O militar boliviano Gary Prado conta, em entrevista para Crusoé, como capturou o guerrilheiro Che Guevara:
Aos
29 anos, o capitão Gary Prado Salmón comandou a operação que capturou o
argentino Ernesto Che Guevara, ícone esquerdista, perto do vilarejo de
La Higuera, na Bolívia, em 8 de outubro de 1967. “No momento da captura,
ele era um homem acabado, desmoralizado. Alguns me perguntam o que eu
senti quando fiquei frente a frente com Che Guevara. O que eu senti foi
pena, lástima. Che não tinha nada de heroico”, diz Gary Prado. Sob
custódia, o guerrilheiro pediu que o capitão guardasse dois relógios
Rolex que levava consigo. Horas depois, o então presidente boliviano,
René Barrientos, ordenou a execução do prisioneiro. “Abriram a porta e
atiraram. Não teve nenhuma despedida ou explicação”, diz Prado.
Um
dos relógios Rolex permaneceu com o militar por vários anos, até que
Bolívia e Cuba reataram relações diplomáticas, em 1982. Ele então mandou
a peça para a família do guerrilheiro, acompanhado de uma carta, mas
não recebeu nenhum retorno para saber se o relógio chegou mesmo ao seu
destino.
General
aposentado, hoje com 83 anos, Gary Prado dá aulas de relações
internacionais na Universidade Tecnológica Privada de Santa Cruz, no
leste da Bolívia. No começo desta semana, ele esteve na Feira
Internacional do Livro daquela cidade, para lançar a quinta edição de
sua obra A Guerrilha Imolada, que inclui atualizações sobre as razões
que empurraram Che para o interior da Bolívia.
Segue a entrevista:
Como explicar que, 55 anos depois da morte de Che Guevara, ainda haja interesse em saber como ele foi morto?
Muitas
pessoas agora estão se dando conta do significado daqueles eventos e
pensam o que poderia ter acontecido com a Bolívia se a revolução tivesse
triunfado por aqui. Estaríamos como Cuba, como a Venezuela, em uma
situação extremamente difícil. Nossa democracia e nossa liberdade teriam
sido seriamente afetadas. Muitos jovens estão comprando o livro e
pedindo algumas explicações históricas. Eu tenho falado com eles e eles
ficam fascinados.
Esse interesse histórico tem relação com a atual situação da Bolívia, em que a democracia também está sob ameaça?
Claro.
É possível fazer uma comparação entre a nossa realidade e a daqueles
dias. Mais uma vez, temos pessoas querendo fazer do país um aliado de
Cuba. Desejam ficar bajulando o russo Vladimir Putin, assim como
acontecia com a União Soviética. Muita coisa mudou em meu país desde que
o Movimento ao Socialismo, o MAS, partido de Evo Morales, chegou ao
poder, em 2006. Nossas relações exteriores foram destruídas. Perdemos
totalmente nossa independência e demos de obedecer às ordens de Havana.
Mas as pessoas que fizeram essas coisas não representam o sentimento da
população nacional.

O
agente da CIA Félix Rodriguez, à esquerda, com Che Guevara, em
1967Nesta quinta edição do seu livro, o sr. acrescentou alguma coisa?
Sim.
Agora ficou mais claro que Che Guevara foi enviado para fazer uma
revolução no Congo, na África, porque não o aguentavam mais em Cuba. A
Cúpula do Partido Comunista pressionou Fidel Castro para que fizesse
isso, porque Che era considerado um elemento nocivo. Quando ele estava
na África, Fidel tornou pública a carta de renúncia de Che, falando que
ele abria mão formalmente dos cargos no Partido Comunista, do posto de
ministro, da patente de comandante e da cidadania cubana. Fidel fez isso
em uma daquelas reuniões grandes que aconteciam nessa época. Um dos
guerrilheiros que estava com Che na África nesse momento, Daniel
Alarcon, comentou a jornais europeus que Che ficou furioso quando ouviu
Fidel lendo sua carta na rádio Havana. Alarcon considerou que foi uma
traição e contou que Che deu socos no aparelho e falou: “Veja até onde
vai o culto à personalidade“. Depois que saiu do Congo, Che foi para a
Tanzânia e para Praga, na então Tchecoslováquia. Ele fez esse giro todo
porque não podia voltar para Cuba. Depois de muito insistir, ele
conseguiu que Fidel o aceitasse. Mas voltou clandestinamente, com outra
identidade. Então, mandaram ele para a Bolívia, com uma equipe de
profissionais cubanos. Mas os cubanos sabiam que o grupo não teria
chances de sucesso na Bolívia. Ao chegar aqui, a pessoa que era o
contato do guerrilheiro em La Paz foi para Cuba. Eles o deixaram
totalmente abandonado. Em resumo, Che foi sacrificado. É por isso que
meu livro se chama A Guerrilha Imolada. Queriam se livrar dele.
Por quê?
Os
cubanos entenderam que Che teria mais serventia morto do que vivo.
Queriam explorar sua figura como mártir, ídolo. E o argentino também
sabia que suas condições militares eram praticamente nulas. Em1961, ele
publicou um livro chamado Guerra de Guerrilhas. É a Bíblia dos
guerrilheiros, em que ele descreve quais devem ser os seus princípios e
as suas técnicas. Quando se olha o que o grupo de Che realizou por aqui,
fica claro que eles fizeram exatamente o contrário do que ele pregava.
Estavam condenados ao fracasso.
Eles tinham consciência de que não tinham chances?
Quando
o grupo de Che já estava bem reduzido, com poucos sobreviventes depois
de vários combates, seus membros disseram para Che que era melhor acabar
com aquilo e dispersar, com cada um indo para o seu lado. Che então
disse: “Não há razão para continuar sem sentido”. A verdade é que ele
não tinha para onde ir. Quem poderia recebê-lo? Em qual país? Ele achou
melhor marchar para o sacrifício.
O que ele disse no momento de sua morte?
Não
foi nada como: “Pátria ou morte, venceremos”. O que falou foi: “Não me
matem, sou o Che. Valho mais vivo do que morto”. O instinto de
sobrevivência foi mais forte.
O que ele levava consigo?
Tinha
uma carabina, inutilizada por um disparo. Também levava uma pistola sem
munição. Não tinha armas, portanto. Carregava ainda uma bolsa de couro
com documentos, um diário e algum dinheiro. Quando eu me aproximei dele,
ele me disse que lhe tinham roubado dois relógios Rolex. Eu chamei o
soldado que o tinha ajudado a andar e pedi que ele devolvesse os
pertences. Che olhou as peças e falou: “Você sabe que a qualquer momento
vão roubar de novo esses relógios. Então é melhor que você os guarde”.
No dia seguinte, ele foi executado.

“O que eu senti foi pena, lástima”
O que aconteceu com os relógios?
Depois
de alguns anos, quando foram retomadas as relações entre Cuba e
Bolívia, em 1982, recebi uma visita do cônsul cubano. Nós conversamos e
eu disse a ele que estava com um dos relógio de Che e gostaria de
enviá-lo a sua família. Escrevemos uma carta para um ministro e mandamos
o relógio para a ilha.
E o relógio chegou até a família de Che?
Não sei se cumpriram com o prometido. Não recebi qualquer informação.
Então o sr. se arrependeu de ter mandado o relógio?
Não. Eu não precisava de um troféu.
Por que eram dois relógios, não um?
O
outro pertencia a Tuma, um guerrilheiro que tinha morrido em um combate
anterior. Mas eu só fiquei com o do Che. O outro eu dei a um coronel.
Che mostrou alguma coragem ao ser pego?
No
momento da captura, ele era um homem acabado, desmoralizado. Alguns me
perguntam o que eu senti quando fiquei frente a frente com Che Guevara. O
que eu senti foi pena, lástima. Che não tinha nada de heroico. Nós o
tratamos bem. Demos comida e alguns cigarros. Conversamos com ele. Não
era necessário fazer nenhum interrogatório. Então, ele melhorou um pouco
e perguntou o que aconteceria com ele. Eu disse que ele seria julgado
em um tribunal militar, na Oitava Divisão, em Santa Cruz. Isso melhorou
seu estado de ânimo, pois antes estava completamente deprimido. Ao
amanhecer, eu saí de La Higuera porque ainda havia um grupo de
guerrilheiros na região. Quando voltei, depois do meio-dia, já o tinham
executado. Abriram a porta e atiraram. Não teve nenhuma despedida ou
explicação. A ordem chegou do comandante das Forças Armadas, pelo rádio.
O sr. foi acusado de terrorismo e separatismo durante o governo de Evo Morales na Bolívia. O que houve?
Isso
aconteceu porque Morales era um fanático por Che Guevara. Em 2009, teve
início um processo contra um grupo de pessoas acusadas de terrorismo.
Um ano depois, eles me incluíram entre os acusados, por ordem de Evo
Morales. O presidente queria que eu fosse colocado como um dos cabeças
de uma organização criminosa. Mas eu nem sequer conhecia as outras
pessoas envolvidas. Aquilo foi uma vergonha para a Justiça. Fiquei dez
anos em prisão domiciliar, até que o Judiciário entendeu, em 2020, que a
acusação não fazia sentido e me absolveu totalmente.
O sr. não tem medo de sofrer outra acusação como essa?
Não.
Eles sabem que não vão me subjugar. Eu sigo na minha linha de conduta, a
mesma que sempre mantive. Sou crítico quando é preciso ser crítico. Eu
escrevo, publico, comento. Não tenho medo algum.
Qual é hoje o objetivo de Evo Morales?
Ele
está desesperado, porque é um sujeito doente da cabeça. Evo está
preocupado com a possibilidade de perder o controle de seu partido e,
com isso, não poder se candidatar para a eleição presidencial de 2025.
Mas, dentro do MAS (o partido de Evo Morales), ele já está sendo
marginalizado, isolado. Evo está buscando manter alguma autoridade de
qualquer jeito. Mas o presidente Luis Arce Catacora não se importa mais
com ele, nem os demais ministros. Seus antigos colaboradores na polícia,
que foram nomeados para combater o narcotráfico, foram presos
justamente por tráfico de drogas. Morales é o cabeça dessa rede
criminosa, que tem contatos no Brasil e no Peru. Há uma pressão muito
grande dos Estados Unidos para que seja feita uma acusação contra ele.
Evo Morales está desesperado.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
.jpg)
Nenhum comentário:
Postar um comentário