Via Crusoé, a crônica semanal de Ruy Goiaba:
Eu juro que não é implicância
com a Folha: para quem não sabe, o jornal é minha alma mater, mais que a
universidade que cursei (“eu vim de lá, eu vim de lá pequenininho”).
Passei muitos anos ali, publiquei a coluna de Ruy Goiaba por bastante
tempo no F5 e tenho até amigos que são de lá — ou tinha; é provável que,
a esta altura, eles já tenham desistido. Mas parece que a turma tem se
empenhado em fornecer pautas para esta coluna, pelo que agradeço. A mais
recente está em uma reportagem publicada na semana passada, sob o
título “Escorregões de Lula em linguagem inclusiva viram alvo de aliados
e rivais”.
O
que foram os tais “escorregões”? Cito ipsis litteris a Folha, que
descreve o “desconforto” na base do petista: “As queixas, geralmente
feitas em privado para não respingar na candidatura, giram em torno do
uso de palavras como ‘índio’ (em vez de indígena) e ‘escravo’ (no lugar
de escravizado) e de referências que contrariam, por exemplo, os
veganos, com repetidas alusões a churrasco e picanha. Outro problema
apontado é um termo com conotação sexual no bordão de Lula sobre ter 76
anos de idade, mas ‘tesão de 20’. Sob anonimato, uma apoiadora diz que,
embora o presidenciável faça uma associação com sua energia política, o
termo soa depreciativo para o conjunto das mulheres.”
É
tanto absurdo que não sei nem por onde começar — e quero deixar claro
que não estou atirando no mensageiro: parto do princípio de que os
repórteres só retrataram a realidade, por mais surreal que ela seja.
Vocês conseguem imaginar Lula — ex-operário, ex-sindicalista, com quase
80 anos na cara e precisando de dezenas de milhões de votos num país
como o Brasil — se policiando para não falar em “churrasco” e ferir
suscetibilidades veganas? Levando sermão porque “o certo é
‘escravizado’” (importação daquele “debate” bem americano sobre slave e
enslaved)? E, Deus do céu, desde quando “tesão” é depreciativo para
mulheres? Mulher não tem tesão? Prefere escolher parceiro (parceira,
parceire, parceirx, seja lá o que for) em uma comunidade de eunucos,
para evitar ser depreciada?
Pelo
que se depreende da reportagem da Folha, os críticos do ex-presidente
são magnânimos: até toleram o fato de ele se dirigir aos ouvintes como
“meus amigos e minhas amigas” (o que, de resto, Sarneyzão da massa já
fazia com seu “brasileiros e brasileiras” há quase 40 anos), em vez de
recorrer à “linguagem neutra” e sair dizendo por aí coisas como todes e
amigues. Em compensação, problematizam — não estou brincando — o fato de
Lula ter chamado Gleisi Hoffmann de “galega”. Não consigo imaginar
nenhum lugar em que “galega” possa ser considerado termo ofensivo, com
exceção da Catalunha, talvez.
O
texto ainda nos informa que as redes bolsonaristas fizeram a festa com
falas como a da apresentadora do evento que oficializou a chapa
Lula-Geraldo Alckmin, no dia 7 de maio (“quero aqui fazer um
escurecimento, ou esclarecimento”). Ora, mas alguém tem alguma dúvida de
que isso é levantar uma bola redonda para bolsominion cortar? Nem
entro, aqui, no mérito da etimologia freestyle, tirada daquele lugar que
não posso citar numa revista de família como a Crusoé, com sua invenção
de que palavras e expressões como “criado-mudo” e “feito nas coxas” têm
origem racista. Seria um parêntese gigante, do tamanho de uma coluna
inteira — aliás, talvez eu escreva sobre isso um dia.
O
que quero é chamar a atenção para esse traço bem brasileirinho, e bem
subdesenvolvido, de importar toda e qualquer moda do exterior, por mais
estúpida ou mais fora de lugar que ela seja no contexto do Bananão. Vale
para as duas pontas da boa e velha ferradura ideológica: à direita,
aquela turma que se acha embaixadora da National Rifle Association (só
falta invocar the right to keep and bear arms, em inglês mesmo) e está
prontinha para imitar a invasão do Capitólio se Jair Bolsonaro perder.
E, à esquerda, aquele povo sempre antenado na última moda em baboseira
identitária que estiver bombando na metrópole. Esse tipo de discussão,
luxo de país com alto IDH e necessidades básicas dos habitantes
resolvidas, fica ainda mais ridículo num lugar em que meia população
caga no mato (pardon my French). E trocar “escravo” por “escravizado”
não mudará em um milímetro o racismo e a violência associada a ele no
Brasil.
Dois anos atrás, escrevi aqui mesmo
que estava cansado de ouvir/ler a expressão “complexo de vira-lata” e
argumentei que o brasileiro precisava, ao contrário, parar de se
considerar um ser de exceção. Hoje, admito que estava procurando o tal
complexo no lugar errado: ele não só existe como sua vira-latice se
manifesta plena e ruidosamente na importação de tudo quanto é bugiganga
mental (dos Euá ou da China, conforme o gosto do freguês). Deixem a
gente continuar brincando com os espelhinhos que os gringos nos mandam:
afinal, transformar o Bananão num país minimamente habitável dá muito
trabalho. Deus nos livre.
***
A GOIABICE DA SEMANA
Uma
vereadora bolsonarista de Londrina, cujo nome obviamente não vou
publicar aqui para não gerar engajamento (se estiverdes curiosos, oh
leitores, procurai e encontrareis), protocolou um projeto de lei para
proibir a venda de “produtos alimentícios em formato de órgãos sexuais
humanos” na cidade do Paraná. Eu só lamento que a proibição não se
estenda a animais como cavalos e baleias (“ah, como era grande!”) e,
sobretudo, que esse projeto de lei não englobe o que o Casseta &
Planeta chamava de vegetais de duplo sentido: seria divertido ver os
pobres londrinenses tendo que se deslocar até Maringá para comprar
berinjelas, batidas policiais encontrando pepinos e cenouras em lugares
recônditos nas casas dos “elementos”, repressão ao tráfico de bananas
etc.
r
Como diria o poeta, eu não quero mais pepino, nem do grosso nem do fino
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