrein: ao contrário do que imaginavam os envolvidos, não valia muito
Assessores
do capitão, que falam do risco de prisão desde a derrota na eleição de
2022, reconhecem que a novela das joias pode aproximar Bolsonaro da
cadeia. Desde a operação da PF, advogados e consultores têm apresentado
ao ex-presidente alternativas para neutralizar o desgaste do escândalo,
considerado de fácil assimilação pelo eleitor comum, e encontrar uma
linha de defesa sólida para que as acusações sejam contestadas nos
tribunais no médio prazo. Não será tarefa fácil. O capitão deve se
apegar à linha de que não existe uma lei aprovada pelo Congresso que
estabeleça em definitivo se um presente pode ou não ser incorporado ao
acervo pessoal do ex-chefe do Executivo. Por essa tese, regras como as
estabelecidas pelo TCU em 2016, quando a Corte determinou a devolução de
peças presenteadas a Lula
e à ex-presidente Dilma Rousseff e definiu que apenas acessórios como
bonés ou perecíveis poderiam ser levados, não têm força legal e, por
isso, não poderiam levar à responsabilização penal.
Para
embaralhar a percepção do eleitorado sobre o escândalo, apoiadores do
ex-mandatário foram aconselhados a divulgar uma regulamentação do
governo Michel Temer segundo a qual joias recebidas no exercício do
cargo de presidente podem ser incorporadas aos bens pessoais ao final do
mandato. A regra já foi revogada, mas a existência da antiga norma
serve para semear a ideia de que mesmo governos pouco simpáticos ao
bolsonarismo consideraram artigos de luxo como itens personalíssimos e,
portanto, passíveis de serem cadastrados como patrimônio privado pelo
governante que deixa o poder. Para sair das cordas no embate político, a
ala mais ideológica foi instruída a viralizar uma imagem de Lula usando
um relógio Piaget, avaliado em cerca de 80 000 reais, que o petista
recebeu de presente em um de seus mandatos anteriores e desfilava com
ele durante a campanha do ano passado. Se acolhida, a linha de
argumentação poderia tirar Bolsonaro da esfera penal e circunscrevê-la
em uma ação de improbidade, ilícito que não prevê pena de prisão, ou em
um crime menor, como o de peculato culposo.
Bitencourt, advogado de Cid: “O dinheiro era do Bolsonaro”
Caracterizado
pela situação em que um agente público se apropria de um bem em razão
do cargo, o peculato poderia ser reduzido a pó se os investigados
provassem que não sabiam que estavam cometendo um crime e se reparassem
completamente o dano. Foi por isso que a operação de recompra das joias
foi colocada de pé. Aliada à ideia de que não haveria lei que define o
que pode ou não ser incorporado ao patrimônio particular de um
ex-presidente, a tese poderia limpar a barra de Bolsonaro. O problema,
admitem seus aliados, é o histórico de decisões de Alexandre de Moraes
desfavoráveis ao ex-presidente, além da clara falta de ética em todo o
episódio — e, agora, a iminente confissão de Mauro Cid. Diz um
integrante do núcleo de aconselhamento do ex-presidente: “Do ponto de
vista jurídico, não seria uma decisão tresloucada se Alexandre de Moraes
quisesse prender o Bolsonaro. Há indícios de autoria, de materialidade e
de tentativa de interferência na instrução da investigação”.
Alexandre de Moraes: “Quem me conhece sabe que vou achar”
Desde
o início de sua carreira política, Jair Bolsonaro tem uma relação
peculiar com o patrimônio público. Em mais de trinta anos de mandatos
eletivos, ele sempre se gabou de nunca ter se envolvido em esquemas de
corrupção, como o mensalão e o petrolão. Ao mesmo tempo, foi acusado de
pagar serviços domésticos com verba do gabinete parlamentar, disse ter
usado o auxílio-moradia para “comer gente”, empregou funcionários
fantasmas em seus gabinetes e teve seus familiares investigados em casos
de rachadinha, que é a apropriação — indevida e ilegal — de parte dos
salários dos servidores públicos. Nada disso, no entanto, tem a dimensão
dos novos indícios que pesam sobre o capitão. Está claro que o
ex-presidente terá dificuldades para superar seus novos imbróglios
judiciais. Na quinta-feira 17, Walter Delgatti Neto, que ficou conhecido
como o hacker da Lava-Jato, prestou depoimento na CPI do 8 de Janeiro,
que investiga os ataques golpistas às sedes dos Três Poderes. Foi mais
um petardo disparado contra Jair Bolsonaro. O hacker confirmou aos
deputados o inteiro teor de uma reportagem publicada por VEJA em agosto
do ano passado, que revelou que ele havia se reunido com o então
presidente no Palácio da Alvorada e tramado um plano para desacreditar o
processo eleitoral. Bolsonaro também teria proposto que o hacker
assumisse a autoria de um suposto grampo ilegal que comprometeria o
ministro Alexandre de Moraes.
Delgatti: o hacker confirmou reunião com Bolsonaro revelada por VEJA
Diante
da gravidade das denúncias, uma quebra de sigilo bancário, fiscal e
telefônico pode ser o próximo passo do processo — ou mais um capítulo da
investigação conduzida por Moraes, que também presidiu o julgamento que
determinou a inelegibilidade de Bolsonaro. Há exatamente um ano, um dia
depois de o ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump ter sofrido
operação de busca e apreensão de documentos que levaram às quase
quarenta ações criminais a que responde, o ministro do STF traçava
planos para a condução das eleições brasileiras quando foi provocado
sobre o que vislumbrava para o futuro de Bolsonaro, em 2023. “Imagino
como ele deve ter dormido hoje depois do que aconteceu com o Trump”,
respondeu o magistrado, que centraliza todas as ações sensíveis contra o
capitão e seus aliados mais próximos. “Eu falo o seguinte: quem fez
sabe o que fez. E quem me conhece sabe que eu vou achar”, acrescentou. A
confissão de Mauro Cid, certamente, vai facilitar o trabalho do
ministro.
Publicado em VEJA de 18 de agosto de 2023, edição nº 2855











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