A série 'The Morning Show' traz elementos para a reflexão sobre a crise cultural americana e o puritanismo que fundou os EUA. Luiz Felipe Pondé para a FSP:
Os EUA são
a maior lata de lixo cultural contemporânea. Quase tudo é "identity
crap" e afins —"crap" aqui significa porcaria. A produção audiovisual
americana atual é quase nula para não retardados. Aliás, a área é uma
das que foi mais atingida pelas modas obsessivas identitárias.
O
audiovisual, conhecido como um dos mercados mais violentos,
competitivos e antiéticos —não é à toa todos os escândalos sexuais no
ramo— agora, se travestiu de vestal dos bons costumes progressistas. Não
poderia deixar de ser um dos maiores desfiles de hipocrisia do mundo
público.
Universo
que move bilhões de dólares, regado a muita disputa de ego, altíssima
rotatividade de elenco —todo mundo fica velho muito rápido— e uma
pressão devastadora por audiência e engajamento ("ratings"), o
audiovisual faz a babilônia bíblica parecer o Éden.
A série da Apple TV "The Morning Show"
—primeira temporada, novembro 2019, segunda temporada, setembro de
2021— parte de um escândalo de assédio sexual que envolve um grande
âncora do jornalismo americano interpretado por Steve Carell.
Estão no elenco também Jennifer Aniston,
Reese Witherspoon e Billy Crudup. Ainda que caia em alguns clichês do
identitarismo —sexo entre lésbicas é amor, entre heterossexuais é
masculinidade tóxica—, a trama traz alguns elementos para a reflexão
sobre a crise cultural americana em curso.
Quando
olhamos de mais perto todo o desenvolvimento dessa tragédia da
inteligência que acabou se constituindo a vida intelectual americana
—com a participação direta de uma das maiores instâncias repressoras da
inteligência contemporânea que são as universidades de riquinhos
americanos— vemos suas raízes puritanas profundas.
O
puritanismo que fundou os EUA retorna do reprimido, após a ridícula
contracultura, para atormentar o espírito americano. A obsessão pelo
"ambiente de trabalho sexualmente seguro", e suas comissões de RH ou
compliance —que a série mostra de modo cirúrgico— investigando quem come
quem, é uma grande fonte de paranoias afetivas e violência na
hierarquia.
Mas
vamos com calma. Sem dúvida o poder gera abuso em muitos casos. Isso é
fato. E muitas mulheres e homens sofrem com isso. O problema é que
ideologias políticas e procedimentos sumários de repressão e escrutínio
dos afetos e sexo no ambiente de trabalho se movem como um elefante numa
loja de cristais. A fúria puritana que alimenta esses processos se
esconde sob a pele do cordeiro progressista.
Toda a cultura pós o "#MeToo",
as pautas identitárias e o puritanismo jovem acabaram por se
constituir, acima de tudo, em políticas corporativas que, por sua vez,
elevaram o nível da violência no cotidiano do trabalho.
Todo
o universo "progressista" se revelou apenas ser mais um nicho para as
baixarias que caracterizam as relações humanas no mundo da produção
capitalista. Um dos detalhes que marca a série é a evidente destruição
das relações humanas que encontrou no discurso identitário um espaço
para novas formas de violência na "gestão de pessoas".
A
verdade é que o mundo do trabalho é erótico. O encontro de pessoas no
cotidiano da produção, onde há sucessos, carreiras, ambições,
manipulação de egos, afetos e corpos, é um território fértil para a
oportunidade de sedução sexual e romântica.
Trabalhar
no dia a dia com pessoas é grande chance de se apaixonar, de usar um
corpo jovem e belo como ferramenta de sedução nas políticas pessoais de
carreira, de negociar boquetes em troca de promoções. A própria economia
da autoestima entra como combustível nesse processo de erotização da
cadeia produtiva.
Enfim,
o sexo no meio do expediente não acabou, ele apenas se transformou num
enorme mercado jurídico e em campanhas de marketing de construção ou
destruição de carreiras.
Uma
das razões para a persistência do interesse pelo sexo no meio do
expediente —para além do fato que somos uma espécie sexuada— é o gosto
infinito e atávico que o público tem por saber da sacanagem na vida das
celebridades. Saber quem come quem move o combate cotidiano contra o
tédio.
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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