BLOG ORLANDO TAMBOSI
Maria Clara Vieira entrevista, para a Gazeta do Povo, o historiador britânico Tom Holland, autor de "Domínio: o cristianismo e a criação da mentalidade ocidental":
Para
qualquer roteirista ou produtor de TV, cinema ou do recém-nascido
universo do streaming, contar a “maior história de todos os tempos” é um
feito a ser perseguido com esmero. Em multiversos cada vez mais
intrincados, grandes empresas apostam em heróis consagrados, para os
quais a luta do bem contra o mal é repaginada uma vez mais. Não é de
hoje que homens e mulheres se interessam por ela, afinal. Histórias
sobre indivíduos sobrenaturais que sobreviveram a desafios mortais para
salvar o universo povoam a imaginação do homem desde antes de seus
primeiros rastros, constituindo a matéria-prima de um fenômeno exclusivo
à espécie: a religião.
Germinada
no coração de uma região inóspita, uma destas histórias contava com um
“plot twist” inusitado. Não era incomum que filhos de deuses fossem
submetidos a experiências terríveis para que, então, tomassem posse de
sua divindade. Era a primeira vez, contudo, que a figura em questão,
adorada como o filho do próprio Deus de Israel, passava longe do
estereótipo conhecido: vivera como um miserável e fora humilhado,
torturado e morto como um delinquente, antes de ressuscitar para a vida
eterna. O resto... Bem. O resto é a história do Ocidente.
"Como
um culto inspirado pela execução de um criminoso obscuro em um império
há muito desaparecido pôde exercer uma influência tão transformadora e
duradoura no mundo?". Foi sobre esta pergunta que o premiado historiador
britânico Tom Holland se debruçou em seu best-seller “Domínio: o
cristianismo e a criação da mentalidade ocidental”, que acaba de chegar
uma versão em português, depois de angariar elogios efusivos de
intelectuais à esquerda e à direita na Europa e nos Estados Unidos.
Frequentemente
confundido no Twitter com seu conterrâneo que dá vida ao Homem-Aranha,
Holland combina erudição, didatismo e elegância na descrição de como o
mais convicto dos progressistas deve – e muito – à Cristandade que
tantos almejam “desconstruir”. Sua própria saga como pesquisador ateu
que se dá conta de que continua imerso em águas cristãs é narrada na
introdução da obra, disponibilizada aos assinantes da Gazeta do Povo
(faça aqui o download do texto).
Leia, abaixo, sua entrevista:
Como
o senhor notou pela primeira vez que, mesmo sendo um historiador ateu,
estava imbuído de valores não apenas associados à religião cristã, mas
de toda uma visão de mundo herdada do cristianismo?
Todo
mundo sabe que quem escreve ficção costuma abordar assuntos que
remontam à sua própria infância e juventude, e acho que o mesmo vale
para a não-ficção. Eu me tornei historiador porque queria transmitir
para os leitores um pouco da empolgação que sentia, quando criança,
quando eu contemplava o mundo do Mediterrâneo Antigo - a Grécia e,
especialmente, Roma. Eu adorava esse universo. Gostava muito mais dos
deuses gregos e estava completamente no time de Pôncio Pilatos ao invés
do de Jesus, sabe? Jesus fazia o tipo perdedor barbudo, e Pilatos usava
uma toga, tinha soldados, era poderoso.
Só
que enquanto eu escrevia sobre Júlio César, ou sobre os espartanos, eu
precisava entrar na cabeça deles. Eu tinha que trazê-los à vida para os
leitores. Como pesquisador, eu queria fazer com que as pessoas realmente
entendessem a forma como eles viam o mundo e sentissem alguma empatia.
Ao mesmo tempo, era uma experiência perturbadora, porque conforme eu
avançava nesse projeto, percebia com cada vez mais clareza o quão
assustadores e impiedosos eles eram.
E
embora os superpredadores sejam sempre fascinantes - não à toa as
pessoas são obcecadas por eles -, você não quer um desses na sua casa.
Assim, comecei a perceber o quão aterradoras eram a Grécia e a Roma
antiga, e comecei a me perguntar por quê. Por que, afinal, o mundo no
qual eu vivo é tão diferente? Comecei a reparar que, essencialmente,
tudo se deve ao que essa grande revolução - o surgimento da Cristandade -
representa.
Isso
ficou ainda mais claro para mim depois de escrever dois dos meus
livros. Um foi sobre o início do segundo milênio na Europa latina [N/E: a
Europa “latina” se refere à parte do continente onde se falava latim].
Embora a Igreja Católica seja predominantemente vista como uma
instituição engessada e conservadora, eu compreendi que a forma como o
papado se estabeleceu na Europa e, portanto, no Ocidente, foi
verdadeiramente revolucionária. Aquilo aguçou em mim o sentido de que a
Cristandade é inerentemente subversiva. Passei a enxergá-la como um
grande encontro de placas tectônicas sobre a qual grandes cidades são
construídas, sabe? Como a cidade de San Francisco e a falha de San
Andreas. Qualquer movimento nestas placas pode pôr tudo abaixo.
Além
disso, escrevi um outro livro sobre o surgimento do Islã. Foi um livro
bastante controverso porque eu questionei profundamente o que os
muçulmanos pensam sobre Maomé e o Alcorão, e como você sabe, as pessoas
são bem sensíveis com relação a isso. E eu me recordo que, certa vez,
enquanto dava uma palestra, havia um muçulmano na plateia que disse “por
que você fez isso? Você nunca questionaria suas próprias crenças desse
jeito”. Achei que era um questionamento justo, inclusive porque eu já
estava questionando as origens das minhas próprias crenças que eram,
basicamente, seculares e progressistas. Escrevi “Domínio” porque comecei
a suspeitar que se eu me perguntasse, de verdade, de onde vinham meus
valores e princípios mais caros, eles me levariam para muito antes do
Iluminismo.
Seu livro chegou ao Brasil com o título "Domínio: o cristianismo e a criação da mentalidade ocidental". Na versão americana, o subtítulo é “como a revolução cristã refez o mundo”. Afinal, o cristianismo é revolucionário ou é uma força que conservadora, que garante estabilidade e continuidade?
Penso
que é as duas coisas. Há um ponto central e revolucionário na
Cristandade: ela acredita que um único momento na história funciona como
uma espécie de eixo do próprio tempo. A vida de Cristo, sua morte e
ressurreição compõem um momento na história que explica tudo o que havia
antes e tudo o que virá depois. Por outro lado, é claro que o desejo de
que as coisas voltem a ser como eram é um instinto absolutamente
primário na história da Cristandade, bem como a ideia de que você
precisa nascer de novo, de que seu pecado precisa ser redimido.
Se,
como ocorreu na Europa no século XI em um nível que não se reproduziu
em nenhum outro lugar do mundo, propaga-se a ideia de que toda a
sociedade precisa ser limpa, purificada e renascida, temos a receita
para uma revolução. E, como você sabe, os radicais revolucionários de
uma época se tornam os conservadores de outra. Os rebeldes que constroem
a Igreja Católica romana no século XI se transformam na hierarquia que
Lutero e os reformadores protestantes querem derrubar no século XVI.
Então, as igrejas católicas e protestantes se tornam o “repositório de
superstições” que os ícones do Iluminismo criticam no século XVIII.
Parte
do paradoxo da história da Cristandade é o fato de que, porque o
cristianismo é tão hegemônico - mais pessoas praticam o cristianismo do
que qualquer outro tipo de visão de mundo -, quando ele é alvo de
críticas, geralmente elas partem de razões cristãs, ainda que os
críticos não percebam. Quando dizem que “os últimos devem se tornar os
primeiros”, estão, obviamente, fazendo referência às palavras de Cristo.
Fala-se
o tempo todo no "declínio da civilização ocidental". O senhor encerra
seu livro afirmando que a Cristandade permanece sendo a Cristandade. Com
base na sua visão do cristianismo, o senhor acredita que a ideia de uma
civilização ocidental é uma idealização do passado ou há algo nela que
está, de fato, morrendo, e que precisa ser salvo?
O
termo “Cristandade” surge justamente no século XI, com o objetivo de
descrever a mentalidade do povo cristão. Então, é claro que ela tem uma
conotação ocidental, e eu penso que, no Ocidente, essa cultura cristã
permanece tão viva e vibrante quanto sempre foi. As convulsões que estão
acontecendo neste momento nos Estados Unidos e nos países influenciados
por eles me parecem um novo espasmo daquele momento revolucionário do
século XVI: uma reforma absolutamente calcada na nossa herança cristã.
Simultaneamente, o cristianismo está se espalhando com uma velocidade
incrível na África, no leste da Ásia e mesmo no Brasil, através dos
evangélicos pentecostais.
Eu
diria, inclusive, que há duas grandes forças revolucionárias na esfera
religiosa no século XXI: uma delas é o islamismo radical, que é bastante
evidente, e a outra é o pentecostalismo que cresce sob a superfície e
também é convulsivo. Então, continuo a acreditar que é impossível
entender o Ocidente sem entender o cristianismo. Contudo, é claro que há
aspectos do que nós chamamos de “decadência do Ocidente” que tem mais a
ver com declínio de seu poder econômico, militar e cultural.
Isso não deriva, em algum nível, da decadência da Cristandade?
Na
verdade, eu diria que essa batalha deveria servir para mostrar às
pessoas o quão cristãos são os pressupostos do Ocidente. Veja: um dos
grandes trunfos do poder ocidental é o de disfarçar pressupostos
cristãos - que são, culturalmente, muito específicos - como universais.
Os direitos humanos universais consagrados pela ONU são um exemplo óbvio
disso. Todos nós aceitamos que esses direitos simplesmente existem,
eles servem para todo mundo. Repare que agora que o Ocidente está em
recuo, eles não parecem tão óbvios: basta olhar para a China ou para
qualquer outra parte do mundo que não aceite as ideias ocidentais.
Outro
exemplo é o secularismo, que é uma invenção absolutamente cristã.
Quando os britânicos dizem que “fizeram da Índia uma república laica”,
ou quando o marechal Kemal Ataturk derrubou o Império Otomano e declarou
que “agora a Turquia é uma república laica”, eles estão assumindo que a
ideia de um Estado laico é algo universal, simples, que hoje entendemos
que não é. Assim, conforme o poder ocidental recua, vemos Narendra Modi
na Índia, ou Recep Tayyip Erdogan na Turquia. Perceba como a própria
compreensão do “secular” é, especificamente, cristã. Portanto, à medida
que o poder ocidental se retrai, a compreensão do que é secular também
ficará sob pressão.
O
legado do cristianismo está sempre no coração das guerras culturais. O
que o senhor quer dizer quando afirma que há heranças cristãs dos dois
lados?
Você
está certa quando diz que todo o universo das guerras culturais está
enraizado em diferentes interpretações do cristianismo. O aborto é um
exemplo clássico: a ideia de que toda vida é sagrada é fundamental para a
tradição cristã. Ela explica a abolição do infanticídio no mundo
romano, que era uma prática corriqueira. Por outro lado, o que muita
gente ignora é que a ideia de que todo ser humano tem uma integridade
corporal a qual tem o direito de controlar também é uma ideia cristã
muito fundamental.
O
que eu entendo que aconteceu desde a década de 1960, certamente nos
Estados Unidos e em suas “colônias” culturais, é que, embora seus
instintos tenham permanecido cristãos, parte da doutrina, dos
ensinamentos e das escrituras foram esquecidos, de modo que estes
instintos foram por caminhos bastante estranhos aos padrões do
cristianismo.
O
debate sobre as questões envolvendo os direitos dos transexuais é outro
bom exemplo. Por que as pessoas tendem a ter sentimentos tão intensos
com relação a este assunto? Os defensores dos direitos trans sentem que
essas pessoas representam o grupo mais oprimido, que sofreu os piores
preconceitos. São, portanto, os “últimos que devem virar os primeiros”.
Também penso que, em certa medida, os crescentes clamores por se
identificar como trans ou gênero fluido derivam de um desejo de se
identificar com os mais fracos – quase como São Francisco ao trocar sua
riqueza pelas vestes rudes de um pobre. É um impulso cristão bastante
reconhecível.
Mas,
é claro, a ideia de que homens e mulheres são diferentes é um princípio
absolutamente fundamental ao cristianismo que está por trás dos
impulsos conservadores tradicionais ou mesmo das feministas. Há também
toda a compreensão de que o corpo humano foi criado por Deus: a tradição
gnóstica, que ensina que todo o corpo é mau, nunca fez parte da fé
cristã ortodoxa. A essência do corpo sempre foi incrivelmente importante
para a Cristandade. Trata-se, portanto, de uma discussão sobre o que é
mais importante: identificar-se com aqueles que são fracos ou com o fato
de que homens e mulheres foram criados separadamente. Mas como a
discussão não é mais enquadrada em termos cristãos, suas expressões
estão se tornando cada vez mais... Inovadoras.
Em
“Domínio”, o senhor faz várias referências a uma “nova ordem” no mundo;
uma completa reorganização dos atores políticos e culturais. Chamou
minha atenção porque, entre os conservadores cristãos, há uma grande
preocupação com o estabelecimento de uma "nova ordem mundial". A julgar
pelo seu livro, parece que já houve dezenas de “novas ordens”. O que os
cristãos aprenderam com as que vimos até agora?
Novamente,
isso nos leva de volta ao quão diferente e estranho para nós é o mundo
pré-cristão. Desde sempre, a novidade é vista com desconfiança: não à
toa os cristãos são tratados com tanta suspeita no mundo romano,
especialmente por serem tão novos. Mesmo os judeus possuíam raízes
antigas e, portanto, eram respeitados como um povo tradicional. Eis que,
então, surge um grupo religioso que não se identifica com nenhum povo
em particular, reivindicando crenças universais. Isso é radicalmente
novo, é profundamente inquietante.
Acontece
que, uma vez que a ideia de uma identidade universal se tornou tão
comum ao Ocidente, é muito difícil para nós imaginar um mundo no qual as
coisas não estão sempre mudando. O impulso revolucionário não é visto
simplesmente como algo perigoso e intolerável. Mesmo as figuras mais
conservadoras do século XXI, da Revolução Francesa ou da Reforma não se
dão conta de que foi o próprio cristianismo que forneceu, pela primeira
vez, a sensação de que as coisas nasceram de novo, de que há uma nova
configuração no mundo, uma nova aliança.
Além
disso, é impossível haver uma sociedade sem elites. A própria
existência delas, cedo ou tarde, gera uma reação, especialmente quando
se está numa sociedade fundada em princípios cristãos. No fim, os
revolucionários se tornam o establishment, que se torna opressivo e
desperta a revolta pelas mesmas razões cristãs. Trata-se de um processo
atemporal, uma revolução que dá voltas e mais voltas – e da qual os
cristãos sempre fizeram parte.
O
senhor defende firmemente que os direitos humanos derivam do
cristianismo. Hoje, contudo, há cristãos que associam direitos humanos
ao secularismo e defensores dos direitos humanos que pregam a
“desconstrução” do cristianismo. Como construir essa ponte?
A
origem da ideia de direitos humanos está na Igreja Católica do século
II. É extremamente revelador que, quando os espanhóis chegam ao novo
mundo, a tradição forneça a base para crença de que os povos nativos
possuem direitos. Quando os exploradores espanhóis quiseram se opor a
ela, tiveram que se basear em ideias pré-cristãs de que existem escravos
“naturais”.
Mais
tarde, os protestantes também desenvolvem sua forma própria de
argumentar que todos os seres humanos gozam dos mesmos direitos, a
partir de tradições surgidas na Inglaterra do século XVII e que serão
importadas para os Estados Unidos e para o Congresso de Viena, realizado
ao final das guerras napoleônicas do século XIX. O movimento
abolicionista, bem como a noção de direito internacional, surgiu desta
ideia de que há algo que está acima das diferenças culturais que
costumavam dividir católicos e protestantes. Só assim a Grã-Bretanha, a
Espanha, a França e Portugal conseguem falar a mesma língua.
Sobre
estabelecer conversas: como não sou um político ou um sociólogo, não
tenho nenhuma visão específica sobre como essas feridas podem ser
curadas – ou mesmo se elas podem ser curadas. Eu, particularmente,
apostaria no reconhecimento de como opiniões aparentemente muito
díspares e contraditórias são, na verdade, geradas a partir da mesma
matriz, são rastros do mesmo processo cultural. Talvez seja uma forma de
reconhecer que as diferenças em nossas sociedades não são tão
fundamentais quanto talvez as pessoas possam pensar. No fim das contas,
estamos todos nadando nas mesmas águas.
O
senhor já escreveu que ninguém seria “woke” se o Ocidente não fosse
cristão. É uma frase bastante polêmica. O que quer dizer com ela?
Note
que a própria expressão “woke” significa “acordar”, e a ideia de
despertar para a consciência de seu próprio pecado e a necessidade de
arrependimento é fundamental para o protestantismo anglo-americano ao
longo dos séculos XVIII e XIX.
A
ideia de que você pode ter um relacionamento pessoal com Deus sem a
necessidade de um sacerdote, que o espírito descerá sobre você e você
será redimido do pecado é muito, mas muito protestante. São essas as
crenças que foram exportadas para a América, produzindo o ciclo de
“grandes despertares” nos quais multidões se reuniam para ler a Bíblia e
ouvir pregações. Tudo isso culminou do Movimento pelos Direitos Civis
das décadas de 1950 e 1960 liderados pelo reverendo Martin Luther King,
cuja linguagem é absolutamente cristã.
O
que aconteceu desde então é que, embora o impulso para o despertar e o
arrependimento permaneçam, o contexto especificamente cristão se foi.
Sem a referência às Escrituras que o originaram, ele se torna
controverso. Possuídas pelo espírito secular, as pessoas acreditam que
seus corações foram abertos, elas enxergaram a verdade e estão
enfurecidas com os que não a enxergam. E, uma vez que a herança cristã
de que todos são pecadores foi abandonada, estão reimpondo as categorias
raciais que King e seus companheiros trabalharam tão duro para
dissolver.
Lembre-se
que um dos elementos que leva ao abolicionismo é, justamente, a escala
com a qual ele é testemunhado nas Américas. Embora a escravidão fosse um
fenômeno global, ela nunca havia sido imposta na forma como os
britânicos e americanos fizeram, e de forma racializada. E, ainda que
houvesse tentativas de justificar a escravidão por meio da religião,
essas desculpas nunca colaram de verdade: é muito, muito difícil para um
cristão com conhecimento da Bíblia, que acredita que o homem é feito à
imagem e semelhança de Deus, sustentar a ideia de que uma raça pode ser
inferior a outra.
Mas
assim que a abolição acontece, o darwinismo emergente fornece ao
imperialismo racial uma nova justificativa para o seu poder – um
argumento que, obviamente, no século XX levará ao Holocausto. É irônico
como a excessiva concentração na diferença entre as raças corra o risco
de importar uma ideia do século XIX, que não existia até então.
Estamos
testemunhando, em algumas partes do mundo, o crescimento de correntes
tradicionalistas: o aumento da procura por missas em latim, por exemplo,
ou a rejeição à modernidade e ao liberalismo, especialmente no Oriente.
A que o senhor atribui esse fenômeno?
Conforme
já comentamos, as civilizações cristãs sempre abrigaram estes dois
impulsos contraditórios. Primero, o de olhar para trás e lamentar pelo
tempo em que as coisas eram melhores, quando todo o mundo era católico,
ou, para os protestantes, para os tempos da Igreja primitiva, antes que
cardeais sinistros chegassem e bagunçassem tudo com suas bugigangas. Ao
mesmo tempo, há esse instinto revolucionário age como se um espírito
tivesse possuído você e te impelido a reformar o mundo.
Em
uma explicação bastante reducionista, eu diria que a Igreja Católica,
geralmente, está mais interessada em manter suas tradições, enquanto o
protestantismo tende a se entregar ao espírito do tempo e ver onde dá.
Mas percebo que, em certo sentido, as tendências opostas são, de fato,
as mais vibrantes dentro das próprias religiões: seja na forma de
pessoas voltando às missas em latim ou orando em línguas.
Isso
é um reflexo do fato de que vivemos em uma época na qual tudo está
mudando tão rápido que, de certo modo, as opções mais “emocionantes”
sejam embarcar no discurso “yeah, vamos mudar tudo, uhul” ou “meu Deus,
deu tudo errado, vamos voltar”. Novamente, acho que daqui a 200 anos os
historiadores vão olhar para este período que estamos vivendo desde a
década de 1960 como a segunda reforma da Cristandade. E é muito difícil
estar no centro de uma reforma, praticamente não existe a opção “me
deixe quieto no meu canto”. No fim, trata-se do quando você aguenta o
chacoalhão sem cair para um dos lados.
Última
pergunta. Talvez o senhor já tenha ouvido de algum parente querido que
"grandes poderes vêm com grandes responsabilidades"...
Ah, não. Nunca ouvi essa frase (risos).
Eu precisava fazer essa piada. Desculpa.
Tudo
bem. Foi muito original. Já faz algum tempo desde que ouvi pela última
vez em 463 antes de Cristo. Mas como o perdão é uma virtude cristã, eu
te desculpo.
Muito
obrigada. O que eu queria saber é: na sua opinião, qual é o grande
poder do cristianismo, e qual é, atualmente, sua maior responsabilidade?
Eu
realmente acredito que o grande poder subversivo, inesperado e
inestimável do cristianismo é o reconhecimento de que o fraco pode
vencer o forte. Que a vítima pode ser maior do que o opressor. É uma
proposta tão contra intuitiva, tão radicalmente oposta a tudo o que veio
antes dela. Você sabe, a cruz, para os romanos, era um cruel
instrumento de tortura, e servia como símbolo desse poder. O
cristianismo vira esse significado de ponta cabeça. Sua grande
responsabilidade reside no fato de que ele tem sido, e presumivelmente
continuará sendo por um longo tempo, a maneira mais eficaz e mais
culturalmente aceita de explicar por que os seres humanos nascem, por
que o mundo existe. Isso é de um poder inestimável e, como você diz, ou
outra pessoa por aí disse, com grandes poderes vêm, mesmo, grandes
responsabilidades.


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