Os jornais têm todo o direito de ter as suas inclinações políticas e ideológicas, e é salutar que, tendo-as, as assumam claramente. O Público considera-se neutro e equidistante. Será mesmo? João Pedro Marques para o Observador:
O
debate vem desde Abril de 2017. Como é sabido, na sequência de
declarações de Marcelo Rebelo de Sousa, no Senegal, a esquerda woke veio
exigir uma grande discussão pública sobre o tema da escravatura. Essa
exigência chegou à sociedade portuguesa sobretudo através das páginas do Público
e o jornal acarinhou-a desde a primeira hora, deu-lhe espaço e muito
combustível, tendo o cuidado e a isenção de dar acolhimento não apenas
ao discurso woke mas, também, ao contraditório.
De
então para cá, esse debate foi-se fazendo, ainda que sempre coxo ou em
défice por falta de comparência. De facto, por muito paradoxal que
pareça, e com uma ou duas excepções, as pessoas que tão encarniçadamente
exigiam o grande debate sobre escravatura não vieram a terreiro
argumentar sobre factos históricos e suas interpretações. Remeteram-se
ao silêncio, à cobarde maledicência das redes sociais ou, então,
limitaram-se a repetir uma lengalenga política e ideológica — uma
lengalenga woke. Ao longo destes cinco anos e meio de debate — ou talvez
fosse melhor designá-lo por conversa paralela — essas pessoas
mantiveram os mesmos erros, as mesmas distorções e superficialidades que
já propalavam em Abril de 2017, quando o debate começou. Apesar de se
ter mostrado repetidamente, com factos e documentos, que estavam
errados, os activistas continuaram, como todos os ideólogos e
propagandistas, a repetir a mesmíssima receita.
Ou
seja, estes cinco anos e meio mostraram que essas pessoas não queriam,
na verdade, discutir ideias e acontecimentos históricos, mas apenas um
palco e um megafone através dos quais pudessem fazer a sua propaganda.
Mas — e esse é o ponto principal — a partir do momento em que
encontraram uma oposição com que talvez não contassem, passaram a querer
também outra coisa, que os radicais sempre querem e que é importante no
contexto deste artigo: que as vozes contrárias se calassem, que os
jornais deixassem de publicar o que essas vozes escreviam.
O
Público acabou, sem o saber, de lhes fazer a vontade ao decidir não
publicar o artigo “Mamadou Ba e o mito do Haiti” e isso talvez mereça
algumas considerações. É que as razões invocadas pelo jornal para
justificar a sua insólita decisão de não publicação online desse meu
texto não são atendíveis — como quem estiver interessado poderá avaliar por si próprio neste link.
Mas mesmo que fossem razoáveis e convincentes, ou, até, que nem
tivessem sido apresentadas razões, pois o Público tem obviamente o
direito e o poder de publicar ou deixar de o fazer, ficaria sempre no ar
a seguinte pergunta (e é essa que é importante): quando, no contexto de
um debate de interesse público e de informação histórica, se tapa a
boca a um dos habituais intervenientes na discussão, estará o jornal que
a acolhe a tomar parte e partido nela, e a condicioná-la?
É
verdade que eu não fiquei impossibilitado de expor as minhas ideias,
pois tive, graças ao Observador — a cujos responsáveis publicamente
agradeço —, a possibilidade de fazer chegar aos leitores o tal texto que o Público achou por bem não divulgar.
A verdade, porém, é que me foi vedada a faculdade de o fazer chegar aos
leitores do Público, a quem originariamente se dirigia, e por isso a
pergunta subsiste: estará esse jornal a escolher um dos lados do debate?
Estará, por essa via, a influenciá-lo? Eu receio bem que sim e essa
acção, vinda de um órgão de comunicação social que acolhia e promovia um
amplo debate sobre o assunto, e que, como pode ler-se no seu estatuto
editorial, pugna pela “existência de uma opinião pública informada,
activa e interveniente”, causa-me perplexidade.
Os
jornais têm todo o direito de ter as suas inclinações políticas e
ideológicas, e é salutar que, tendo-as, as assumam claramente. O Público
não tem, que eu saiba, qualquer inclinação expressa, considera-se
neutro e equidistante. Estará a sê-lo? Não há amplos debates sobre
assuntos históricos, nem opiniões públicas devidamente informadas,
quando se suprimem a informação e a análise historicamente
fundamentadas. Ao impedir que a minha perspectiva crítica sobre as
fantasias de Mamadou Ba (e de muitas outras pessoas) a respeito da
revolução haitiana chegasse aos seus leitores, o Público favoreceu
objectivamente uma das partes intervenientes no debate e protegeu a
narrativa ideológica e mitológica a respeito do Haiti, narrativa tão
cara à esquerda woke por esse Ocidente fora. Importa perceber que a
decisão de recusar o meu artigo é, também, uma acção de protecção dessa
narrativa. Com ela o Público, mesmo não o querendo, inclinou o campo de
jogo para um dos lados. Terá sido justo e equidistante?
Dir-se-á
que tudo isto não passa de um pequeno incidente do quotidiano dos
jornais que desta vez veio bater à minha porta. Mas eu não comungo dessa
visão light ou soft das coisas. Não quero fazer tempestades em copos de
água, mas também não pretendo assobiar para o ar como se nada tivesse
acontecido. Acho, por isso, que incidentes destes — e serão
provavelmente vários — devem vir à tona de água e ser do conhecimento
dos leitores pois interessam à boa respiração da opinião pública e à
salubridade e equidade dos debates feitos nessa esfera através da
comunicação social.
Não
afirmo nem sugiro que tenha havido uma parcialidade consciente,
voluntária, nesta decisão editorial do Público — e o jornal
esclarecê-la-á melhor, se assim o entender. De uma coisa, porém, estou
convencido, e agora falo já não como autor, mas como leitor e assinante:
há uma deriva woke no jornal, sente-se no estilo geral, nas opções
editoriais, nas temáticas privilegiadas, e essas coisas, mesmo que
inconscientemente, acabam por influenciar e por ter peso em certas
decisões. E, eventualmente, de uma forma recíproca. Eu sou leitor do
Público desde o seu início e vejo, com pena, que a opinião moderada e de
direita se afastou das suas páginas, não sei se de motu proprio se por
ter sido afastada, talvez por ambas as razões. O facto é que o jornal é,
hoje, menos plural, menos abrangente, do que já foi e são os seus
leitores que ficam a perder com esse infeliz estreitamento.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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