Declínio moral, inflação, dívida pública, desigualdade econômica, corrupção, gastos em expansão militar, proposta de congelamento de preços, fissuras culturais e políticas: as mesmas tintas que pintaram a queda do Império Romano em 476 d.C. Bruna Komarchesqui para a Gazeta do Povo:
“É
um dos truísmos da história que impérios erguem-se e caem”, pontua
Niall Ferguson, em seu Colosso - ascensão e queda do império americano.
Admitam os EUA ou não, há um imperialismo americano e é impossível
ignorar que os “dilemas enfrentados pela América hoje têm mais em comum
com aqueles enfrentados pelos últimos césares do que com os enfrentados
pelos Pais Fundadores”, diz.
Declínio
moral, inflação, dívida pública, desigualdade econômica, corrupção,
gastos em expansão militar, proposta de congelamento de preços, fissuras
culturais e políticas: as mesmas tintas que pintaram a queda do Império
Romano em 476 d.C. podem ser usadas para retratar a América atual, e
encarar esses sinais como simples clichê de “declinismo” pode ter um
preço alto. “Não é sensato manter a ficção de que existe algo
completamente único quanto à política externa americana”, acentua
Ferguson.
A
crítica tem razão de ser. No livro O futuro da América, Simon Schama
conta que quase todas as pessoas que ouviu em sua jornada através da
história americana “mais cedo ou mais tarde, invocaram Jefferson ou
DuBois, Teddy Roosevelt ou FDR [Franklin Delano Roosevelt], Reagan ou
Hamilton, como se não houvesse nenhuma distância entre eles e os
YouTubers, o que, em longo prazo, não há. É como se, nos momentos mais
urgentes da decisão americana, o tempo histórico se dobrasse sobre si
mesmo e todos os seus protagonistas formadores estivessem lá, como um
coro fantasmagórico, para testemunhar e instruir”.
Esse
“hábito da história na América” confere um otimismo, como o descrito
por Schama: “por pior que seja a perspectiva, é impossível pensar nos
Estados Unidos em um beco sem saída”. “Isso também os Pais Fundadores
esperavam: que nada estivesse além da reinvenção americana, exceto sua
Constituição, que também, é claro, poderia ser alterada. Mas se o país
sair correndo dos portões de suas várias calamidades com um senso de
renovação nacional impelido pelo fogo, será porque seu povo se baseia
incessantemente nas vidas e sabedorias de seus ancestrais.”
Mas
é preciso olhar para a História. Se a experiência de Roma é a primeira
que emana quando se pensa em queda de império, os Estados Unidos
espelham bastante a Grã-Bretanha de um século atrás, na opinião de Naill
Ferguson. “Os americanos preferem tirar lições da história dos Estados
Unidos, mas pode ser mais esclarecedor comparar o país com seu
antecessor como hegemônico global anglófono, pois os Estados Unidos hoje
em muitos aspectos se assemelham à Grã-Bretanha no período entre
guerras”, analisa o escritor.
Guerras,
crises financeiras, pandemia (de gripe espanhola) e uma “montanha de
dívidas” marcavam a nação britânica na primeira década do século XX.
“Embora o país continuasse sendo o emissor da moeda global dominante,
não era mais incomparável nesse papel. Uma sociedade altamente desigual
inspirou políticos de esquerda a exigir redistribuição, se não
socialismo total. Uma proporção significativa da intelectualidade foi
além, abraçando o comunismo ou o fascismo”, enumera Ferguson.
Economia em crise
Os
problemas econômicos da América pipocam no noticiário. No início deste
ano, a dívida pública dos Estados Unidos ultrapassou US$ 30 trilhões,
pela primeira vez na história, segundo dados do Departamento do Tesouro.
O aumento foi de quase US$ 7 trilhões em relação a janeiro de 2020,
pouco antes da pandemia. Na tentativa de conter a pior inflação dos
últimos 40 anos, o Federal Reserve (Fed), Banco Central dos Estados
Unidos, elevou em 0,5% ponto percentual as taxas de juros, maior aumento
em mais de duas décadas.
Em
maio, senadores do Partido Democrata propuseram um projeto de controle
de preços, proibindo que empresas com receitas iguais ou maiores que US$
100 milhões vendam produtos ou serviços “a um preço exorbitante”. A
medida lembra o dito dos Preços Máximos, do imperador romano
Diocleciano, no ano 301, que resultou em uma desastrosa escassez de
produtos e serviços.
Ameaça chinesa
O
avanço da China - que pode ultrapassar o PIB dos EUA em alguns anos,
caso o cenário se mantenha - tem efeitos que já começam a ser sentidos
dentro do próprio “quintal”. De acordo com uma análise feita pela
agência de notícias Reuters, a China cresceu em termos comerciais em
grandes áreas da América Latina, ampliando sua diferença em relação aos
EUA, desde que Joe Biden assumiu a presidência do país. A agência
analisou dados de 2015 a 2021 e constatou que, tirando o México, a China
ultrapassou os EUA na América Latina em 2017 e ampliou essa diferença
no ano passado.
Segundo
o levantamento, as importações e exportações entre países
latino-americanos e a China chegaram a quase US$ 247 bilhões em 2021 (em
2015, eram menos de US$ 175 bilhões). Já com os EUA os fluxos
comerciais totais foram de US$ 174 bilhões no ano passado (contra quase
US$ 195 bilhões em 2015).
Se
há um consenso entre republicanos e democratas, afirma o filósofo e
economista Francis Fukuyama, é que a China representa uma ameaça aos
valores democráticos. Nesse sentido, ele defende que Taiwan (cobiçada
pela China) deve ser um teste mais profundo para a política externa
americana que o Afeganistão.
Niall
Ferguson concorda com o risco de uma “guerra desnecessária”, envolvendo
Taiwan, da mesma forma que Churchill considerou a Segunda Guerra
Mundial, que poderia ter sido evitada caso as democracias ocidentais
tivessem tomado medidas mais decisivas no começo dos anos 1930. Para o
historiador, a China não é imparável, assim como não eram Alemanha,
Itália e Japão.
“Se
a dissuasão americana falhar e a China apostar em um golpe de Estado,
os Estados Unidos enfrentarão a dura escolha entre travar uma guerra
longa e dura – como a Grã-Bretanha fez em 1914 e 1939 – ou desistir,
como aconteceu em Suez, em 1956”, projeta.
Pressão externa ou implosão?
Autor
do famoso ensaio O fim da história, Francis Fukuyama, está entre os que
defendem que o pior inimigo dos EUA está dentro e não além-território.
“As fontes de longo prazo da fraqueza e do declínio americanos são mais
domésticas do que internacionais”, afirma. Para ele, o país não
recuperará (nem deveria aspirar) seu status hegemônico, mas pode seguir
como uma grande potência “por muitos anos”. O grau de influência global,
porém, vai depender mais da capacidade de resolver problemas internos
do que da política externa.
“A
sociedade americana está profundamente polarizada e tem achado difícil
encontrar consenso sobre praticamente qualquer coisa. Essa polarização
começou em torno de questões políticas convencionais como impostos e
aborto, mas desde então se transformou em uma luta amarga sobre
identidade cultural. A exigência de reconhecimento por parte de grupos
que se sentem marginalizados pelas elites foi algo que identifiquei há
30 anos como um calcanhar de Aquiles da democracia moderna. Normalmente,
uma grande ameaça externa, como uma pandemia global, deve ser a ocasião
para os cidadãos se reunirem em torno de uma resposta comum; a crise da
Covid-19 serviu para aprofundar as divisões da América, com
distanciamento social, uso de máscaras e agora vacinas sendo vistas não
como medidas de saúde pública, mas como marcadores políticos”, pontua
Fukuyama.
Esse
imperativo de “recuperar o senso de identidade nacional e propósito”,
defendido por Fukuyama, faz eco ao que Simon Schama afirma sobre a
necessidade de “cuidar uns dos outros” no “infortúnio compartilhado”,
como uma condição para a manutenção da sociedade americana. “A
independência americana não será ameaçada pela interdependência
americana”, defende.
Schama
ressalta que “a história americana sempre foi um diálogo entre a fé
ilimitada no individualismo heróico de Jefferson e as obrigações de
comunidade mútua expressa por Lincoln e Franklin Roosevelt”. Aliás,
construir “um propósito comum sobre a obstinação do seccionalismo” era, à
época em que escreveu o livro, uma das esperanças do autor sobre o
recém-eleito Barack Obama — o que, o tempo mostrou, acabou não se
concretizando.
Declínio moral
Além
da polarização, o declínio moral também pode ser um fator que
impulsione a implosão americana. No ano passado, o país superou, pela
primeira vez na história, 100 mil casos de overdose por drogas em um
período de 12 meses.
Em
seis estados (Alasca, Colorado, Nova Jersey, Novo México, Oregon e
Vermont) e no Distrito de Colúmbia, o aborto é legal em todas as fases
da gestação.
Em
seu clássico Declínio e queda do Império Romano, Edward Gibbon atribui
ao cristianismo um papel na queda de Roma. Nos EUA a religiosidade em
queda - quase um quarto da população declarava não ter filiação
religiosa em 2018 (em 1972, o percentual era de 5%) - também deixa
antever suas consequências.
No
começo dos anos 1990, a ligação da identidade americana com a fé
começou a se romper. “No século 21, ‘não religioso’ tornou-se uma
identidade americana específica – que distingue brancos seculares e
liberais da direita conservadora e evangélica”, afirma o jornalista
Derek Thompson, do The Atlantic.
Em
um artigo para o Spectator, o médico australiano Graham Pinn, afirma
que “o declínio da religião resultou em sua substituição por mudanças
climáticas, Black Lives Matter e pseudo-religiões #MeToo [movimento
contra assédio e agressão sexual], enquanto o advento da Covid
interferiu ainda mais nos relacionamentos normais e acentuou as visões
extremistas”.
“O
cânone ocidental foi baseado no cristianismo, casamento, direitos de
propriedade, liberdade de expressão e democracia; enquanto sua evolução
vem de mudanças graduais nos padrões éticos. A abolição da escravatura, a
melhoria dos direitos das mulheres, a liberdade sexual e a eliminação
da discriminação racial evoluíram nos últimos 200 anos no Ocidente. Com
essa evolução, a influência tradicional do cristianismo caiu de 70% para
cerca de 40%, e a probabilidade de os casais se casarem caiu de 80%
para cerca de 15%. Douglas Murray, em seu livro The Slow Death of Europe
[A morte lenta da Europa], comentou que, apesar de a igualdade ter sido
alcançada em todas essas áreas, o ativismo exige ainda mais mudanças,
mudanças que pretendem minar nossa cultura”, critica.
Democracia em risco
No
mês passado, o presidente dos EUA, Joe Biden, afirmou que, após sua
eleição para a Casa Branca, foi alertado pelo ditador chinês, Xi
Jinping, que as democracias estão morrendo e darão lugar às autocracias.
"Ele disse que as democracias não podem ser sustentadas no século XXI,
as autocracias governarão o mundo. Por quê? As coisas estão mudando tão
rapidamente. As democracias exigem consenso, e isso leva tempo, e você
não tem tempo", revelou Biden, durante seu discurso para a turma de
formandos da Academia Naval dos EUA, no fim de maio.
Biden
usou a guerra na Ucrânia para argumentar que “Xi [está] errado”.
Segundo o presidente americano, na tentativa de “finlandizar” a Europa o
que Vladimir Putin conseguiu foi “otanizar” o continente. "Estamos
vendo o mundo se alinhar não em termos geográficos - leste e oeste,
Pacífico e Atlântico, mas em termos de valores. A América lidera não
apenas pelo exemplo de seu poder, mas pelo poder de seu exemplo. Pense
no motivo pelo qual a maioria das nações concordou em nos apoiar",
afirmou Biden. "A ferramenta mais poderosa é nossa rede incomparável de
alianças globais e a força de nossa parceria", disse aos presentes.
Diante
do declínio do império americano, analistas acreditam mais em um mundo
multipolar, o que seria um “estado mais normal” na visão de Fukuyama, do
que em apenas uma nação tomando a posição de superpotência. Nesse novo
contexto, ele afirma que os EUA seguem tendo um importante papel:
“sustentar, com países que pensam da mesma forma, uma ordem mundial
amiga dos valores democráticos”.
Olhando
para a História e para um possível confronto com a China por Taiwan,
Niall Ferguson alerta para o risco de que o declínio da América não seja
tão pacífico. “Talvez seja hora de encarar o fato que Churchill
entendeu muito bem: o fim do império raramente é um processo indolor”.
A
respeito do futuro da América, Simon Schama, o historiador inglês que
gosta de ressaltar que passou mais da metade da vida nos Estados Unidos,
é mais otimista. “Ainda quero que as coisas corram bem para este país e
para aquela parte cada vez menor do mundo que olha para ele, apesar da
evidência de sua decadência e quase colapso, em busca de inspiração e
renovação. E apesar de tudo que minha cabeça sabe, meu coração diz que
talvez ocorra.”
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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