Escrita difícil e pose questionável para uns, símbolo da verdadeira literatura para outros, autor de exceção no panorama literário português para todos. Aos 80 anos, que espaço criou Lobo Antunes? Carlos Maria Bobone para o Observador:
É
o nosso romancista contemporâneo mais reconhecido internacionalmente.
Nascido a 1 de setembro de 1942, aos 80 anos, é dos últimos autores cujo
nome não soa novo ao público português e que é sinónimo de literatura. É
dos poucos em quem um público mais ou menos alargado está disposto a
investir algum esforço, consciente de que está de alguma forma a
elevar-se, de que vale a pena ultrapassar um entretenimento mais ou
menos fácil e uma prosa funcional. É, também, o último moicano, com tudo
o que a existência de um verdadeiro moicano teria de triste e glorioso,
bizarro e imponente, falso e autêntico, de uma literatura que se vê
como quase sagrada e que dá às suas vozes o direito a portarem-se como
enviados, sem preocupações mesquinhas e com a certeza de que estão acima
de quem os lê.
O
valor sociológico de António Lobo Antunes é, assim, um património
peculiar da vida portuguesa. De algum modo, ele representa para uma
fatia grande da população a literatura verdadeira. Aquelas palpitações
existenciais que nos levam a querer superar-nos intelectualmente, que
empurram leitores pouco treinados para o Guerra e Paz ou para a Busca do
Tempo Perdido, têm em Lobo Antunes um aliado. Para muita gente, Lobo
Antunes representa a dificuldade no seu sentido ascético e a leitura dos
seus livros é vista como uma proeza. O autor, aliás, confirma
constantemente essa ideia. O feitio difícil, as irritações, uma certa
iconoclastia, confirmam o papel de Lobo Antunes como o escritor de
exceção na paleta literária vulgar.
No
tempo da proximidade entre escritores e leitores, em que é difícil
distinguir o tipo de promoção comercial entre os escritores destinados a
grandes vendas e os destinados ao circuito dos prémios e das
residências literárias, Lobo Antunes é ainda uma lembrança de que não é
tudo a mesma coisa. Goste-se ou não do escritor e da pose, a verdade é
que a figura de Lobo Antunes é a última, em Portugal, cujo
reconhecimento é exclusivamente literário e que é valorizada por isso
mesmo. Aquela curiosa mistura que o fim do século XIX nos trouxe, em que
o “escritor nacional”, como o foram Garrett, Hugo ou Heine, se junta ao
escritor maldito tem em Lobo Antunes um belo exemplar. O capital social
de Lobo Antunes é o de um “escritor nacional”, reconhecido, que as
pessoas julgam importante ler, precisamente por ser uma espécie de
escritor maldito, que só a contra-gosto vai às feiras e aos certames
literários, que só de pé atrás publica numa grande editora e que nos
garante não percebermos o alcance da sua obra.
Não
deixa de ser curioso que o público reaja a este modo de estar na vida
literária com a consciência de que esta sim é a verdadeira literatura –
como se reconhecesse que todo o modo de promoção de livros e autores,
feito em função do público, não serve a literatura.
A
imagem de Lobo Antunes e o seu papel de “escritor difícil” ultrapassam,
parece-nos, a importância de um biografismo vulgar. É bom que haja quem
lembre que a literatura pode não ser fácil, que há valor em partir para
um texto com a consciência de que somos mais pequenos do que aquilo que
temos nas mãos e em submeter o nosso ponto de vista a um lugar
desconfortável; ainda assim, por mais necessário que a existência de um
escritor deste jaez seja importante para o universo da literatura, isto
pouco ou nada diz sobre a escrita de Lobo Antunes. Fora do seu legado
público e social, qual é o legado literário de Lobo Antunes?
É
impossível fazer justiça aos seus livros sem uma análise aproximada de
cada um. Se reconhecemos que cada frase é meticulosamente pensada e cada
palavra medida para dar uma cadência e uma imagem muito próprias, seria
absurdo pretender avaliar a sua escrita de um modo impressionista,
passando por cima daquilo em que o próprio escritor investiu as suas
fichas. Isto é, de nada vale mencionar o sentimento à flor da pele, a
sensação de infância mal-resolvida ou de uma certa nostalgia, aquela
espécie de fluxo de consciência atualizado quando tudo isto são ideias
gerais sobre uma obra construída com base na importância do particular,
de cada imagem, de cada inflexão narrativa ou da música própria de cada
palavra.
É
de realçar, no entanto, que uma consciência do legado de Lobo Antunes
na literatura contemporânea variará muito consoante o lugar de onde se
olha. A perceção que um leitor português terá sobre o essencial de Lobo
Antunes será completamente diferente da perceção de um leitor americano
ou francês.
Lobo
Antunes aparece com uma solução diferente, com uma tradição intelectual
diferente, mas igualmente respeitada, e isto moldou para sempre a sua
imagem junto do público português
Lobo
Antunes trouxe para Portugal uma espécie de formalismo renovado, cujo
cânone já não é a poesia de Rimbaud ou Mallarmée, mas sim os romances de
Faulkner ou Céline. Aliás, a grande novidade literária de Faulkner, por
exemplo, passa precisamente pelo modo como importou uma espécie de
linguagem poética – coisa que tem a sua tradição na América, com
Melville, por exemplo, mas noutros moldes – e a articulou com a cadência
narrativa dos grandes prosadores modernistas. Há, em Faulkner, algo da
estrutura de Joyce ou de Woolf, mas aquilo que é comum entre estes
escritores é apenas um esqueleto: o lado prosaico de Ulysses não está em
Faulkner, como não estará em Lobo Antunes. Há um encantamento poético,
uma exuberância narrativa que por um lado amacia o experimentalismo do
fluxo de consciência – disfarçado, na sua confusão, por estarmos diante
de imagens poderosas e de uma pressão enorme de sentimentos contidos – e
por outro o potencia narrativamente, permitindo saltar da consciência
quotidiana para as intercadências da memória ou para os planos
narrativos simultâneos.
Ora,
este modo de escrever, para o Portugal dos anos oitenta, era incomum.
Lobo Antunes aparece com uma genealogia literária própria, a princípio
bastante parecida mesmo com Céline e Faulkner, mas capaz de trazer para a
literatura portuguesa a frescura que nenhuma tradução direta destes
autores pode dar. A adaptação de um estilo a uma língua não é fácil e
nunca pode ser direta. Não se consegue ver a verdadeira dimensão
sociológica de Balzac ou Zola quando a sociedade não é a nossa; não se
consegue tomar o pulso à exuberância linguística de Faulkner quando se
muda de língua. Assim, Lobo Antunes é, antes de mais, o verdadeiro
tradutor, na sua dimensão maior, desta literatura.
Ora,
num tempo em que a literatura formal está atascada num nouveau roman
que pertence mais aos críticos do que aos escritores, Lobo Antunes
aparece com uma solução diferente, com uma tradição intelectual
diferente, mas igualmente respeitada, e isto moldou para sempre a sua
imagem junto do público português. Aquilo a que o leitor português
associa Lobo Antunes são, essencialmente, características formais. A
musicalidade, a experimentação narrativa, um certo arrojo gramatical,
enfim: tudo aquilo a que se costuma chamar estilo, e um estilo muito
pronunciado, que domina a leitura.
O
que é curioso é que aquilo que para o leitor português constitui a
novidade constitui também a condição de possibilidade do êxito
internacional de Lobo Antunes precisamente por não o ser. Isto é, numa
literatura que já passou por Faulkner ou Céline a estrutura mais ou
menos tradicional do romance de Cardoso Pires, ou Vitorino Nemésio, ou
de qualquer um dos nossos romancistas maiores de meados do século XX
parece estranhamente datada. Tal como seria absurdo fazer ciência como
se Newton não tivesse existido, continuar seraficamente a escrever como
se não existissem Kafka, Joyce ou Faulkner parece algo bizarro. Ora,
Lobo Antunes é dos poucos escritores portugueses em quem esta
consciência daquilo que se passou na literatura mundial ao longo do
século XX é pronunciada. O estilo de Lobo Antunes não convence por ser
original, mas sim por falar a linguagem do mundo contemporâneo,
permitindo a quem o lê de fora passar por cima desse estilo que entre
nós constitui o fundamental da sua obra. A guerra do ultramar, os
retornados, a infância, um certo sentimentalismo, tudo isso é muito mais
notado fora de portas, precisamente onde a invenção estilística causa
menos sensação e é apenas de regra.
Lobo
Antunes sempre desmereceu as suas crónicas e parece tê-las escrito ao
longo dos anos com alguma má-consciência. Ainda assim, é impossível
ignorar o alcance destas junto do público e a sua importância para o
desenvolvimento do género em Portugal. Por muito que haja nelas um certo
maneirismo, que repisem o mesmo universo vezes e vezes sem conta, foram
durante anos a única manifestação da crónica como género literário em
Portugal. Ora, também nisto – numa crónica que parece dever apenas a Eça
e a Miguel Esteves Cardoso quando quer ultrapassar o quotidiano – o
lugar de Lobo Antunes é invulgar. A sua crónica não é de costumes nem
política, poucas vezes é cómica e muitas vezes parece o resultado de um
alívio psicanalítico embelezado que não tem paralelo no nosso país. Só
por isso, só pelo facto de mostrar que é possível variar a música, que é
possível repassar-nos uma onda de tristeza quotidiana ou de saudade
quando lemos o jornal, já teria um lugar na literatura.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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