MEDIÇÃO DE TERRA

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MEDIÇÃO DE TERRAS

sábado, 11 de junho de 2022

"Che não tinha nada de heroico"

 



O militar boliviano Gary Prado conta, em entrevista para Crusoé, como capturou o guerrilheiro Che Guevara:


Aos 29 anos, o capitão Gary Prado Salmón comandou a operação que capturou o argentino Ernesto Che Guevara, ícone esquerdista, perto do vilarejo de La Higuera, na Bolívia, em 8 de outubro de 1967. “No momento da captura, ele era um homem acabado, desmoralizado. Alguns me perguntam o que eu senti quando fiquei frente a frente com Che Guevara. O que eu senti foi pena, lástima. Che não tinha nada de heroico”, diz Gary Prado. Sob custódia, o guerrilheiro pediu que o capitão guardasse dois relógios Rolex que levava consigo. Horas depois, o então presidente boliviano, René Barrientos, ordenou a execução do prisioneiro. “Abriram a porta e atiraram. Não teve nenhuma despedida ou explicação”, diz Prado.

Um dos relógios Rolex permaneceu com o militar por vários anos, até que Bolívia e Cuba reataram relações diplomáticas, em 1982. Ele então mandou a peça para a família do guerrilheiro, acompanhado de uma carta, mas não recebeu nenhum retorno para saber se o relógio chegou mesmo ao seu destino.

General aposentado, hoje com 83 anos, Gary Prado dá aulas de relações internacionais na Universidade Tecnológica Privada de Santa Cruz, no leste da Bolívia. No começo desta semana, ele esteve na Feira Internacional do Livro daquela cidade, para lançar a quinta edição de sua obra A Guerrilha Imolada, que inclui atualizações sobre as razões que empurraram Che para o interior da Bolívia.

Segue a entrevista:

Como explicar que, 55 anos depois da morte de Che Guevara, ainda haja interesse em saber como ele foi morto?

Muitas pessoas agora estão se dando conta do significado daqueles eventos e pensam o que poderia ter acontecido com a Bolívia se a revolução tivesse triunfado por aqui. Estaríamos como Cuba, como a Venezuela, em uma situação extremamente difícil. Nossa democracia e nossa liberdade teriam sido seriamente afetadas. Muitos jovens estão comprando o livro e pedindo algumas explicações históricas. Eu tenho falado com eles e eles ficam fascinados.

Esse interesse histórico tem relação com a atual situação da Bolívia, em que a democracia também está sob ameaça?

Claro. É possível fazer uma comparação entre a nossa realidade e a daqueles dias. Mais uma vez, temos pessoas querendo fazer do país um aliado de Cuba. Desejam ficar bajulando o russo Vladimir Putin, assim como acontecia com a União Soviética. Muita coisa mudou em meu país desde que o Movimento ao Socialismo, o MAS, partido de Evo Morales, chegou ao poder, em 2006. Nossas relações exteriores foram destruídas. Perdemos totalmente nossa independência e demos de obedecer às ordens de Havana. Mas as pessoas que fizeram essas coisas não representam o sentimento da população nacional.


O agente da CIA Félix Rodriguez, à esquerda, com Che Guevara, em 1967Nesta quinta edição do seu livro, o sr. acrescentou alguma coisa?

Sim. Agora ficou mais claro que Che Guevara foi enviado para fazer uma revolução no Congo, na África, porque não o aguentavam mais em Cuba. A Cúpula do Partido Comunista pressionou Fidel Castro para que fizesse isso, porque Che era considerado um elemento nocivo. Quando ele estava na África, Fidel tornou pública a carta de renúncia de Che, falando que ele abria mão formalmente dos cargos no Partido Comunista, do posto de ministro, da patente de comandante e da cidadania cubana. Fidel fez isso em uma daquelas reuniões grandes que aconteciam nessa época. Um dos guerrilheiros que estava com Che na África nesse momento, Daniel Alarcon, comentou a jornais europeus que Che ficou furioso quando ouviu Fidel lendo sua carta na rádio Havana. Alarcon considerou que foi uma traição e contou que Che deu socos no aparelho e falou: “Veja até onde vai o culto à personalidade“. Depois que saiu do Congo, Che foi para a Tanzânia e para Praga, na então Tchecoslováquia. Ele fez esse giro todo porque não podia voltar para Cuba. Depois de muito insistir, ele conseguiu que Fidel o aceitasse. Mas voltou clandestinamente, com outra identidade. Então, mandaram ele para a Bolívia, com uma equipe de profissionais cubanos. Mas os cubanos sabiam que o grupo não teria chances de sucesso na Bolívia. Ao chegar aqui, a pessoa que era o contato do guerrilheiro em La Paz foi para Cuba. Eles o deixaram totalmente abandonado. Em resumo, Che foi sacrificado. É por isso que meu livro se chama A Guerrilha Imolada. Queriam se livrar dele.

Por quê?

Os cubanos entenderam que Che teria mais serventia morto do que vivo. Queriam explorar sua figura como mártir, ídolo. E o argentino também sabia que suas condições militares eram praticamente nulas. Em1961, ele publicou um livro chamado Guerra de Guerrilhas. É a Bíblia dos guerrilheiros, em que ele descreve quais devem ser os seus princípios e as suas técnicas. Quando se olha o que o grupo de Che realizou por aqui, fica claro que eles fizeram exatamente o contrário do que ele pregava. Estavam condenados ao fracasso.

Eles tinham consciência de que não tinham chances?

Quando o grupo de Che já estava bem reduzido, com poucos sobreviventes depois de vários combates, seus membros disseram para Che que era melhor acabar com aquilo e dispersar, com cada um indo para o seu lado. Che então disse: “Não há razão para continuar sem sentido”. A verdade é que ele não tinha para onde ir. Quem poderia recebê-lo? Em qual país? Ele achou melhor marchar para o sacrifício.

O que ele disse no momento de sua morte?

Não foi nada como: “Pátria ou morte, venceremos”. O que falou foi: “Não me matem, sou o Che. Valho mais vivo do que morto”. O instinto de sobrevivência foi mais forte.

O que ele levava consigo?

Tinha uma carabina, inutilizada por um disparo. Também levava uma pistola sem munição. Não tinha armas, portanto. Carregava ainda uma bolsa de couro com documentos, um diário e algum dinheiro. Quando eu me aproximei dele, ele me disse que lhe tinham roubado dois relógios Rolex. Eu chamei o soldado que o tinha ajudado a andar e pedi que ele devolvesse os pertences. Che olhou as peças e falou: “Você sabe que a qualquer momento vão roubar de novo esses relógios. Então é melhor que você os guarde”. No dia seguinte, ele foi executado.


“O que eu senti foi pena, lástima”

O que aconteceu com os relógios?

Depois de alguns anos, quando foram retomadas as relações entre Cuba e Bolívia, em 1982, recebi uma visita do cônsul cubano. Nós conversamos e eu disse a ele que estava com um dos relógio de Che e gostaria de enviá-lo a sua família. Escrevemos uma carta para um ministro e mandamos o relógio para a ilha.

E o relógio chegou até a família de Che?

Não sei se cumpriram com o prometido. Não recebi qualquer informação.

Então o sr. se arrependeu de ter mandado o relógio?

Não. Eu não precisava de um troféu.

Por que eram dois relógios, não um?

O outro pertencia a Tuma, um guerrilheiro que tinha morrido em um combate anterior. Mas eu só fiquei com o do Che. O outro eu dei a um coronel.

Che mostrou alguma coragem ao ser pego?

No momento da captura, ele era um homem acabado, desmoralizado. Alguns me perguntam o que eu senti quando fiquei frente a frente com Che Guevara. O que eu senti foi pena, lástima. Che não tinha nada de heroico. Nós o tratamos bem. Demos comida e alguns cigarros. Conversamos com ele. Não era necessário fazer nenhum interrogatório. Então, ele melhorou um pouco e perguntou o que aconteceria com ele. Eu disse que ele seria julgado em um tribunal militar, na Oitava Divisão, em Santa Cruz. Isso melhorou seu estado de ânimo, pois antes estava completamente deprimido. Ao amanhecer, eu saí de La Higuera porque ainda havia um grupo de guerrilheiros na região. Quando voltei, depois do meio-dia, já o tinham executado. Abriram a porta e atiraram. Não teve nenhuma despedida ou explicação. A ordem chegou do comandante das Forças Armadas, pelo rádio.

O sr. foi acusado de terrorismo e separatismo durante o governo de Evo Morales na Bolívia. O que houve?

Isso aconteceu porque Morales era um fanático por Che Guevara. Em 2009, teve início um processo contra um grupo de pessoas acusadas de terrorismo. Um ano depois, eles me incluíram entre os acusados, por ordem de Evo Morales. O presidente queria que eu fosse colocado como um dos cabeças de uma organização criminosa. Mas eu nem sequer conhecia as outras pessoas envolvidas. Aquilo foi uma vergonha para a Justiça. Fiquei dez anos em prisão domiciliar, até que o Judiciário entendeu, em 2020, que a acusação não fazia sentido e me absolveu totalmente.

O sr. não tem medo de sofrer outra acusação como essa?

Não. Eles sabem que não vão me subjugar. Eu sigo na minha linha de conduta, a mesma que sempre mantive. Sou crítico quando é preciso ser crítico. Eu escrevo, publico, comento. Não tenho medo algum.

Qual é hoje o objetivo de Evo Morales?

Ele está desesperado, porque é um sujeito doente da cabeça. Evo está preocupado com a possibilidade de perder o controle de seu partido e, com isso, não poder se candidatar para a eleição presidencial de 2025. Mas, dentro do MAS (o partido de Evo Morales), ele já está sendo marginalizado, isolado. Evo está buscando manter alguma autoridade de qualquer jeito. Mas o presidente Luis Arce Catacora não se importa mais com ele, nem os demais ministros. Seus antigos colaboradores na polícia, que foram nomeados para combater o narcotráfico, foram presos justamente por tráfico de drogas. Morales é o cabeça dessa rede criminosa, que tem contatos no Brasil e no Peru. Há uma pressão muito grande dos Estados Unidos para que seja feita uma acusação contra ele. Evo Morales está desesperado.
 
BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

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