No final de contas, a direita moderada não é direita moderada. Dizer direita moderada é dizer direita moderada – pela esquerda. Na verdade, é direita condicionada. Miguel Granja para o Observador:
Ao
contrário do que, à direita, é costume proclamar-se não sem a
inconfundível vaidade que sempre acompanha a modéstia de contrafacção, a
distinção fundamental entre a esquerda e a direita, presentes ou
pretéritas, não reside no facto de a esquerda se situar num plano de
superioridade moral que – de acordo com a fórmula canónica de que os
fins mais dignos justificam os meios mais sinistros – consente e
legitima os abusos mais flagrantes, vício constitutivo a que a direita,
nos alienados solilóquios que, diante do espelho, devota à açucarada
descrição de si mesma, está ou estaria orgulhosamente imune.
É
inegável que a esquerda padece da superioridade moral acima
diagnosticada. Do carinho por purgas russas, valas ucranianas e fomes
chinesas à sabujice devotada a tiranos venezuelanos, assassinos bascos,
foragidos catalães e descondenados brasileiros; dos amanhãs cujas
canções foram cantadas para uma terra sem amos mas escutadas por reféns
na Lubianka e escravos no Gulag aos democratas sazonais que chamam
“cerca sanitária” à sua repulsa pelo pluralismo democrático e “chão
democrático comum” à degradação das instituições democráticas em nome da
protecção das instituições democráticas, a esquerda nunca escondeu, ou
sequer lamentou, totalmente que sempre viu o complexo de reservas e
ressalvas, minúcias e crivos, partições e travancas, freios e
contrapesos próprios das democracias liberais como, na verdade, um
exército hostil a abater: um derradeiro estorvo institucional e uma
longa trégua histórica, ambos a serem pacientemente instrumentalizados e
finalmente removidos assim que a oportunidade, institucional e
histórica, se proporcione.
Confessando
isto mesmo, Trotsky, que nunca teve qualquer vergonha em justificar
misérias presentes em nome de bonanças futuras e em inferir que
renunciar ao terrorismo é renunciar à ditadura revolucionária e,
portanto, ao próprio socialismo, advogou, por exemplo em Terrorismo e
Comunismo (1920), a entrada instrumental dos comunistas nos parlamentos
“burgueses”, de modo, justamente, a instrumentalizá-los e sabotá-los até
ao esvaziamento: “O nosso partido nunca se recusou a conduzir o
proletariado à ditadura passando pela democracia; ele deu-se
perfeitamente conta das vantagens abertas à propaganda e à acção
política por uma tal transição “legalizada” para a nova ordem”. E não
adianta protestar, a pretexto de cautelas contra alegações abusivamente
redutoras, que a esquerda não é apenas Trotsky e que os anos 20 do
século XX não são os anos 20 do século XXI. Todo o esquerdismo é uma
forma, mais ou menos confessada, de trotskysmo: a única questão é
determinar, em cada momento histórico, quão próxima se encontra a
picareta e em qual das duas pontas da picareta se encontra Trostky.
A
picareta enterrada na cabeça de um traidor não é, pois, uma
adulteração, um desvio, um acidente da superioridade moral da esquerda: é
a expressão lógica da sua essência mesma. Tudo isso é, pois, verdade. O
que não é verdade é que a direita esteja, como julga estar, imune aos
feitiços das sirenas da superioridade moral. Os típicos refrões “nós não
somos como eles”, “nós não descemos ao nível deles”, “o que nos
distingue deles é que nós não estamos dispostos a tudo pelo poder”,
“para nós, ao contrário deles, não vale tudo em política”, parecem, de
facto, entoar o mantra da renúncia, de princípio, a toda e qualquer
forma de superioridade moral por parte da direita (e quanto mais
moderada se afirmar, mais renunciante, e mântrica, a afirmação). E é
aqui, justamente, que reside o equívoco.
A
direita moderada não é, como pretende, imune ou avessa à superioridade
moral, ela tem é uma concepção distinta, e mais cínica, da superioridade
moral. A própria moderação como adjectivo acoplado à direita (a
“direita moderada”), na medida em que pretende classificar a qualidade
específica dessa direita e, assim, modificar-lhe o sentido por via da
sua elevação à estatura teológica de virtude cardinal, é, na verdade, a
mais categórica afirmação de superioridade moral: é a superioridade
moral que se afirma na própria negação de superioridade: é a
superioridade que – e qua – se nega como superior. A negação moralista
de superioridade moral é talvez a forma mais velhaca, e consumada, de
afirmação de superioridade moral: afirmar que toda a superioridade moral
é negativa é ainda um modo de afirmar uma determinada forma de
superioridade moral: nós somos moralmente superiores justamente porque
não nos consideramos, como os outros, moralmente superiores. Nós não
somos como os que se afirmam moralmente superiores – e reside aí mesmo
toda a nossa superioridade moral. Nós, que renunciamos à superioridade
moral, somos moralmente superiores àqueles que se afirmam moralmente
superiores. Somos, enfim, moralmente superiores a toda a superioridade
moral.
Não
se trata, pois, de uma distinção entre uma esquerda que afirmaria, a
galope das suas pulsões utópicas, a sua superioridade moral e uma
direita que, precavida pelo seu pessimismo antropológico, se afirmaria
pela sua negação. Trata-se, isso sim, de duas concepções de
superioridade moral que, embora distintas, favorecem a deterioração das
regras democráticas e a compressão do pluralismo que essas regras visam
promover e salvaguardar. Ambos os tipos de superioridade moral resultam,
pois, na degradação das regras democráticas: a de esquerda, por
manipulação; a de direita, por inaplicabilidade; a de esquerda,
manipulando as regras democráticas; a de direita, tornando-as
inoperantes. A superioridade moral da esquerda, por invasão, torna as
regras democráticas inválidas, a superioridade moral da direita, por
evasão, torna-as vazias. Se a esquerda não tem regras, a direita tem
regras inexistentes. A superioridade moral de esquerda convive bem com
demónios, a superioridade moral de direita só convive com anjos. As
democracias modernas, feitas por e para humanos, oscilam cada vez mais
nesta falha tectónica que se desloca entre a democracia sem regras
democráticas da esquerda e as regras democráticas sem democracia da
direita.
São,
pois, duas concepções de superioridade moral em oposição, e não uma
concepção de superioridade moral (de esquerda) à qual se oporia uma
concepção isenta de superioridade moral (de direita). A superioridade
moral de esquerda assenta numa concepção optimista segundo a qual a
esquerda, apesar de toda a miséria imposta e de todo o sangue vertido,
não tem passado nem antepassados: a esquerda é sempre e toda futuro e
amanhã, concebida sem pecado. Todas as manhãs, lá nasce ela de novo,
inteira e virgem, milagre auto e partenogenético, rasgando, ao soco e à
patada, a sua própria bolsa amniótica. A superioridade moral de direita,
inversamente, assenta numa concepção pessimista que atribui à direita
apenas passado e ascendência: todo o futuro é, na hipótese benigna,
impossível de concretizar ou, na hipótese maligna, de concretização
monstruosa, pelo que, para seu próprio bem, a descendência deve
limitar-se a ser a respeitadora e replicadora, genética e
civilizacional, da ascendência; as gerações vivas e por vir, proscritas
do direito de sonhar e criar, devem ser apenas os dóceis donatários dos
sonhos e criações das gerações mortas.
A
esquerda vê nos vivos apenas o refugo metálico do qual será extraído,
malhando furiosamente a bigorna da História, o novo e final Adão. A
direita vê nos vivos as criaturas perpetuamente gratas e penhoradas dos
enterrados, dos cremados e dos embalsamados. A esquerda pertence assim
aos adventos, aos partos, às auroras – numa palavra, à luz –, enquanto a
direita pertence aos pretéritos, aos sepulcros, aos ocasos – ou seja, à
sombra. Enquanto a esquerda lança asas e amplexos nos céus limpos e
longínquos do olho oracular do porvir que tudo permite, a direita
enterra raízes e vénias nos solos atolados e imemoriais da noite cega do
tempo que tudo interdita. De um lado, o homem por parir. Do outro, o
homem defunto. Entre a fecundação de um e a decomposição do outro, o
homem vivo e vivente, esquecido pelas odes que celebram a vinda do
primeiro e os requiems que evocam a partida do segundo.
Destas
duas concepções de superioridade moral, uma luminosa que aponta para
cima e para a frente, e outra sombria que aponta para baixo e para trás,
decorrem também diferentes implicações no campo da disputa política. As
interpretações dos resultados das recentes eleições gerais espanholas
(23 de Julho de 2023), em que a esquerda vê na sua derrota uma vitória
necessária enquanto a direita vê na sua vitória uma derrota merecida,
fornecem a aplicação empírica desta distinção entre as duas
superioridades morais e, em particular, a demonstração da concepção de
superioridade moral típica da direita moderada (sobretudo, para o que
aqui nos interessa, portuguesa) para quem a vitória-derrota da direita
espanhola é tanto mais fácil de explicar quanto mais contraditória for a
explicação: até às eleições, a direita moderada alertava para um
eleitorado subitamente seduzido pela extrema-direita – e daí a grande
fragilidade da democracia; após os resultados, a mesma direita moderada
sempre soube que o eleitorado jamais se deixaria seduzir pela
extrema-direita – e daí a grande lição democrática. A direita espanhola,
perdendo a eleição que venceu, foi assim merecidamente penalizada por
se ter aproximado demasiadamente da extrema-direita da qual não fez
outra coisa senão afastar-se.
Logo
que colocada diante da necessidade de escolher, no mundo real das
aritméticas e dos compromissos, das barganhas e dos escambos (“There are
no solutions; there are only trade-offs”, como insiste Thomas Sowell)
que manifestam a essência mesma da antropologia pessimista e da política
não utópica que, nas televisões e nos jornais, jura defender e
representar, a direita moderada não teve dúvidas em proclamar a
“nuestros hermanos”, não sem a devida e telegénica encenação de gravitas
e gravatas, a sua firme preferência – em nome da moderação enquanto
única forma de proteger a democracia das derivas extremistas que,
asseguram, a ameaçam hoje mais que nunca – por uma frankensteiniana
fraternidade de incompetentes, imprestáveis, fanáticos e, sem espanto,
assassinos condenados que representam justamente a visão puritana e
utópica que constitui a própria essência de tudo aquilo que, nas mesmas
televisões e nos mesmos jornais, a direita moderada jura reprovar e
combater.
No
fundo, aquilo a que se convencionou chamar de direita moderada não é
hoje outra coisa senão o ponto do espectro político onde escolhem
posicionar-se os adeptos da escolha fácil. Da escolha que dispensa
escolher. Da escolha que, impondo-se por si própria, se escolhe a si
mesma. Da não escolha, portanto. Julga que a verdadeira escolha é uma só
e é sempre clara e fácil como entre Hitler e Churchill. De Churchill,
portanto, não aprendeu a decisiva lição da escolha difícil entre Hitler e
Estaline, apenas o glamour do charuto icónico, do aforismo prodigioso e
dos dedos em v. É com o Churchill póstumo, e não com o vivo, que ela se
identifica. É no Churchill vitorioso, e não no combatente (sem o qual
não haveria o vitorioso), que ela se reconhece. É no Churchill
aristocrata, e não no democrata, que ela se inspira. E é por isso que os
seus princípios, enquanto sistema de mapeamento e orientação no
atribulado mundo político, lhe servem apenas para situações em que os
desafios a enfrentar e a superar são breves, modestos e, como tal, não
comprometem o seu compromisso de não ter de escolher. Dir-se-ia que os
princípios da direita moderada são óptimos instrumentos de navegação
para mares calmos, onde eles são desnecessários, e péssimos para mares
revoltos, onde eles são indispensáveis. A direita moderada é um farol
inútil: só se avista quando o barco está em terra e a sua luz brilha e
gira apenas de dia. A direita moderada é ideal para passeios de barco a
remos em soalheiros lagos de Domingo. Não é com tais navegadores que se
vencem Bojadores e Adamastores.
No
final de contas, a direita moderada não é direita moderada. Dizer
direita moderada é dizer direita moderada – pela esquerda. Na verdade, é
direita condicionada. Como se viu em Espanha e como se vê em Portugal
(e em Portugal sobre Espanha), o que a esquerda tenta realmente
condicionar não é a “extrema-direita”, é a direita moderada. A
“extrema-direita” é apenas o espantalho, a miragem, o engodo de que a
esquerda se serve para condicionar a direita moderada. A própria direita
moderada – ou a moderação enquanto virtude de direita – é uma venenosa
invenção de esquerda: a moderação é a armadilha de coelho nos laços e
paus e guizos da qual a direita se enrodilha e se encarquilha – ou seja,
se condiciona – a si mesma. Em termos do jogo de soma-zero que é a
política, trata-se de um ardil genialmente engenhoso: que mais pode um
Ulisses “dos mil estratagemas” pedir aos deuses homéricos do que todo um
campo ideológico adversário dedicado a tricotar alegremente a sua
própria armadilha como se da mortalha de Laertes se tratasse, reclamando
para si mesmo o espaço acanhado do oikos (o “lar”), de onde não sai,
entrançada no seu infinito tece e destece, a paciente – portanto,
moderada – Penélope, deixando assim a Ulisses, e seus mil estratagemas, o
espaço aberto da peleja, da façanha, da palavra – ou seja, da pólis?
Chegará
talvez o dia em que, entretida e enredada no seu tricot inútil, a
direita moderada perceberá finalmente que, na realidade, não há nenhuma
cerca sanitária em volta da “extrema-direita”: a “extrema-direita” é a
cerca sanitária. E que, dentro dela, quem se encontra devidamente
vigiada, cercada e isolada, e sem o ter percebido ainda, é ela mesma, a
direita moderada, fechada à chave pelo lado de dentro. Fanática de uma
moderação que a mantém refém da esquerda (a velha da comunidade a quem
compete a devida e pública fiscalização do sangue vaginal no lençol da
virgindade democrática), a direita moderada chama princípios à sua
própria rendição e temperança à sua própria captura, confundindo, na
verdade, moderação com sequestro e dignidade com inutilidade. Fanática
da moderação, meio para um fim que confunde com um fim em si mesmo,
merece ser lembrada, de cada vez que se envaidece da sua humildade, da
deliciosa observação de Golda Meir, que costumava recomendar aos
vaidosos mascarados de humildes que a rodeavam: “Don’t be so humble –
you’re not that great”.
Postado há 3 weeks ago por Orlando Tambosi
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