MEDIÇÃO DE TERRA

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MEDIÇÃO DE TERRAS

sábado, 26 de agosto de 2023

O SUS é a verdadeira medicina alternativa

BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

Nenhum tratamento no SUS pode ter "eficiência cientificamente comprovada" se só é oferecido depois que a pessoa foi cremada. A crônica de Alexandre Soares Silva para a revista Crusoé:


Um amigo meu teve câncer no ano passado. Fui eu, na verdade, mas gosto de ser discreto nessas coisas para ir criando uma falsa reputação de mistério e elegância. Então vamos dizer que foi o meu amigo.

Como ele não tinha plano de saúde (é um imbecil), e como os gastos de uma operação complicada seguida de várias sessões de quimioterapia eram o equivalente a comprar meia bolsa Birkin ou doze chocolates da marca equatoriana To’ak por mês, ele teve que recorrer ao famoso e tão amado SUS.

Os pacientes de câncer, disseram os médicos para o meu amigo, têm que começar o tratamento quimioterápico no máximo três meses depois do diagnóstico. Bem. Muitas pessoas falaram para o meu amigo que isso não era problema e que o SUS é rápido na área de oncologia. Até tem que ser, eles diziam, porque se o tratamento não começar nesse prazo “o SUS é multado”, diziam. De modo que ao ouvir isso o meu amigo (repito que é um imbecil, embora incrivelmente charmoso, lábios carnudos etc.) acreditou e ficou esperando ser chamado pelo SUS para o início do tratamento.

Três meses se passaram. Três meses com o meu amigo esperando em casa, o câncer não sendo tratado, e os amigos do meu amigo no Instagram postando fotos deles mesmos tomando vacina da Covid com a hashtag #euamooSUS, #vivaoSUS, #SUSseulindo etc.

Ele moveu uma ação contra o governo para que o tratamento fosse feito logo; mas a própria Justiça foi um pouco lenta e no final meu amigo foi para o sistema privado, pagou pelo tratamento e tudo está bem. Mas acho que, quando o meu amigo ouve as pessoas elogiando o SUS, sei lá, ele tem lá as opiniões firmes dele; porque se dependesse do SUS ele estaria agora dentro de um tupperware, sob a forma de cinzas.

Mas falo tudo isso a propósito do livro recém-lançado Que Bobagem! Pseudociências e Outros Absurdos que Não Merecem Ser Levados a Sério (editora Contexto), de Natalia Pasternak e Carlos Orsi.

Esse livro tem causado alguma celeuma, ou, para usar palavras ainda mais velhas, um quiproquó, um brouhaha, na internet e nos jornais, por atacar homeopatia, acupuntura e psicanálise como “pseudociências” que não deveriam ser oferecidas pelo SUS.

Como disse Pasternak, uma divulgadora científica que apareceu numa lista feita pela BBC das 100 mulheres mais importantes do mundo junto com a Fat Amy de Pitch Perfect 1, 2 e 3, para a Folha de S.Paulo: “Pseudociências não são inócuas. Elas são danosas para a sociedade. A gente tomou o cuidado de não ofender pessoas. A gente discute temas, assuntos. Mas pessoas morrem por acreditar em bobagens”.

A paixão nominal de Pasternak e Orsi pela ciência me lembra um grupo que havia no Facebook chamado “I F… Love Science”. Sempre desconfiei de um amor que se declara nesses termos. Ou você se concentra em ciência, porque a ama, ou se concentra no seu amor pela ciência, porque se ama. Um amor ainda mais afastado da ciência é o seu “f…” amor pela ciência. A ciência em algum ponto foi deixada lá pra trás pelo seu deslumbre com a sua autoimagem de pessoa altamente cética e científica e coisa e tal.

Sei lá eu se acupuntura, por exemplo, tem eficiência cientificamente comprovada. Ela tem eficiência anedoticamente comprovada, por mim. Quando eu tinha vinte e dois anos, fiz um tratamento de acupuntura para me livrar da rinite que tinha desde os onze anos, todas as manhãs sem falta. No dia seguinte à primeira sessão, a rinite não veio. E continuou desaparecida durante trinta e poucos anos.

No entanto, ao discutir com um médico cético-de-internet esta semana, que saiu empolgado com o livro da Pasternak rindo de medicina alternativa, ele explicou o sumiço da minha rinite no dia seguinte à primeira sessão nestes termos: “Rinite faz parte da marcha atópica, a história natural da doença (tal qual a asma) é melhorar sozinha!”.

Ok, céticos. Continuo achando mais racional achar que a acupuntura funcionou no meu caso, no lugar de insistir em acreditar em explicações que requerem coincidências claramente implausíveis.

Mas meu ponto nem é esse. Meu ponto é o SUS. Meu ponto é que nenhum tratamento oferecido pelo SUS pode ter “eficiência cientificamente comprovada” se só é oferecido depois que a pessoa está cremada e dentro de um potinho.

Um tratamento completamente não científico aplicado numa senhorinha crédula é ainda levemente mais científico que um tratamento científico aplicado num cadáver.

É obviamente racional preferir tratar a sua emergência cardíaca só com psicanálise enquanto você ainda está vivo (“e como essa dor faz você se sentir?”), a tratá-la com uma operação oito meses depois que você se mudou para um jazigo.

Acreditem vocês no SUS; eu sóu cético e prefiro acreditar em homeopatia, quando aplicada num paciente que ainda respira.
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