MEDIÇÃO DE TERRA

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MEDIÇÃO DE TERRAS

domingo, 1 de maio de 2022

Ladeira escorregadia: aceitamos a relativização da lei ao sabor da política.

 

BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

Cometemos o pecado capital de disciplinar a opinião a partir do Estado. Fernando Schüler para a revista Veja:


Chegamos a uma curiosa situação. O centro do jogo político não opõe governo e oposição, como é comum nas democracias, mas o governo e a Suprema Corte. A guerra jurídica, e não a disputa de ideias e projetos, dá o tom do debate público. Tomando-se apenas a primeira metade do mandato, o atual governo já teve mais ações contra si, no Supremo, por parte da oposição, do que Lula, Dilma e Temer juntos. E foi de 33% para 78% o porcentual das ações julgadas no mesmo ano em que foram ajuizadas. Governistas dizem que a oposição quer inviabilizar o governo; oposicionistas dizem que há um “legalismo autoritário” nas suas ações, e que é preciso reagir. Talvez isso tudo seja um sintoma. O mundo político reage a incentivos, e percebe que há um caminho aberto de oposição ao governo no mundo jurídico. Ninguém sinalizou isso com mais ênfase, nos últimos meses, do que o ministro Barroso, acusando repetidamente o presidente das mais variadas ameaças à democracia.

A própria retórica em torno da democracia foi instrumentalizada no jogo político. De um universo plural, pertencente a todos, ela passa a uma condição dual: há os de dentro, os verdadeiramente democratas, e essa gente “inaceitável”, com a qual não cabe dialogar, e sim combater. Tornamos a política um jogo de soma zero. Fosse um vezo pueril das redes sociais, já teríamos um problema. Penetrando no terreno das instituições, temos um problema maior ainda, que em boa medida explica os impasses que estamos vivendo. No plano do direito, fomos aceitando que a Constituição e as leis passassem a ser interpretadas a partir da urgência política do momento. A democracia constitucional demanda que as leis sejam permanentemente interpretadas e compatibilizadas. A pergunta essencial é sobre o modo e a extensão em que isso é feito. Se a Constituição diz que é “vedada” a reeleição dos presidentes da Câmara e do Senado, é possível que quase metade de nossa Corte Suprema tenha votado para dizer que ela era possível? Pois é, foi o que aconteceu. Se a Constituição diz que um presidente que sofre impeachment deve ser inabilitado a funções públicas por oito anos, é possível que ele ainda assim mantenha seus direitos políticos? Foi o que aconteceu.

Algum tempo depois, achamos perfeitamente razoável que nossa Suprema Corte decidisse que “crimes cometidos nas dependências do Supremo” equivaleriam a crimes cometidos na internet inteira. Com base nisso consideramos igualmente razoável que o tribunal instaurasse um inquérito funcionando como vítima, investigador, acusador e juiz. Muita gente protestou. O senador Randolfe Rodrigues chegou a anunciar que pediria o impeachment do ministro Alexandre de Moraes. Isso em 2019. Logo que a ação do Supremo mirou o lado “certo”, por acaso o dos inimigos do senador, ele rapidamente mudou de ideia. O que era um “retrocesso completo”, “esgarçamento sem precedentes das instituições”, passou a ser um bastião na “defesa da democracia”. De novo, nada disso nos surpreendeu.

Achamos o.k. que há mais de dois anos pessoas são investigadas e punidas pelo crime de fake news, inexistindo crime de fake news no Brasil, a não ser em casos específicos, no período eleitoral. Tramita um projeto, no Congresso, sobre o tema, que não deve ser votado neste ano. Enquanto isso a “inverdade”, o discurso “contra a democracia”, seja isso o que for, vão gerando seus efeitos como tipos penais informais. Assustados com a “corrosão da democracia”, fomos aceitando muitas coisas. A volta da censura prévia, da censura econômica contra canais digitais, a proibição de que um deputado fale a uma rádio, a supressão de matérias “inconvenientes” em revistas. Abrimos mão de um princípio republicano elementar quando se decidiu “escolher a dedo”, na expressão do ex-ministro Marco Aurélio Mello, o relator do inquérito das fake news. Aceitamos que a vítima ou o ofendido, em um processo, fosse ao mesmo tempo seu julgador, e achamos perfeito que um deputado tenha o seu mandato cassado pelo Poder Judiciário, quando a Constituição é explicita: “a perda do mandato será decidida pela Câmara dos Deputados, por maioria absoluta”.

Não seria de se esperar, neste país tropical, que alguém perdesse muito o sono com direitos individuais, com a “regra abstrata e impessoal” ou com algum tipo de garantismo. O problema é que corremos na direção oposta. Como numa ladeira escorregadia, aceitamos passo a passo a relativização da lei, ao sabor da política, ou de um certo “intuicionismo jurídico”, como li dias atrás. A lei, que deveria ser a espinha dorsal da República, foi sendo ajustada ao sabor das consequências que se julgou urgente produzir. O conjunto da obra é o mundo da incerteza e da instabilidade crônica, no qual nos encontramos.

Diante de um político errático e de traço autoritário como Bolsonaro, o pior cenário é precisamente o descrédito da lei, a sua politização, a perda do sentido de imparcialidade de nossas mais altas instâncias de Justiça. O respeito à regra do jogo será sempre o melhor antídoto contra qualquer um, ou qualquer ação, que ameace a democracia. Quanto às políticas públicas, seja na educação, seja no meio ambiente, é preciso ser claro: elas podem configurar uma “tragédia”, como lemos por aí. Há boas razões para isso. Segundo o PoderData, 53% dos eleitores pensam nessa direção, dizendo que o governo é “péssimo”, e 29% acham o contrário, dizendo que o governo é “ótimo ou bom”. É assim nas democracias. Governos bons e ruins, segundo essa ou aquela visão, ficando a última palavra para os eleitores, nas eleições. Isso nada tem a ver com a estabilidade das leis e instituições de Estado, que não devem oscilar, segundo a opinião pública, nem atender a essa ou àquela ideologia ou simpatia política.

Por fim, cometemos o pecado capital, em uma democracia, que é a recorrente tentativa de disciplinar a opinião a partir do Estado. Essas coisas são complicadas em sociedades abertas, marcadas pela diversidade por vezes “radical” do debate público. A internet trouxe à cena pública temas viscerais, opondo progressistas e conservadores no terreno comportamental, cultural e mesmo estético. O exercício da fala se redefiniu. O exagero, a linguagem hiperbólica, a lógica do espantalho (o “fascismo”, o “comunismo”, o “nazismo”) se tornaram feijão com arroz em nossa democracia tribal. Para quem abomina a exasperação e a banalidade, na arena política, descemos ao inferno. Foi a sensação que muitos tiveram, nos inícios da Era Moderna, quando a comunicação impressa se espalhou pela Europa. Não há o que fazer quanto a isso. Sempre que o Estado decidir ser o “editor de um povo inteiro”, como disse o ministro Dias Toffoli, teremos um problema. Minha única esperança é que, no final disso tudo, tenhamos aprendido essa velha lição.

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
Publicado em VEJA de 4 de maio de 2022, edição nº 2787

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