BLOG ORLANDO TAMBOSI
Cometemos o pecado capital de disciplinar a opinião a partir do Estado. Fernando Schüler para a revista Veja:
Chegamos
a uma curiosa situação. O centro do jogo político não opõe governo e
oposição, como é comum nas democracias, mas o governo e a Suprema Corte.
A guerra jurídica, e não a disputa de ideias e projetos, dá o tom do
debate público. Tomando-se apenas a primeira metade do mandato, o atual
governo já teve mais ações contra si, no Supremo, por parte da oposição,
do que Lula, Dilma e Temer juntos. E foi de 33% para 78% o porcentual
das ações julgadas no mesmo ano em que foram ajuizadas. Governistas
dizem que a oposição quer inviabilizar o governo; oposicionistas dizem
que há um “legalismo autoritário” nas suas ações, e que é preciso
reagir. Talvez isso tudo seja um sintoma. O mundo político reage a
incentivos, e percebe que há um caminho aberto de oposição ao governo no
mundo jurídico. Ninguém sinalizou isso com mais ênfase, nos últimos
meses, do que o ministro Barroso, acusando repetidamente o presidente
das mais variadas ameaças à democracia.
A
própria retórica em torno da democracia foi instrumentalizada no jogo
político. De um universo plural, pertencente a todos, ela passa a uma
condição dual: há os de dentro, os verdadeiramente democratas, e essa
gente “inaceitável”, com a qual não cabe dialogar, e sim combater.
Tornamos a política um jogo de soma zero. Fosse um vezo pueril das redes
sociais, já teríamos um problema. Penetrando no terreno das
instituições, temos um problema maior ainda, que em boa medida explica
os impasses que estamos vivendo. No plano do direito, fomos aceitando
que a Constituição e as leis passassem a ser interpretadas a partir da
urgência política do momento. A democracia constitucional demanda que as
leis sejam permanentemente interpretadas e compatibilizadas. A pergunta
essencial é sobre o modo e a extensão em que isso é feito. Se a
Constituição diz que é “vedada” a reeleição dos presidentes da Câmara e
do Senado, é possível que quase metade de nossa Corte Suprema tenha
votado para dizer que ela era possível? Pois é, foi o que aconteceu. Se a
Constituição diz que um presidente que sofre impeachment deve ser
inabilitado a funções públicas por oito anos, é possível que ele ainda
assim mantenha seus direitos políticos? Foi o que aconteceu.
Algum
tempo depois, achamos perfeitamente razoável que nossa Suprema Corte
decidisse que “crimes cometidos nas dependências do Supremo”
equivaleriam a crimes cometidos na internet inteira. Com base nisso
consideramos igualmente razoável que o tribunal instaurasse um inquérito
funcionando como vítima, investigador, acusador e juiz. Muita gente
protestou. O senador Randolfe Rodrigues chegou a anunciar que pediria o
impeachment do ministro Alexandre de Moraes. Isso em 2019. Logo que a
ação do Supremo mirou o lado “certo”, por acaso o dos inimigos do
senador, ele rapidamente mudou de ideia. O que era um “retrocesso
completo”, “esgarçamento sem precedentes das instituições”, passou a ser
um bastião na “defesa da democracia”. De novo, nada disso nos
surpreendeu.
Achamos
o.k. que há mais de dois anos pessoas são investigadas e punidas pelo
crime de fake news, inexistindo crime de fake news no Brasil, a não ser
em casos específicos, no período eleitoral. Tramita um projeto, no
Congresso, sobre o tema, que não deve ser votado neste ano. Enquanto
isso a “inverdade”, o discurso “contra a democracia”, seja isso o que
for, vão gerando seus efeitos como tipos penais informais. Assustados
com a “corrosão da democracia”, fomos aceitando muitas coisas. A volta
da censura prévia, da censura econômica contra canais digitais, a
proibição de que um deputado fale a uma rádio, a supressão de matérias
“inconvenientes” em revistas. Abrimos mão de um princípio republicano
elementar quando se decidiu “escolher a dedo”, na expressão do
ex-ministro Marco Aurélio Mello, o relator do inquérito das fake news.
Aceitamos que a vítima ou o ofendido, em um processo, fosse ao mesmo
tempo seu julgador, e achamos perfeito que um deputado tenha o seu
mandato cassado pelo Poder Judiciário, quando a Constituição é
explicita: “a perda do mandato será decidida pela Câmara dos Deputados,
por maioria absoluta”.
Não
seria de se esperar, neste país tropical, que alguém perdesse muito o
sono com direitos individuais, com a “regra abstrata e impessoal” ou com
algum tipo de garantismo. O problema é que corremos na direção oposta.
Como numa ladeira escorregadia, aceitamos passo a passo a relativização
da lei, ao sabor da política, ou de um certo “intuicionismo jurídico”,
como li dias atrás. A lei, que deveria ser a espinha dorsal da
República, foi sendo ajustada ao sabor das consequências que se julgou
urgente produzir. O conjunto da obra é o mundo da incerteza e da
instabilidade crônica, no qual nos encontramos.
Diante
de um político errático e de traço autoritário como Bolsonaro, o pior
cenário é precisamente o descrédito da lei, a sua politização, a perda
do sentido de imparcialidade de nossas mais altas instâncias de Justiça.
O respeito à regra do jogo será sempre o melhor antídoto contra
qualquer um, ou qualquer ação, que ameace a democracia. Quanto às
políticas públicas, seja na educação, seja no meio ambiente, é preciso
ser claro: elas podem configurar uma “tragédia”, como lemos por aí. Há
boas razões para isso. Segundo o PoderData, 53% dos eleitores pensam
nessa direção, dizendo que o governo é “péssimo”, e 29% acham o
contrário, dizendo que o governo é “ótimo ou bom”. É assim nas
democracias. Governos bons e ruins, segundo essa ou aquela visão,
ficando a última palavra para os eleitores, nas eleições. Isso nada tem a
ver com a estabilidade das leis e instituições de Estado, que não devem
oscilar, segundo a opinião pública, nem atender a essa ou àquela
ideologia ou simpatia política.
Por
fim, cometemos o pecado capital, em uma democracia, que é a recorrente
tentativa de disciplinar a opinião a partir do Estado. Essas coisas são
complicadas em sociedades abertas, marcadas pela diversidade por vezes
“radical” do debate público. A internet trouxe à cena pública temas
viscerais, opondo progressistas e conservadores no terreno
comportamental, cultural e mesmo estético. O exercício da fala se
redefiniu. O exagero, a linguagem hiperbólica, a lógica do espantalho (o
“fascismo”, o “comunismo”, o “nazismo”) se tornaram feijão com arroz em
nossa democracia tribal. Para quem abomina a exasperação e a
banalidade, na arena política, descemos ao inferno. Foi a sensação que
muitos tiveram, nos inícios da Era Moderna, quando a comunicação
impressa se espalhou pela Europa. Não há o que fazer quanto a isso.
Sempre que o Estado decidir ser o “editor de um povo inteiro”, como
disse o ministro Dias Toffoli, teremos um problema. Minha única
esperança é que, no final disso tudo, tenhamos aprendido essa velha
lição.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
Publicado em VEJA de 4 de maio de 2022, edição nº 2787
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