BLOG ORLANDO TAMBOSI
"... essa liberdade acaba onde começam minhas sensibilidades". Fabio Barbieri para o Instituto Mises:
Nota do Editor
Ontem,
na calada da noite, o Projeto de Lei 2630/, apelidado de PL das Fake
News ou PL da Censura, teve votado e aprovado seu caráter de urgência, o
que significa que o projeto irá direto para a votação no plenário da
Câmara, sem passar por comissões. A votação em definitivo na Câmara
acontecerá na terça-feira (02/05).
Embora
aparente se tratar de um projeto de combate às Fake News, a Lei
institui uma agência reguladora aos moldes do Ministério da Verdade e
cria conceitos vagos sobre conteúdo indesejado, permitindo a exclusão
arbitrária de publicações que julguem se encaixar nesses conceitos.
É
no espírito da defesa da liberdade de expressão que republicamos o
artigo do professor Fabio Barbieri, originalmente publicado em 25 de
agosto de 2022. De lá pra cá, infelizmente, as coisas só pioraram.
***
Textos
que tratem da liberdade de opinião parecem dispensáveis diante da
crença de que esse valor estaria consolidado no Ocidente.
Em Sobre a Liberdade,
John Stuart Mill, inicia o capítulo intitulado "Da Liberdade de
Pensamento e Discussão" afirmando que é de se esperar que não seria mais
necessário discorrer sobre os males associados ao controle
governamental de idéias. Também na Inglaterra, na mesma época, Herbert
Spencer declara em O Direito ao Livre Discurso que seria supérfluo repetir o Areopagítica, o panfleto que John Milton escreveu em 1644 para defender o fim do sistema de licenças para publicações.
A
mesma crença é comum em nossa própria época. Afinal, a adesão à
liberdade de expressão ainda exige de seus oponentes, como um tributo, a
afirmação de que eles seriam "favoráveis à liberdade de opinião" antes
do fatídico "mas", que invariavelmente se segue e esvazia tal
declaração.
Ademais,
o anseio pelo controle do pensamento sempre existiu, em especial entre
alguns intelectuais, movimentos políticos e grupos religiosos. Porém,
quando a defesa da censura extrapola esses círculos e contamina o resto
da sociedade, devemos nos preocupar seriamente com a sinceridade do
compromisso com esse valor.
O cenário atual
Na
academia, no jornalismo, nas grandes empresas e nas redes sociais
tornou-se natural censurar e pedir a demissão de pessoas que ousam
contrariar determinadas opiniões ou mesmo violar o código de termos
permitidos por aqueles que buscam controlar a linguagem e
instrumentalizar o ensino.
Quem
questiona algum dogma presente é visto como ignorante ou imoral, um
criminoso que espalha falsidade e ódio entre aqueles tidos como menos
capazes de pensar por si próprios.
Esse
paternalismo, por sua vez, suscita o clamor por controle estatal do
fluxo de informação, sem que sejam expressos temores significativos a
respeito da vontade e da capacidade que autoridades responsáveis pelo
controle teriam para separar a verdade da falsidade. Ao mesmo tempo, o
debate racional é novamente substituído pela mais tosca das falácias,
que dispensa a análise do conteúdo das idéias em favor do ataque aos
seus autores, bastando que esses sejam "denunciados" como membros de
alguma classe imaginária de inimigos.
Além
da censura, também a defesa da agressão física se torna cada vez mais
comum nesse ambiente não acostumado com a multiplicidade de pontos de
vista. Pessoas com mentalidade autoritária rotulam de "fascistas" e
"nazistas" quaisquer opiniões diferentes das próprias; e os oponentes
intelectuais, assim desumanizados, são vistos como ameaças à
civilização, devendo ser combatidos pela força física.
Recorrendo a Mill
Cada
um desses fenômenos assustadoramente retoma práticas comuns em regimes
autoritários, o que faz com que o clima político e intelectual moderno
lembre as ficções distópicas de autores como Zamyatin (Nós) e Orwell
(1984) e os modernos censores "politicamente corretos" pareçam
tragicomicamente com inquisidores moralistas de tempos mais remotos.
Diante
do presente grau de deterioração do compromisso com a liberdade, são
cada vez mais necessárias re-exposições dos fundamentos da liberdade de
expressão. Neste artigo, reproduziremos, com comentários relativos ao
cenário atual, os argumentos de J. S. Mill contidos no segundo capítulo
de Sobre a Liberdade. Essa escolha foi feita tendo em vista o caráter
sistemático da argumentação desse autor e ao fato de que ele identifica
com sucesso o cerne da questão.
Iniciemos destacando algumas conclusões do texto de Mill, especialmente relevantes para o nosso tempo:
i)
sendo o conhecimento falível, o aprendizado ocorre de forma
descentralizada, por tentativas e erros, sendo a liberdade condição
necessária para tal;
ii)
a censura tem sempre como origem a presunção de superioridade
intelectual ou moral e é historicamente demandada não por vilões, mas
por pessoas que se consideram esclarecidas;
iii) mesmo se fosse possível estabelecer com certeza que uma opinião é falsa, isso não justifica sua supressão;
iv)
o duplo padrão aplicado ao julgamento de opiniões majoritárias e
minoritárias induz a autocensura, que constitui um dos piores inibidores
do progresso.
Mill
contempla em sua argumentação três possibilidades: uma opinião que se
pretende calar pode ser verdadeira, conter elementos de verdade ou ainda
ser completamente falsa. No primeiro caso, a censura evidentemente
rouba da humanidade os benefícios que seriam gerados pela verdade
suprimida. Menos óbvio é a capacidade de identificar a verdade de forma
inequívoca. Essa é a ocasião para identificarmos os elementos
responsáveis pelo progresso do conhecimento no texto de Mill.
O
autor parte de bases falibilistas, isto é, da idéia de que proposições
podem ser verdadeiras ou falsas, mas não temos condições de estabelecer
sua veracidade de forma inequívoca. Em especial no que diz respeito aos
assuntos polêmicos, nas palavras de Mill, "nunca podemos ter certeza de
que seja falsa a opinião a qual tentamos sufocar".
Encontramos
no texto desse autor os dois elementos centrais de uma teoria
falibilista sobre o crescimento do conhecimento: pluralismo e crítica.
Quando
o conhecimento for limitado diante da complexidade do mundo, o
aprendizado ocorre se houver simultaneamente liberdade para expor
soluções diferentes para os problemas e disposição a examinar
criticamente essas soluções.
O papel da crítica
Considere
em primeiro lugar o papel da crítica. Para Mill, "toda a força e todo o
valor do julgamento humano dependem … de uma única propriedade – de que
este pode ser corrigido quando errado". As duas fontes de identificação
de erro apontadas pelo autor são a discussão racional e a experiência
empírica, que por sua vez dependem da disposição a escutar objeções que
possam ser feitas a qualquer explanação que gostamos.
Como
a disposição a escutar hoje é mais ameaçada pela falta de discussão,
destacaremos esse primeiro fator. É cada vez mais comum encontrarmos
pessoas que nutrem a ilusão de que suas próprias opiniões seriam
embasadas em evidências empíricas enquanto as dos demais derivariam de
mera ideologia. Para aqueles que enxergam um potencial terraplanista em
toda pessoa com opiniões diferentes, a leitura do capítulo de Mill é
bastante útil.
Mill
observa que, para que fatos e raciocínios realizem seu trabalho de
correção de erros, é necessário antes que os mesmos sejam apresentados.
Nos termos do modelo de aprendizado aludido acima, não faz sentido falar
em correção de erros sem que se conheçam os candidatos à solução dos
problemas, que fornecem o material para que dados sejam interpretados.
Conforme
cresce a complexidade do assunto estudado, além disso, aumenta o número
de explanações antagônicas compatíveis com o mesmo conjunto de dados e
em particular nos assuntos relativos à política e sociedade, parte
considerável do trabalho intelectual envolve a crítica de teorias
rivais.
Furtar-se
da tarefa de se familiarizar com as diferentes explicações seria
portanto postura incompatível com o progresso do conhecimento. Nas
palavras de Mill
O homem que conhece apenas o seu lado da questão não sabe muita coisa. Suas razões podem ser boas, e é possível que ninguém seja capaz de refutá-las. Mas se for igualmente incapaz de refutar as razões do lado contrário, se não estiver em condições de saber o que são, não possui fundamentos para preferir uma opinião à outra.
Para
que se leve a sério a tarefa proposta, evitando distorções fáceis, não
bastaria ainda conhecer uma teoria rival a partir das descrições
apresentadas por adversários, sendo necessária a leitura dos argumentos
formulados por seus melhores defensores. Com efeito, nas discussões
modernas na internet, dificilmente os debatedores passariam no teste que
os convidaria a expor um esboço das teorias que rejeitam com tanta
confiança.
Mesmo
entre pesquisadores profissionais, a pretensão do conhecimento gerada
por crenças metodológicas não-falibilistas resulta em dogmatismo, como
mostrou Hayek em sua Contrarrevolução da Ciência.
Para Mill, do mesmo modo, "a tendência fatal dos homens a desistir de
pensar sobre algo quando não mais é duvidoso causa metade de seus
erros."
Em
resumo, para Mill o conhecimento falível é aperfeiçoado pela crítica,
sendo o progresso um fenômeno que ocorre em meio à dúvida, diversidade,
controvérsia e estudo sério de posições contrastantes, e não pela
uniformidade de pontos de vista e estabelecimento de autoridades.
Essa
conclusão é expressa por meio de uma objeção retórica: "Mas como!
(poderão perguntar) A ausência de unanimidade é condição indispensável
do verdadeiro conhecimento?" Sim. Do mesmo modo que os economistas
austríacos apontam para os equívocos gerados pelas análises de equilíbrio que proíbem o processo de mercado,
barrando as atividades competitivas necessárias para que o conhecimento
seja gerado, Mill argumenta que não existe aprendizado sem diversidade.
Essas
idéias fornecem a base do ataque do filósofo inglês à censura. Sua
argumentação não trata do mais óbvio direito à livre expressão dos
censurados, mas das consequências não-premeditadas da censura.
Concentra-se assim nos malefícios para a sociedade induzidos pelo
bloqueio do processo de aprendizado por tentativas e erros, independente
de uma opinião vetada ser verdadeira ou falsa.
O objetivo do controle das ideias
Devido
ao valor da liberdade de pensamento como fonte de progresso
intelectual, são condenadas tentativas de controlar a opinião, sobretudo
no caso de censura pautada pela opinião pública. Nas famosas palavras
de Mill:
Se todos os homens menos um partilhassem a mesma opinião, e apenas uma única pessoa fosse de opinião contrária, a humanidade não teria mais legitimidade em silenciar esta única pessoa do que ela, se poder tivesse, em silenciar a humanidade.
Depois
de rejeitar a censura devido ao bloqueio do processo de aprendizado,
Mill passa a investigar as razões que levam as pessoas a defenderem o
controle das idéias. Para que tenhamos consciência dos perigos
envolvidos no moderno flerte com a censura, é importante reconhecer que
ela não é imposta por pessoas malévolas, mas por indivíduos sinceramente
preocupados com a verdade e justiça.
Mill
associa a censura à presunção de infalibilidade. Essa relação não
recebe a consideração devida porque os sentimentos de superioridade
moral e intelectual são sutis — se questionada explicitamente, nenhuma
pessoa se declararia infalível.
Para Mill, no entanto, isso não significa que as pessoas levem em conta em seus julgamentos a precariedade de suas convicções:
Infelizmente para o bom senso dos homens, ocorre que sua falibilidade está longe de exercer sobre seu juízo prático a influência que sempre se lhe permite na teoria, pois embora cada um se saiba perfeitamente falível poucos julgam necessário tomar precauções contra sua própria falibilidade, ou admitir a suposição de que uma opinião qualquer, da qual se sentem muito seguros, possa ser um dos exemplos de erro a que reconheçam estar sujeitos.
De
fato, não é fácil reconhecermos a nossa própria ignorância: aqueles que
pontificam cheios de certeza sobre assuntos sobre os quais pouco leram
gostam muito de citar o Efeito Dunning-Kruger, que justamente constata que aqueles que menos estudaram algo demostram maior confiança em suas opiniões.
O
texto de Mill explora diversas situações nas quais se manifesta a
presunção de infalibilidade. Para ele, as pessoas tendem a tomar como
certas as convicções dos grupos aos quais pertencem, mesmo sabendo que
grupos diferentes, em épocas diferentes, nutriam crenças hoje
descartadas, fato que deveria induzir humildade intelectual.
Um
exemplo curioso é a formação de bolhas de indivíduos com opiniões
homogêneas em redes sociais. Boa parte das pessoas preocupadas com isso
ironicamente propõem restrições aos modos de associação que na prática
equivalem à presunção de que elas próprias pairariam acima do fenômeno,
como uma elite de clérigos autorizados a ler textos heréticos.
Não
ocorre a elas que as políticas de controle propostas privilegiem
crenças derivadas da bolha do próprio censor e possam resultar na
redução da diversidade de opiniões que pretendem combater.
O
pressuposto de infalibilidade também se manifesta, para Mill, entre
aqueles que afirmam que a liberdade de opinião não pode ser levada ao
extremo. Aqueles que recomendam livre discussão apenas para casos
duvidosos supõem infalibilidade ao arrogar para si o direito de
determinar o que é conhecimento certo e o que é conjectural: "Dizer que
uma proposição é certa, enquanto há alguém que lhe negará a certeza se
lhe permitirem, mas a quem não permitem fazê-lo, significa assumir a nós
mesmos e aos que concordam conosco como juízes da certeza e juízes que
não ouvem o outro lado."
Retoricamente,
a defesa do controle de informações transita sutilmente de proposições
óbvias, para as quais esse controle pode parecer razoável, para questões
mais complexas. Pergunta-se com frequência ao defensor do falibilismo
se ele negaria afirmações como "um mais um é igual a dois" ou "é errado o
espancamento de bebês". Mas, na prática, raramente observamos censores
preocupados com a difusão de aritméticas exóticas em vez de opiniões
políticas que os desagradem.
Lênin, que antes da revolução se dizia defensor da liberdade de imprensa, logo após a mesma determina, em decreto de 27 de outubro de 1917,
que órgãos da imprensa poderiam ser fechados "se semearem confusão
através de óbvia distorção difamatória dos fatos", ou, traduzindo para a
linguagem moderna, "qualquer pessoa pode ser calada se for pega
semeando confusão por meio de fake news".
Isso
não revela apenas oportunismo e inconsistência por parte do ditador:
dada sua fé ilimitada no referencial teórico que emprega, qualquer coisa
que contrarie suas crenças será sinceramente vista como mentira
inequívoca, cuja divulgação consiste em crime.
Do
mesmo modo, partindo de exemplos concretos de notícias falsas, o
defensor do combate às fake news por meio de censura invariavelmente
classifica material contendo opiniões polêmicas de que não gosta como se
fosse relativo a fatos verificáveis, ilustrando o deslocamento do
argumento de proposições incontroversas para questões debatidas.
Enquanto
a perspectiva falibilista celebra a diversidade de opiniões como fonte
de aprendizado e confia na crítica como método falível de combate à
falsidade, a defesa do controle deposita sua fé na infalibilidade do
censor que guia seu rebanho. Se a diversidade implica necessariamente
convivência com o erro, a alternativa resulta em tornar universal um
erro particular.
Portanto,
partindo-se da perspectiva falibilista, que compara arranjos
institucionais em termos de sua capacidade de correção de erros, é
completamente equivocada a crença de que "fake news não é liberdade de
opinião". Pelo contrário, esta última pode ser definida como a liberdade
dos outros dizerem algo que cada um considera ofensivo.
A censura do verdadeiro, ou: "se me desagrada, deve ser censurado"
Além
de examinar a censura aplicada a algo que possa ser verdadeiro, Mill
contempla ainda as possibilidades de que o material censurado possa ser
falso ou ainda contenha algum aspecto da verdade. Iniciemos por essa
última, que adiciona elementos importantes ao argumento exposto no
último parágrafo.
O
desenvolvimento do conhecimento humano, no texto de Mill, não implica
necessariamente a substituição de falsidades por verdades, ou teorias
mais restritas por teorias mais gerais, sendo comum que perspectivas
diferentes contenham elementos diferentes da verdade e que parte desta
deixe de ser considerada mediante o abandono de um ponto de vista. Se de
fato for o caso que raramente a verdade toda esteja concentrada em
apenas um ponto de vista, a censura também será prejudicial.
Nas
palavras de Mill, "quando se encontram pessoas que, em relação a
qualquer assunto, formam exceção à manifesta unanimidade do mundo, mesmo
se o mundo estiver certo, é sempre provável que os dissidentes tenham a
dizer algo digno de se ouvir, e que a verdade perca muito com seu
silêncio."
Essa
observação ganha importância se considerarmos que, como notaram
diferentes filósofos e cientistas depois de Mill, o crescimento do
conhecimento se dá pela recombinação entre idéias, algo que possibilita a
exploração de consequências não antecipadas de conceitos retirados de
outras tradições. Esse argumento se aplica não apenas à ciência; a
política, em uma democracia, também requer a diversidade de pontos de
vista, não uma perspectiva única tida como politicamente correta.
Considere
mais uma vez a moderna defesa do controle do fluxo de informações em
meios eletrônicos. Como a pretensão de infalibilidade do censor resulta,
na prática, não no combate de mentiras, mas na supressão de opiniões
divergentes, os limites aos abusos dos dirigentes, impostos pelo livre
debate, são atenuados se as críticas só puderem ser feitas a partir de
uma perspectiva ideológica particular.
Nesse
sentido, os órgãos tradicionais da imprensa põem a perder seu legado de
luta pela liberdade de opinião diante da expansão de formas rivais de
comunicação, experimento natural que os força a revelar se, por
liberdade de opinião, se referiam apenas à sua própria e não à liberdade
de expressão propriamente dita.
Novamente, o conceito se torna vazio se não for definido como o direito do outro dizer o que me desagrada.
Os ungidos, Popper e a presunção da infalibilidade
A presunção de infalibilidade tem origem intelectual e moral. Consideremos mais de perto esse último aspecto.
Para
Mill, a presunção de infalibilidade gera as mais terríveis
consequências quando uma opinião censurada é qualificada como imoral,
pois a sensação de certeza é mais intensa.
Sobre
o julgamento de Sócrates, o autor especula que seus acusadores não
seriam homens maus. Da mesma forma, a censura e perseguição aos cristãos
no Império Romano muitas vezes teria partido de governantes
esclarecidos, que tinham convicção moral de que estavam certos.
Embora
evoque a lembrança de inquisidores do passado, a convicção moralista é
central no debate político contemporâneo, em especial no que diz
respeito à ideologia do "politicamente correto".
Por si só, essa expressão implica a negação de uma sociedade livre,
pois substitui o debate entre pessoas com pontos de vista diferentes
sobre quais seriam as políticas mais apropriadas por uma visão simplista
que atribui verdade e justiça a um ponto de vista particular.
A melhor análise do aspecto moralista da ideologia contemporânea é feita por Thomas Sowell, que a rotula "visão dos ungidos".
Como
os ungidos não estão familiarizados com a existência de teorias rivais e
com análises sobre a eficácia de políticas alternativas — que os
levariam a considerar a existência de trade-offs, consequências
não-premeditadas de políticas bem intencionadas ou ainda custos de
diferentes arranjos institucionais —, adotam uma perspectiva política
maniqueísta, que classifica os indivíduos como favoráveis ou contrários a
algum fim, em vez pessoas que divergem sobre meios.
Como
identificam automaticamente sua opinião política com a defesa de cada
causa, se colocam como os esclarecidos, que possuem consciência dos
problemas sociais, em contraste com os ignorantes, que precisariam ser
educados pelo seu exemplo e protegidos da desinformação.
A
análise de Sowell ilustra de forma perfeita a tese segundo a qual a
presunção intelectual e moral tem entre suas causas a desconsideração
pelo caráter falível do conhecimento e entre suas consequências o
autoritarismo.
Outro
exemplo do mesmo fenômeno é o ressurgimento da defesa da violência
física contra quem professa opiniões diferentes. Também nesse caso a
pretensão de infalibilidade se revela pela transferência da argumentação
do certo para o duvidoso.
O primeiro passo da defesa invoca um trecho de uma nota de rodapé da Sociedade Aberta e Seus Inimigos,
na qual Popper se refere ao paradoxo segundo o qual uma sociedade livre
não poderia tolerar intolerantes, que utilizam "punhos e pistolas" em
vez de argumentos. O segundo passo aplica essa idéia a um mal
inequívoco, como o nazismo ou o fascismo. O terceiro passo, crucial mas
implícito, classifica como fascista qualquer opinião contrária à
própria, justificando em nome da tolerância o uso de punhos e pistolas.
As
pessoas com inclinações autoritárias fascinadas por essa nota de rodapé
deveriam ler também o corpo do texto ao qual ela se refere. Nele,
Popper rejeita a abordagem política que indaga quem deveria governar (o
bom, justo, o sábio, a maioria etc.), questão que gera uma série de
paradoxos (eleitos optando por ditaduras, bons cedendo a maioria, esta
cedendo ao mais inteligente etc.).
Para
Popper, esses paradoxos teriam relevância menor se mudarmos de
perspectiva. Em vez de nos preocuparmos em conferir o poder a um
governante ideal enquanto nos decepcionamos eternamente com as
alternativas concretas, a análise deveria indagar como podemos limitar a
capacidade de um mau governante fazer estragos.
Se
tivermos em mente a sugestão de Popper, o maior autor falibilista do
século XX, a questão se inverte completamente: quais seriam as
instituições que inibem a possibilidade de que pessoas dogmáticas,
imbuídas de certezas alimentadas pelo desconhecimento de perspectivas
alternativas, tenham a liberdade de saíram por ai batendo em pessoas que
discordam delas?
A justificação da violência através da pretensão de conhecimento não é fenômeno recente. O moderno "antifascismo"
tragicamente imita estratégia comum em regimes totalitários do século
XX. Nos campos de trabalhos forçados soviéticos, os presos políticos
classificados como fascistas eram em sua maioria originalmente fiéis a
ideologia coletivista prevalecente, mas que divergiram marginalmente
sobre algum detalhe do credo ou foram presos devido a uma ação contra
alguma classe de "inimigos do povo".
Muitos
investiam contra a liberdade de fascistas imaginários — aquelas pessoas
que nutriam opiniões diferentes das suas — para descobrirem no instante
seguinte que eles próprios seriam os "fascistas" da vez.
Censurando o falso
Resta ainda considerar a terceira possibilidade contemplada por Mill: a censura de opiniões patentemente falsas.
De
forma consistente com sua crença de que a razão se nutre da livre
discussão, também nesse caso o autor rejeita a censura. Dois motivos são
apresentadas.
Uma
crença verdadeira seria um dogma morto se fosse apenas repetido,
herdado por argumento de autoridade, sem que as pessoas saibam em um
debate com as idéias falsas apontar as razões que a sustentam. Um
exemplo moderno é fornecido pelo terraplanismo, que forçou muitas
pessoas a travarem contato com os argumentos e experimentos que o
refutam, em vez de apenas aceitarem a tese correta como informação
decorada na escola ou já esquecida.
Para
Mill, não apenas os motivos que sustentam uma proposição seriam
desconhecidos na ausência de discussões, mas também o próprio
significado da proposição. Nossas crenças teriam pouco impacto sobre
nossa ação se fossem repetidas mecanicamente, sem que nuances sobre seu
significado fossem avivadas pelo debate, modificando nosso
comportamento. Podemos oferecer como exemplo o próprio compromisso com a
liberdade de opinião, hoje valor apenas defendido nominalmente, que só
pode ser revivificado pela discussão dos fundamentos desse valor.
A autocensura decorrente da pressão pública
Mill dedica o final de seu texto para enfatizar os malefícios da censura autoimposta, sob a pressão da opinião pública.
O
autor nota uma assimetria entre opiniões comuns e opiniões mais raras. A
liberdade que um defensor de opiniões majoritárias tem para empregar
sarcasmo, comentários injuriosos e "discussão intemperada" não se
permite ao defensor de posições minoritárias, que tem que medir cada
palavra para não ofender, gerar reação desmedida contra si, como o "cancelamento" moderno.
Mill
se preocupa com a inibição do aprendizado por diversidade e crítica
causada pelo policiamento a posturas impopulares, com frequência
classificadas como como imorais:
A pior ofensa dessa espécie que se pode cometer numa polêmica consiste em estigmatizar, como homens maus e imorais, os que sustentam a opinião contrária. Os que sustentam qualquer opinião impopular estão particularmente expostos a esse tipo de calúnia, pois em geral são pouco numerosos e pouco influentes, e ninguém mais, além deles mesmos, tem muito interesse em ver fazer-lhes justiça.
Como
o crescimento do conhecimento depende do debate entre diferentes pontos
de vista, a hostilidade dirigida contra posturas heterodoxas que inibem
sua manifestação prejudicam o progresso humano.
Exemplo
disso é a assimetria que encontramos na discussão política a respeito
de que conduta é considerável aceitável ou condenável. Basta discordar
da maioria para que sua opinião seja considerada como "discurso de
ódio", ao passo que defesas explícitas de violência e preconceito, o
famoso "ódio do bem", são relativizadas ou ignoradas se partirem dos
defensores da ideologia padrão.
Embora
a causa da liberdade de opinião tenha pouca chance de prosperar sob
instituições que cada vez mais transferem as decisões para a esfera
coletiva, politizando cada aspecto da vida, ainda assim, diante da
frequência com a qual a censura volta a ser considerada, é nossa
obrigação revisitar os fundamentos da liberdade tal como expostos por
autores como John Stuart Mill.
Referências
HAYEK, F.A. The Counter-Revolution of Science: studies on the abuse of reason. Indianapolis: Liberty Press, 1979.
MILL, J.S. A Liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
MILTON,
J Areopagitica; A Speech of Mr. John Milton for the Liberty of
Unlicenc'd Printing, To the Parlament of England. Londres, 1644.
POPPER, K. A Sociedade Aberta e seus Inimigos. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1987.
SOWELL, T. The Vision of the Anointed: self-congratulation as a basis for social policy. New York: Basic Books, 1995.
SEBASTYEN, V. Lenin, the Dictator. Londres: W&N, 2017.
SPENCER,
H. Social Statics: the conditions essential to human happiness
specified, and the first of them developed. New York: R. Schalkenbach
Foundation, 1995.
Postado há 4 days ago por Orlando Tambosi
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