BLOG ORLANDO TAMBOSI
É necessário impedir que um grupo de pessoas – a quem, é certo, muito foi prometido – tome de assalto as universidades, congelando-as por décadas e impedindo a entrada de sangue novo e melhor. Jorge Fernandes para o Observador:
Uma
característica marcante do sistema científico nacional é a existência
de um grande número de investigadores precários. A definição do que é um
precário depende, em grande medida, de quem participa no debate. Para
alguns, que podemos chamar, à falta de melhor, maximalistas, deveriam
existir apenas contratos definitivos. Para outros, como eu, que podemos
chamar de minimalistas, ter um contrato a prazo não tem qualquer
problema, desde que haja um caminho bem definido sobre quais as provas a
prestar e as avaliações a superar para conseguir um contrato
definitivo.
Apesar
de ser uma característica marcante de Portugal, a precaridade na
ciência não é um exclusivo do nosso país, ou de países onde
historicamente se investe pouco em ciência como Espanha ou Itália. Pelo
contrário. Em países ricos e que devotam muitos recursos à ciência, como
a Alemanha, o caminho para um lugar definitivo é árduo, dando origem,
aliás, a um movimento chamado #IchBinHanna, através do qual os investigadores partilham histórias pessoais do caminho das pedras até ao tenure.
Vem
este introito a propósito dos movimentos tectónicos que estão a ocorrer
na ciência em Portugal e que, a breve trecho, creio, ganharão cada vez
maior visibilidade mediática à medida que o problema se agudizar. O
problema de fundo permanece: o investimento em ciência está congelado
desde os governos de José Sócrates, em 2009, o que, na prática,
significa que, com a inflação, houve já uma queda real do dinheiro
atribuído à ciência no orçamento de estado. Se, apesar de tudo, durante
os anos de chumbo da troika, poder-se-ia arranjar uma justificação
social para manter o investimento em ciência congelado, especialmente
num contexto em que estavam, literalmente, a ser cortados os meios
básicos de subsistência de muitos Portugueses, é espantoso como, a
partir de 2015, não houve qualquer mudança. O virar de página, as vacas
voadoras e o fim da austeridade não chegaram à ciência. Para que deveria
o governo incomodar-se em gastar os parcos recursos a satisfazer uma
clientela que, no fundamental, está já, em muitos casos, literalmente no
bolso do Partido Socialista?
O
congelamento do financiamento à ciência poderia, apesar de tudo, ser o
mal menor do governo de António Costa. Na verdade, o principal erro que o
governo cometeu na ciência foi o chamado PREVPAP. Para os leigos,
explico muito rapidamente. Ao contrário das boas práticas internacionais
sobre recrutamento universitário, o programa do PREVPAP permitiu a um
número alargado de investigadores obter um lugar permanente nas
universidades através da secretaria. Em vez de se submeterem a um
concurso de recrutamento internacional aberto, com todos os problemas
que estes, apesar de tudo, têm, estes investigadores, pelo simples facto
de ocuparem lugares precários há um número suficiente de anos, ganharam
o acesso a lugares permanentes. Este processo teve duas perversidades.
Em primeiro lugar, ignorou completamente a produção científica dos
investigadores integrados no quadro, na medida em que o tempo passado em
contratos precários era o único critério a ter em conta. Em segundo
lugar, criou enorme injustiças puramente arbitrárias baseadas no
calendário. A título de ilustração, diga-se que foi estabelecida uma
linha de corte na qual os investigadores com contrato precário até 31 de
Dezembro eram abrangidos pelo PREVPAP e poderiam aceder a lugares
definitivos. Ao mesmo tempo, investigadores que tiveram a desdita de
assinar um contrato no mês imediatamente a seguir já não tiveram a
possibilidade de aceder a mecanismos de integração em lugares
definitivos. (Para clareza: nunca estive envolvido em quaisquer
processos do PREVPAP).
A
questão do que fazer com os precários coloca-se agora novamente em
força. Em 2017, o governo de Costa inventou um expediente através do
qual prolongava artificialmente os contratos de centenas de
investigadores, muitos dos quais eram francamente medíocres pelos
padrões internacionais. Agora, em 2023, o problema voltou para ensombrar
o governo. Esses contratos estão a acabar. Cerca de 2000 investigadores
serão, simplesmente, despedidos ao longo dos próximos anos, à medida
que os seus contratos terminam. As universidades estão em polvorosa,
embora o descontentamento não tenha obtido grande eco público, ao
contrário do que aconteceria se estivéssemos perante um governo de
direita, pejado de neoliberais que querem fazer mal aos intelectuais.
O
objectivo destes investigadores é simples. À semelhança do PREVAP,
pretendem ser automaticamente, e sem concurso, integrados nos quadros
das universidades. As consequências seriam trágicas. Em primeiro lugar,
em vez de assistirmos à renovação dos quadros universitários, a
integração deste contingente mataria o mercado de contratações na
universidade por duas décadas. A integração destes precários
impossibilitaria – até por razões financeiras — a contratação de novos
investigadores ao longo dos próximos anos por um motivo evidente: não
haveria dinheiro. Todos os recursos existentes seriam absorvidos pelo
pagamento dos salários dos precários. Em segundo lugar, muitos destes
precários têm percursos académicos francamente medíocres, muitas vezes à
sombra de redes clientelares as quais, eternamente, prometem frutos que
tardam em chegar. Dito de outra forma, os precários que querem entrar
pela secretaria simplesmente não são os melhores investigadores do nosso
sistema científico.
Felizmente,
os reitores estão concertados para não deixarem que isto aconteça.
Apesar de tudo, é necessário impedir que um grupo de pessoas – a quem, é
certo, muito foi prometido — tome de assalto as universidades,
congelando-as por décadas e impedindo a entrada de sangue novo e melhor.
É evidente que resta a pergunta: o que fazer com os precários? A
solução é simples e exige vontade política. Se está realmente preocupado
com a ciência, o governo de António Costa tem de aumentar o
financiamento – que, recordo, está congelado desde 2009 – e dotar as
universidades dos recursos financeiros para abrirem concursos
internacionais para o recrutamento de pessoal. Os precários
apresentar-se-iam a estes concursos, como quaisquer outros candidatos, e
um júri, de preferência internacional para garantir o mínimo de lisura,
escolheria os melhores. Quem ganhasse um concurso aberto e limpo, teria
oportunidade de obter um contrato definitivo, quem não ganhasse teria
de concorrer a outras coisas ou fazer-se à vida. Um investimento a sério
na universidade, escolhendo os melhores e os mais capazes seria o único
caminho sério. Se acham que isto é irrelevante e o sistema científico
está no bom caminho, atentem na tabela na qual reproduzo os resultados
dos concursos do European Research Council de 2022 (os últimos números
disponíveis), o programa mais prestigiado de financiamento científico a
nível Europeu. Na tabela, recolho o número de projectos que as
universidades Portuguesas conseguiram obter, bem como outros países
europeus de dimensão semelhante bem como Espanha, nos três níveis de
carreira (Starting, Consolidator e Advanced). Portugal encontra-se numa
posição francamente confrangedora, especialmente nas ciências sociais,
que mostra à saciedade que há um debate sério que tem de ser tido. Assim
haja vontade política.
Postado há 1 week ago por Orlando Tambosi
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