BLOG ORLANDO TAMBOSI
Joseph
Raz, nascido em 1939 e falecido recentemente, foi um dos mais
importantes teóricos políticos e do direito dos últimos cinquenta anos.
Correndo o risco de alguma simplificação, podemos dizer que o trabalho
de Raz cobriu três grandes tópicos da filosofia: a filosofia do direito
(em livros como The Authority of Law e Between Authority and
Interpretation), a filosofia política (por exemplo, em The Morality of
Freedom e Ethics in the Public Domain) e a filosofia da razão prática,
em conjunção com a teoria da ação (como em Practical Reason and Norms e
no recente The Roots of Normativity). O engajamento de Raz com esses
temas não foi fragmentário. Suas discussões sobre estes três grandes
tópicos são conectadas umas com as outras, e apesar de se aproximar ou
se afastar de um ou outro destes temas ao longo de sua vida, Raz
continuou refletindo sobre eles de uma forma ou de outra. Por exemplo,
seu primeiro grande livro, Practical Reason and Norms, de 1975, é sobre
razão prática (isto é, sobre como funcionam as razões que temos para
fazer alguma coisa). Seu último livro, de fevereiro de 2022, The Roots
of Normativity, continua a discutir o mesmo tema, ainda que com outros
enfoques. Ambos os livros, de 1975 e de 2022, impactam nosso
entendimento sobre como nosso uso da razão se relaciona com o direito.
Neste
pequeno texto, pretendo apresentar de maneira resumida a contribuição
de Raz para nossa compreensão do fenômeno da autoridade[1].
O que significa dizer que algo ou alguém é uma autoridade? Em nossa
vida cotidiana, navegamos em meio à noções rudimentares de autoridade.
Dizemos que o agente de trânsito tem autoridade, que os pais tem
autoridade, que o Congresso tem autoridade, e assim por diante. O que
isso significa? Por trás dessa diversidade de afirmações (sobre agentes
de trânsito, pais, Congresso) existe a mesma ideia de autoridade? Mais
importante ainda, essas autoridades são justificáveis? A última pergunta
colocada levanta aquilo que Robert Paul Wolff chamou de “conflito entre
autoridade e autonomia”[2].
A marca de uma pessoa madura, autônoma, nos diz Wolff, é a capacidade
agir de acordo com o que considera correto, com o próprio pensamento. A
existência de uma autoridade que nos diz o que fazer conflita com essa
marca de maturidade. Caso sigamos a autoridade (e não nossa própria
capacidade de julgamento), deixamos de ser autônomos. Eis o que Wolff
diz: “A
marca que define o Estado é a autoridade, o direito de governar. A
obrigação primária do homem é a autonomia, a recusa a ser governado.
Parece, então, que não pode haver resolução do conflito entre a
autonomia do indivíduo e a autoridade putativa do Estado.”[3]
A
estratégia de Raz para enfrentar o tipo de conflito levantado por Wolff
tem, a meu ver, duas etapas. Primeiramente, precisamos entender melhor
como as razões que temos para agir de um modo ou de outro funcionam. Em
nosso caso, como uma diretiva dotada de autoridade funciona em nosso
raciocínio prático? Em segundo lugar, precisamos entender quando uma
autoridade é justificada em seu exercício. Uma coisa é entender como
autoridades funcionam, outra é entender se elas tem o direito de
funcionar.
Sobre o primeiro ponto, Raz retoma uma distinção célebre de Thomas Hobbes, a distinção entre ordens, pedidos e conselhos[4].
Quando prestamos atenção à esses diferentes tipos de enunciados, vemos
que eles funcionam de maneira distinta em nossas vidas. Conselhos
parecem adicionar coisas novas ao nosso processo deliberativo. Caso eu
te aconselhe a não sair em uma vizinhança perigosa sozinho, o que estou
fazendo é fornecer a você novos elementos em cima dos quais você pode
articular o que vai fazer. Pedidos funcionam de maneira parecida, porém
mais direta. Quando eu peço algo a você, o que estou comunicando é que
eu gostaria que você fizesse esse algo, mas por si só, um pedido não é
uma ordem ou comando. Caso eu te peça para trazer algo do mercado e você
acabe por se esquecer, é natural que eu fique chateado, mas isso é
bastante diferente do tipo de reação envolvida no descumprimento de uma
ordem[5].
É
na discussão sobre como funcionam ordens que Raz conecta seu trabalho
sobre razão prática com seu trabalho sobre autoridade. Quando recebemos
uma ordem de alguma autoridade, nós não a tratamos em nossa deliberação
da mesma forma que tratamos pedidos. Respostas usuais a pedidos, como
“Vou pensar sobre isso” ou “Vou ver o que posso fazer” ficam fora de
contexto quando enunciadas em relação a ordens. Basta pensar na reação
de um policial ouvindo “Vou pensar sobre isso” a sua ordem para que você
encoste o carro. Raz quer chamar a atenção para o fato de ordens terem
uma estrutura diferente.
Como
assim? Segundo Raz, nem todas as razões que temos funcionam da mesma
maneira. Muitas de nossas razões são de “primeira ordem”, ou seja, são
razões que nós mobilizamos mais ou menos diretamente em nossas
deliberações. Por exemplo, a fome que sinto enquanto escrevo este texto é
uma razão para pedir um hamburguer (ou seja, uma razão para ação). Ao
mesmo tempo, o fato de ter ganho peso recentemente é uma razão para não
pedir um hamburguer (outra razão para ação). Essas razões conflitam de
maneira clara. Outras razões, como por exemplo, a ordem de meu chefe
para que eu escreva um relatório, funcionam de maneira distinta.
Presumivelmente, eu deveria escrever o relatório porque fui comandado de
tal forma.
Uma
ordem ou comando de autoridade consiste naquilo que Raz chamou de
“razão protegida”: além de apontar para um curso de ação, uma razão
protegida também demanda que eu não aja de acordo com o que quer que
seja que eu ache melhor, mas sim de acordo com a ordem. Nos termos
técnicos de Raz, uma razão protegida é composta por uma razão de
primeira ordem (para fazer ou não fazer algo) com uma razão de segunda
ordem, cuja aplicação não é diretamente sobre nossas ações, mas sim
sobre outras razões. No caso, uma razão de segunda ordem que exclui o
apelo a outras razões na hora de decidir o que fazer (uma “razão
excludente”). Trata-se de uma tese bastante controversa[6],
mas note como ela nos ajuda a entender a gramática da autoridade.
Quando um soldado obedece uma ordem, ele justifica sua conduta ao se
reportar à ordem, e não ao seu próprio balanço de razões. Inclusive, um
soldado que trata as ordens que recebe como apenas considerações
adicionais sobre o que ele deveria fazer seria considerado um mau
soldado (é importante mencionar que Raz introduz uma série de limitações
à teoria, como o escopo que uma diretiva dotada de autoridade tem, mas
não tenho condições de discuti-las aqui).
Tudo
que Raz fez até este ponto no argumento foi mostrar a gramática da
autoridade, como a autoridade funciona. Até agora, nada foi dito sobre
quando ela é justificada. A justificação da autoridade é a segunda etapa
no argumento. Raz elabora uma sofisticada teoria para a justificação da
autoridade, a “tese da justificação normal”, discutida extensivamente
em The Morality of Freedom, provavelmente seu livro mais importante. Em
minha interpretação, a tese da justificação normal é um argumento sobre
as condições de legitimidade de uma autoridade, sobre quando ela tem o
direito de emitir diretivas dotadas de autoridade como explicamos
anteriormente. Segundo Raz:
“[…]
a maneira normal de se estabelecer que uma pessoa tem autoridade sobre
outra envolve demonstrar que o sujeito [à autoridade] mais provavelmente
irá seguir as razões que se aplicam a ele (razões outras além das
diretivas que aspiram ser dotadas de autoridade) se ele aceitar as
diretivas da aspirante à autoridade como vinculantes e tentar segui-las,
em vez de tentar seguir as razões que se aplicam a ele diretamente.”[7]
A
formulação é bastante abstrata, mas pode ser compreendida em termos
mais simples. Todos nós temos uma infinidade de razões atuando em nossas
vidas. O exercício de autoridade é justificado se e somente se nos
auxilia a agir de acordo com as razões que temos. Eis uma ilustração do
que Raz tem em mente. Todos nós temos razões para dirigirmos de maneira
segura. Segurança no trânsito, no entanto, não é o tipo de coisa que
conseguimos obter sem que existam diretivas dotadas de autoridade. Na
medida em que queremos segurança no trânsito e as diretivas da
autoridade nos auxiliam a ter essa segurança, essa autoridade é
justificada. Nesse cenário simplificado, aquiescer com as diretivas da
autoridade é uma forma de agir de acordo com as razões que eu tenho.
Outros exemplos são fáceis de pensar. Eu tenho um quadro de rinite
alérgica que me causa bastante incômodo e que gostaria de ver
controlado. Aquiescer com as diretivas de um médico competente vai me
ajudar a servir as razões que eu já tinha. O médico é, portanto, uma
autoridade legítima, ainda que limitada a um aspecto muito específico da
minha vida (minha saúde respiratória).
O
potencial revolucionário da teoria raziana é fácil de ignorar. Ao cabo,
uma autoridade só se justifica se for capaz de nos ajudar a agir de
acordo com as razões que temos. É um ponto bastante controverso saber
que razões (realmente) temos, mas perceba que a tese de Raz significa
que nenhuma autoridade tradicional ou já estabelecida faticamente (“de
facto”) é legítima se não desempenhar esse papel. É óbvio que em muitas
(talvez na maioria) situações vamos acabar obedecendo a autoridades
ilegítimas por questões prudenciais, de comodidade e assim por diante,
mas disso não se segue que elas são justificadas. De fato, Raz
explicitamente nega que exista, por exemplo, um dever geral de
obediência ao direito.
De
volta ao conflito entre autonomia e autoridade. O que Raz fez? A
análise mais nuançada de razões que ele apresentou (com razões de
primeira e segunda ordem, razões protegidas, razões excludentes, etc)
nos permitiu entender melhor a gramática da autoridade, ou seja, como
ela funciona em nossas vidas. A análise das condições de legitimidade da
autoridade (a partir da tese da justificação normal) nos permitiu
entender quando a autoridade tem direito de emitir diretivas que
funcionem da maneira que descrevemos. Essas construções teóricas, por
sua vez, permitem que o conflito entre autonomia e autoridade seja
compreendido de uma maneira muito mais sútil. Não é que não aconteça
nunca de autoridades de facto conflitarem com as demandas de autonomia
do indivíduo. No entanto, nos casos nos quais a autoridade é legítima, o
conflito não ocorre precisamente porque a autoridade legítima auxilia o
indivíduo a seguir as razões que ele tinha. Nesse sentido, autoridades
legítimas servem à autonomia do indivíduo.
O
legado de Raz para nossa compreensão do fenômeno da autoridade é
complexo: de um lado, Raz nos ajuda a superar as dicotomias simplistas
entre autonomia e autoridade a partir de uma melhor compreensão de como
funcionam as diretivas dotadas de autoridade. De outro, sua teoria nos
lega recursos para uma espécie de anarquismo político muito mais rico
filosoficamente, afinal, a legitimidade de uma autoridade vai depender
de seu relacionamento com as razões que permeiam nossas vidas. Essa
autoridade nos auxilia a seguir as razões que temos, ou agimos melhor se
a desconsiderarmos? Quando e como devemos obedecer a autoridades não é
algo que as próprias autoridades possam decidir. Ironicamente, a melhor
teoria disponível sobre o que é e como se justifica a autoridade acaba
por concluir que a autoridade nunca tem a palavra final.
Notas:
[1]
O presente texto baseia-se em parte no segundo capítulo de minha
dissertação apresentada para obtenção de título de Mestre na
Universidade de São Paulo: Em meio a Tempestade: Valoração e Descrição
na Teoria do Direito, financiada pela Fundação de Amparo a Pesquisa do
Estado de São Paulo-FAPESP, proc. Nº 2016/06243-0.
[2]
WOLFF, Robert Paul. In Defense of Anarchism. Berkeley: University of
California Press, 1998. Eu discuto o desafio de Wolff (e uma potencial
resposta a partir de outro pensador, Peter Winch), em “A ideia de
autoridade no pensamento de Peter Winch”, publicado na revista Direito,
Estado e Sociedade, 2021.
[3] WOLFF, Robert Paul. In Defense of Anarchism. Berkeley: University of California Press, 1998, pp. 18.
[4] RAZ, Joseph. Legitimate Authority. In The authority of law: essays on law and morality. Oxford: Clarendon Press, 1979.
[5] Em termos técnicos, dizemos que um conselho adiciona uma “razão para acreditar” e que um pedido adiciona uma “razão para ação”.
[6]
Ver, por exemplo, os seguintes trabalhos críticos ao argumento de Raz:
MIAM, Emran. The Curious Case of Exclusionary Reasons. Canadian Journal
of Law and Jurisprudence 15, 99-124, 2002; HURD, Heidi. Challenging
Authority. Yale Law Journal, Vol. 100: 1611-1677, 1991; Gur, Noam. Legal
Directives in the Realm of Practical Reason: A Challenge to the
Pre-emption Thesis. The American Journal of Jurisprudence, Vol. 52:
159-228, 2007.
[7] RAZ, Joseph. The Morality of Freedom. Oxford: Clarendon Press, 1986, pp. 53.
Daniel
Peixoto Murata é Doutor em Filosofia do Direito pela University of
Surrey (Reino Unido), Mestre pela Faculdade de Direito da Universidade
de São Paulo (FDUSP) e Bacharel pela mesma instituição. Foi bolsista
pela Faculty of Arts and Social Sciences (FASS) da University of Surrey e
pela FAPESP.
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