Como os alcoólicos, que se veem a falar sozinhos na sua suposta grandeza, também nas redes sociais muitos acabam em quase monólogos digitais, falando para um público circunscrito algoritmicamente. Rodrigo Adão da Fonseca para o Observador:
Nas
últimas semanas publiquei aqui no Observador várias crónicas que
analisam o impacto que as redes sociais podem ter nos seus utilizadores e
nos seus comportamentos. Plataformas que tanto nos entusiasmaram no seu
início pela capacidade de conectar pessoas e ideias a uma escala global
têm, cada vez mais, revelado um lado sombrio. São vários os
utilizadores que estão a ser sugados para uma espiral de interação
compulsiva semelhante a padrões aditivos como os que podemos observar,
v.g., no alcoolismo.
No
mundo das redes sociais, não são poucos os que se sentem “embriagados”
por uma ilusão de atenção e relevância, pelas notificações e pelos
“gostos” recebidos. Todas estas sensações estão a ser para muitos uma
antecâmara para o abismo: semelhante à sensação inicial de euforia e
entusiasmo que o álcool proporciona, os novos alcoólicos procuram as
redes sociais para se sentirem vivos, “importantes” e parte integrante
de algo maior. A dura realidade é que, à semelhança do álcool, essa
sensação é efémera e sempre seguida de uma enorme ressaca – uma ressaca
digital, por assim dizer. A ansiedade de estar sempre “ligado”, o medo
de perder algo importante e a pressão para manter uma imagem perfeita
online (algo que obriga frequentemente à dissimulação) são apenas
algumas das consequências negativas das bebedeiras digitais.
Mas
não só: como os alcoólicos, que frequentemente se veem a falar sozinhos
na sua suposta grandeza, também nas redes sociais, muitos acabam em
quase monólogos digitais, falando para um público que é sempre o mesmo,
circunscrito algoritmicamente e que, na maior parte das vezes, nem
sequer escuta realmente. Num mar de informação e de estímulos é fácil
alguém sentir-se importante após ter postado um comentário aparentemente
perspicaz ou uma imagem inspiradora. A realidade é que a maioria das
interações nas redes sociais são breves, superficiais – e
unidirecionais. Álcool e redes sociais são, para muitos, formas
ilusórias de preencher um vazio ou de procura de algo que falta– uma
vida glamorosa, um emprego de sucesso, relevância política ou
intelectual. São, também, o ponto de partida para vários – outros –
vícios.
Em
tempos privei com uma pessoa que bebia significativamente. Contava a
quem o quisesse ouvir que tinha uma garrafa de whisky no restaurante
onde diariamente almoçava. Sempre que lá ia com a mulher, os empregados
estavam instruídos para o tratarem como um desconhecido, sem nunca se
referirem à famosa “garrafa””. Com o tempo percebi que toda a vida dessa
pessoa estava montada numa farsa. Beber um copo de vinho ou fazer uma
partilha numa rede pode ser agradável, mas deixar que o álcool ou redes
sociais controlem a nossa vida e sejam a âncora da nossa autoestima, é
destrutivo.
*
Por estes dias de férias e descanso, li com gosto Klara e o Sol, de
Kazuo Ishiguro, prémio Nobel da Literatura em 2017. Klara é uma “AA”, ou
“amiga artificial”, uma espécie de ama de companhia turbinada,
oferecida aos adolescentes “elevados” de uma sociedade distópica,
algures no futuro, onde os níveis de sociabilidade estão altamente
reduzidos e só os melhores, geneticamente tratados, têm acesso à
excelência. Klara não é uma “AA” de última gama, é ela própria uma
versão menos atualizada, mas que, fruto de uma enorme curiosidade e
zelo, desenvolve um considerável poder de observação. Klara e o Sol
dá-nos uma visão profunda, não propriamente dos desafios da inteligência
artificial, mas sobretudo da natureza humana, na sua complexidade,
paradoxos e, sobretudo, contradições e fragilidades.
Klara,
apesar de ser “artificial”, é projetada para fornecer companhia
emocional exibindo consistência e lealdade, algo que contrasta com a
inconstância e a incoerência humanas que chegam a ser brutalmente
caprichosas. Com uma escrita lenta e crua, Ishiguro mostra-nos como é a
liberdade e o arbítrio intrinsecamente humanos o que nos abre o caminho
para a ambivalência de ações e sentimentos, algo que não tem paralelo em
máquinas que, por design, dispõem de uma racionalidade que é, contudo,
paradoxalmente comovente, tal o compromisso e candura que Klara coloca
na sua missão serviçal. Klara exibe características para lá do que seria
expectável num androide de base computacional, chegando a experimentar
felicidade e, até, uma certa agonia, ou “pathos”. Toda a sua ação
resulta da boa utilização da sua enorme capacidade cognitiva? Sim, mas
Klara exibe uma enorme sensibilidade – “não te escapa nada, pois não?”,
dizia a gerente da loja onde foi vendida –, revelada na forma como
consegue mediar a resolução de conflitos entre Rick, Josie e a sua mãe,
com uma abordagem que seria difícil a um humano. A forma como Ishiguro
coloca a algorítmica na gestão de sentimentos – ao ponto de nos
apresentar uma Klara com sede de conhecer e que a partir da sua apurada
observação desenvolve atitudes aparentemente altruístas e de procura
mística (como se estivesse a desenvolver vontade própria e um desejo de
transcendência) – é uma das provocações de uma obra que pode ser lida de
vários pontos de vista.
*
No final do dia, importa recordar que não é nas redes sociais nem nas
relações com objetos “inteligentes” que iremos encontrar a verdadeira
conexão, o conhecimento profundo e a realização. Nada disto se encontra
num ecrã ou em robots sofisticados, mas na vida real: nas relações
humanas autênticas, nos trabalhos e nos empregos reais (ainda que nem
sempre “fabulásticos”), nas famílias bem (ou até mal) estruturadas, e no
respeito que obtemos do mundo à nossa volta.
Como
é que preservamos a autenticidade e o sentido de humanidade nas
relações num mundo com cada vez mais tecnologia, é esse o desafio já do
tempo presente em que tantos estão tão excessivamente expostos a
plataformas aditivas ou a substitutos de humanidade que tudo fazem para
nos convocar e seduzir. Desafio que seguramente permanecerá num tempo
futuro que hoje se nos apresenta com contornos de distopia.
Vale mesmo a pena pensarmos nisto.
Postado há 3 weeks ago por Orlando Tambosi
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