Fake news converteram votos dos evangélicos e inundaram a internet neste ano, mas a sociedade, mais preparada, conteve seus danos. Duda Teixeira para a Crusoé:
A
disseminação de notícias falsas nestas eleições era uma tragédia
anunciada que, desde o ano passado, motivou ações da Justiça eleitoral e
das empresas de tecnologia. A expectativa se confirmou. Nos últimos
quatro meses, foram registradas 15 mil denúncias de desinformação pelo
Tribunal Superior Eleitoral, TSE, sendo 562 disparos massivos de
mensagens. Como nem tudo é reportado, o total de infrações é certamente
muito maior, e uma avalanche de inverdades deve ocorrer nos próximos
dias. Pesquisas confirmaram que essas mensagens enganosas viraram votos
em ao menos um grupo, o dos evangélicos. Mas, nos demais, as mentiras
tiveram perna curta. A conscientização sobre o perigo que as fake news
representam, a remoção de conteúdos pelas redes sociais, a ação rápida
dos advogados dos partidos e da Justiça eleitoral e o fato de que os
dois principais candidatos são figuras bem conhecidas do público
evitaram um caos maior.
O
dado que comprova a eficácia das fake news entre os evangélicos foi
obtido pela Genial/Quaest: 34% deles acredita que Lula fechará igrejas
se eleito. O número é chocante porque, em momento algum, o petista
afirmou tal coisa, ou isso tampouco faria qualquer sentido. Mesmo assim,
desde maio, o Datafolha apurou um aumento da intenção de voto em
Bolsonaro entre os evangélicos de 39% para os atuais 50%. Em nenhum
outro grupo populacional deu-se uma mudança tão perceptível. “Ao
analisar as pesquisas de intenção de voto segundo vários critérios, como
renda familiar ou escolaridade, não se percebe uma alteração
importante. Isso só aconteceu na amostra dos evangélicos, o que nos leva
a supor que as estratégias usadas por Bolsonaro drenaram muitos votos
de Lula”, diz João Brant, coordenador do Desinformante, que monitora a
desinformação nas redes. “Mais adiante, as pesquisas vão revelar qual
foi a participação das fake news nisso, mas há indícios fortes nesse
sentido.”
Oito
narrativas políticas foram detectadas na mídia online evangélica pelo
NetLab, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ. Entre elas
estão: “a esquerda tem preconceito com a nossa religião”, “Lula quer
manipular os eleitores evangélicos”, “o presidente Bolsonaro é o líder
da nossa nação conservadora” e “quem não apoia Bolsonaro é traidor”. Os
filhos do presidente, seus aliados, religiosos e influenciadores
disseminaram essas ideias, que foram compartilhadas por milhões de
contas. No início de setembro, a ministra Cármen Lúcia, do Tribunal
Superior Eleitoral, TSE, determinou a remoção de publicações do deputado
Eduardo Bolsonaro (PL) no Twitter e no Facebook, em que ele dizia que
“Lula e PT apoiam invasões de igrejas e perseguição de cristãos”. A
ministra disse que a informação era “sabidamente inverídica”.
Decisões
como a de Cármen Lúcia não impediram que mentiras grosseiras fossem
jogadas nas redes, mas foram capazes de limitar seus impactos. “Em 2018,
a Justiça estava pouco munida para enfrentar a desinformação. Mensagens
sobre o kit-gay ou a mamadeira de piroca duraram muito tempo na
internet e foram sendo reaproveitadas. Hoje, o arcabouço para
compreender o que é desinformação melhorou muito, assim como o tempo de
resposta da Justiça”, diz Alexandre Pacheco, professor na FGV Direito SP
e um dos coordenadores do Observatório da Desinformação nas Eleições.
Na campanha presidencial anterior, foram distribuídas mensagens dizendo
que mamadeiras com bico em formato de pênis tinham sido entregues em
creches pelo PT e que o candidato petista Fernando Haddad teria feito um
“kit gay” para doutrinar crianças. Este ano, o grupo de Pacheco já
analisou 140 decisões dos órgãos da Justiça eleitoral. Em geral, as
publicações partiram de membros da coligação de Bolsonaro ou de seus
apoiadores e questionavam as urnas eletrônicas ou o sistema eleitoral.
Quando os tribunais solicitaram a retirada do conteúdo, as empresas de
tecnologia acataram os pedidos.
Uma
das conclusões do Observatório é que o Judiciário tem sido muito ágil e
contundente ao identificar e punir mensagens que são inverdades óbvias.
Um exemplo recente ocorreu nesta quarta, 28, quando o TSE publicou uma
nota dizendo que um material publicado nas redes pelo partido do
presidente, o PL, trazia informações “falsas e mentirosas, sem nenhum
amparo na realidade, reunindo informações fraudulentas e atentatórias ao
Estado Democrático de Direito e ao Poder Judiciário, em especial à
Justiça Eleitoral”. Na nota, o TSE se referiu ao texto como um
“documento” apócrifo — assim mesmo, entre aspas. O posicionamento foi ao
ar no site da corte apenas três horas depois de o tal “documento” ter
sido divulgado pelo PL.
Contudo,
quando os conteúdos imputam um crime ao candidato, as sentenças podem
ser contraditórias. Uma liminar foi dada para impedir que Lula chamasse
Bolsonaro de genocida, mas a proibição caiu mais tarde, porque
considerou-se que ela afetava a liberdade de expressão. No Twitter, a
presidente do PT, Gleisi Hoffmann, acusou Bolsonaro de ser o mandante do
assassinato de Benedito Cardoso, um apoiador de Lula, no Mato Grosso. O
post teve de ser apagado por ordem da Justiça. Bolsonaro chamou Lula de
ladrão diversas vezes, mas, nesses casos, os petistas não reclamaram
nas instâncias competentes, talvez para não despertar risadas. “A
Justiça ainda está aprendendo o seu caminho para lidar com esses
adjetivos, mas a tendência no colegiado parece ser a de considerar essas
críticas como um exercício da liberdade de expressão”, diz Pacheco, da FGV Direito SP.
Em
2022, as fake news esbarraram em uma sociedade mais preparada.
Campanhas foram promovidas para educar a população. Agências de
checagem, como o Comprova, parceiro da Crusoé, desmontaram histórias
mal-intencionadas. Disparos de mensagens políticas para telefones
celulares sem consentimento, que em 2018 ocorreram principalmente pelo
WhatsApp, foram denunciados pelos que as receberam e bloqueados pelas
plataformas digitais. Um canal implementado pelo WhatsApp em 2020
recolhe denúncias para suspender rapidamente as contas usadas nessas
operações ilegais.
Até
aqui, a organização Data Privacy, que advoga pela proteção de dados,
detectou dois disparos em massa de mensagens, ambos usando outros
mecanismos de mensagens que não o WhatsApp, como os antigos SMS e os
RCS, que podem conter links e imagens. No primeiro caso, uma pesquisa
online perguntou se as pessoas conheciam o governador de São Paulo e
candidato à reeleição, Rodrigo Garcia. O outro foi uma mensagem enviada
por um funcionário da empresa mineira Algar Telecom com o texto: “Vai
dar Bolsonaro no primeiro turno! Senão, vamos a rua para protestar!
Vamos invadir o Congresso e o STF! Presidente Bolsonaro, conte com todos
nós!”. Os dois casos usaram bancos de dados públicos, com números de
telefones de indivíduos que não se cadastraram para receber esses
textos. Investigações estão em andamento para punir os responsáveis. “As
pessoas hoje sabem que é errado mandar mensagens políticas não
solicitadas. Elas acham estranho, reclamam na internet, questionam.
Então, o tiro pode sair pela culatra”, diz Pedro Saliba, pesquisador e
líder do projeto sobre eleições, desinformação e proteção de dados na
Data Privacy.
Outra surpresa deste ano foi que o Telegram,
aplicativo que demorou para responder aos emails do TSE e que contratou
um escritório de advocacia carioca como representante no Brasil, não
foi um protagonista de peso. Ao longo dos últimos dois anos, Jair
Bolsonaro, um crítico das grandes redes sociais, investiu bastante no
Telegram a ponto de se tornar a pessoa mais popular na rede em todo o
mundo, com 1,4 milhão de seguidores. Entre os 2.183 links com denúncias
compilados pelo TSE, 1.774 eram do Youtube, 185 do Twitter, 83 do
Facebook e 32 do Instagram. Apenas doze estavam no Telegram. O número
irrelevante não quer dizer que essa rede, com sede em Dubai, tenha se
tornado um ambiente regrado. Muito pelo contrário. É um território
minado de fake news. Mas os números do TSE mostram que o Telegram não
incomodou tanto os brasileiros. Uma explicação possível é que a rede
serviu mais como um lugar para os usuários trocarem informações dentro
de suas próprias bolhas, mas não os ajudou a alcançar um público mais
amplo, chegando a eleitores indecisos ou que pensam de maneiras
diferentes. As fake news, assim, circularam entre os que já acreditavam
nelas.
Por
fim, um fator relevante que deve ter limitado o alcance das mentiras é
que esta eleição teve dois candidatos bem conhecidos disputando o
primeiro lugar nas pesquisas. Tanto Lula como Bolsonaro já exerceram o
cargo de presidente, o que favoreceu uma decisão célere por parte dos
eleitores. Isso reduziu o espaço para as fake news proliferarem. “Em
2018, as pessoas não conheciam direito o deputado Bolsonaro ou o petista
Fernando Haddad. Este ano, o cenário foi bem menos incerto”, diz João
Brant, do Desinformante.
Os
próximos dias serão cruciais e muita coisa ainda pode acontecer. As
denúncias de fraude no sistema eleitoral, distribuídas pelos seguidores
do presidente Bolsonaro, podem levar muitos brasileiros a não aceitar os
resultados e a protestar. Atos de violência, uma marca triste desta
campanha, podem voltar a fazer vítimas. Mesmo assim, é certo que a
sociedade brasileira está mais atenta e preparada para enfrentar o
problema das fake news.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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