Mais do que uma guerra de territórios, a guerra entre a Rússia e a Ucrânia é uma guerra ideológica, que marca o pontapé de saída de uma série de potenciais conflitos latentes. João Pires para o Observador:
A
mais recente fase do conflito russo-ucraniano, iniciada pela invasão de
24 de fevereiro, marca uma rutura da ordem pluralista europeia emanante
do pós-II Guerra Mundial, estabelecendo a materialização de uma
permanente tensão entre as necessidades securitárias russas ao nível da
sua política externa e as três principais características desse mesmo
ordenamento estabelecido a partir de 1945 – a concretização de uma
liderança militar norte-americana, de uma liderança económica tácita da
Alemanha e de uma vertente pluralista, multipolar e, no limite,
supranacional. Esta rutura, aliada a uma retração do típico papel
unipolar de destaque norte-americano, coloca pressão inusitada sobre
toda a ordem internacional, evidenciando um conjunto de pontos de
pressão além de meras considerações sobre equilíbrios e distribuições de
poder. A guerra entre a Rússia e a Ucrânia é, portanto, uma guerra que
nos envolve a todos, enquanto sociedade, e que ameaça o modelo
construído, a nível político e ideológico, pelo Ocidente nos últimos 70
anos.
O
conflito russo-ucraniano, pese embora a notoriedade e o destaque
obtidos na comunidade internacional na sequência da invasão perpetrada
pelas forças de Moscovo em fevereiro deste ano, encontra as suas raízes
contemporâneas no desmoronamento da União Soviética e na perceção
securitária russa a partir desse período. Desde a anexação ilegal da
Crimeia em 2014 ao apoio das forças rebeldes na região do Donbass a
partir desse período, a oposição entre ambas as forças tem apresentado
um propósito ideológico, assente em reivindicações russas inerentes ao
passado comum e partilhado entre as duas Nações e, principalmente, entre
os dois povos, com origem na Rus do século VIII e com capital em Kiev, e
um propósito securitário, assente na necessidade, ao nível da Política
Externa, de controlo da Planície da Europa do Norte, do porto de
Sebastopol enquanto único porto de água temperada no Inverno
(«warm-water port»); portanto, enquanto garante de uma infraestrutura
comercial de peso para a economia do urso russo, e, por último, do
aprofundamento da profundidade estratégica como fator fundamental à sua
capacidade de defesa ao longo da História, nomeadamente em 1812 e em
1941.
Nesse
sentido, 2022 marca uma esperada universalização de um conflito
regional que, no fundo, se afigura como expressão do confronto entre
duas ordens e duas visões do Mundo distintas – entre o modelo
demo-liberal e o modelo das «democracias soberanas e musculadas»; e
entre a ordem europeia pluralista e a ordem de afirmação hegemónica
russa na Europa, assente num eventual equilíbrio de poder favorável a
Moscovo. Alheios a considerações morais de qualquer tipo, Putin, Lavrov e
o seu conjunto de agressores visa, então, demolir uma ordem
objetivamente contrária às pretensões russas, construída sob um modelo
antagónico ao historicamente perpetrado pelos vários Estados
antecessores da atual Federação Russa – Grão-Ducado da Moscóvia, Império
Russo e União Soviética – e com o objetivo concreto de conter a
Alemanha e a Rússia, por forma a afirmar a hegemonia russa no continente
europeu e a multipolaridade a nível mundial, em confronto com a China e
os Estados Unidos.
Sobre
o falhanço da ação da Alemanha e sobre uma instabilidade
norte-americana, materializada numa dupla face associada à falta de ação
decisiva, por um lado, neste conflito específico, e à concretização de
movimentações desfasadas do tempo histórico adequado, como a visita da
speaker Pelosi a Taiwan, a ordem europeia acabará, mesmo, por ruir,
pressionando a ordem mundial e atestando um conflito que se distancia
muito de uma dimensão regional e que, por isso, exige uma ação
concertada de todo o bloco ocidental. Mais do que uma guerra de
territórios e de movimentações políticas e diplomáticas, a guerra entre a
Rússia e a Ucrânia é uma guerra ideológica, que marca o pontapé de
saída de uma série de potenciais conflitos latentes, no continente
europeu – entre a Sérvia e o Kosovo, e.g. – e fora dele – entre as Duas
Chinas., e.g. – e que potencia a entrada numa nova era da diplomacia
mundial – mais propícia ao conflito armado como chave de resolução de
eventuais disputas e contendas previamente confinadas ao campo das
soluções pacíficas encetadas por uma ordem herdeira das suas principais
sucessoras – Viena e Vestefália.
Do
Fim da História apregoado por Francis Fukuyama em 1991, o Mundo
atravessa, na contemporaneidade, um refluxo do seu processo de
democratização, mesmo em estruturas previamente consolidadas e
institucionalizadas – influenciando as Relações Internacionais para um
campo eminentemente mais moral e ideológico e para uma separação em
blocos que seja cara a essas mesmas dimensões. Esta reorientação,
alinhada com o progressivo fim do Sistema Internacional unipolar assente
na ascensão económica e, progressivamente, militar e naval da China,
exige uma reestruturação da Política Externa norte-americana e, de forma
mais importante, das principais forças inerentes ao continente europeu,
com incidência especial sobre a Alemanha e sobre a ação de Olaf Scholz,
ao nível do rearmamento militar e da caracterização de um novo sistema
de equilíbrio de poderes que permita a contenção do poder bélico russo.
Disso dependerá o futuro da Europa e, pela sua influência em redução,
mas considerável, de todo o Mundo, a nível económico, político e social.
Mark Leonard afirmou o século XX como o século da Europa. Errou. Mas a
Europa (e os Estados Unidos) apresentam um papel determinante e crucial
para evitar um século XXI como um século de autoritarismo.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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