O bate-boca virtual entre Eduardo Bolsonaro e Luiz Claudio Lula da Silva expõe o filhotismo que iguala Jair Bolsonaro e Lula na pior tradição política brasileira. Claudio Dantas para a Crusoé:
Dias
atrás, usuários do Twitter testemunharam um bate-boca virtual entre
Eduardo Bolsonaro e Luís Cláudio Lula da Silva, o Luleco, em torno do
episódio envolvendo o roubo do celular deste último, por quatro
adolescentes, em São Paulo. “É expropriação que fala? Ou seria mais
adequado 100 anos de perdão?“, provocou o filho 03 de Jair Bolsonaro.
Dois dias depois, o caçula de Lula reagiu: “Dudu bananinha é um ser
desprezível mesmo! Eu não acredito que adolescentes cometam crimes
porque gostam… Eles cometem crimes porque temos um governo federal
omisso, que não liga para a população“, escreveu, justificando
indiretamente declaração anterior em que o próprio pai relativizava o
crime. Luís Cláudio aproveitou o ataque para disparar também contra o
presidente, principal rival de Lula em outubro. “Um patriarca
egocêntrico, incapaz e limitado não teria como criar uma família de
forma decente.” A tréplica veio no dia seguinte, com o deputado federal,
desafiando o filho do petista a se candidatar na política. “Luleco,
você quer mesmo discutir comigo? Candidate-se. Sério mesmo. Eu acho que
você enriqueceria o debate.”
A
troca de mensagens entre os filhos presidenciais, naturalmente, não
enriqueceu e nem enriquecerá o debate público. Por qualquer ângulo que
se olhe, seja intelectual, moral ou empresarial, Eduardo e Luís Cláudio
pouco têm a oferecer à sociedade. Até aqui, apenas se serviram dela.
Como herdeiros da influência política de seus pais, nunca precisaram
suar a camisa para ganhar o próprio sustento, nem deixaram exemplos que
edifiquem suas vidas públicas. Ambos devem as carreiras, tanto na
política como nos negócios, aos respectivos genitores. Foi a partir da
ascensão de Lula ao poder que ‘Luleco’ enveredou pelo marketing
esportivo, chegando a comandar um campeonato nacional de futebol
americano. Mesmo sem audiência ou público relevante, o rapaz conseguiu
atrair patrocínios milionários de grandes grupos empresariais que se
expandiram na gestão petista, como Ambev (via Budweiser), Qualicorp, TNT
(Cervejaria Itaipava) e Grupo CAOA (Hyundai do Brasil). Como revelou a
Lava Jato, a Touchdown, empresa de Luís Cláudio, recebeu ao menos 10
milhões de reais em apoio financeiro. Deste total, 2 milhões de reais
saíram da Odebrecht, que, segundo um delator, atendeu a pedido pessoal
de Lula para ajudar a “lançar” a carreira do caçula.
Foi
também sob a sombra do pai que Fábio Luís Lula da Silva, o Lulinha,
passou de monitor de zoológico a empresário de tecnologia, abrindo um
conjunto de empresas bem sucedidas. Gamecorp, a principal delas, obteve
milionários aportes da Oi, gigante da telefonia beneficiada por um
decreto assinado pelo próprio Lula. Ao todo, a empresa de Lulinha
faturou mais de 317 milhões de reais. “Que culpa tenho eu se meu filho é
o Ronaldinho dos negócios?“, disse o petista, em 2006, ao ser
questionado sobre o repentino sucesso do filho. Até hoje, Lulinha mora
num apartamento de luxo registrado em nome de Jonas Suassuna, seu
ex-sócio, que também aparece como um dos donos formais do sítio de
Atibaia, ao lado de Kalil Bittar, amigo de infância e também sócio de
Lulinha em outras empresas. Há dois anos, Crusoé mostrou que o primogênito do petista mantinha uma vida para lá de confortável,
enquanto se beneficiava de decisões judiciais que engavetaram seus
processos — assim como os de seu irmão mais novo, Luís Cláudio. Na
ocasião, Fábio Luís deixou a Gamecorp e, recentemente, abriu a LLF Tech
Participações, registrada em seu endereço residencial. Apesar de não
haver registro conhecido de qualquer atividade, a empresa tem como
objeto social uma ampla gama de serviços, como suporte técnico, criação
de portais, consultoria, marketing, produção cinematográfica e de
programas de televisão. Luís Cláudio também abriu uma nova empresa, a
Educaremos Agenciamento De Cursos, em sociedade com Maria Beatriz Lula
da Silva, filha de Lurian e neta mais velha do ex-presidente. A sede
está registrada num sobrado em São Bernardo do Campo, sem atividade
aparente. Bia Lula chegou a presidir o PT de Maricá (RJ) e Luleco ficou
até agosto do ano passado abrigado no gabinete do deputado estadual
Emídio de Souza, na Alesp. Nos últimos anos, também seu uniu à
militância petista o neto Thiago Trindade, filho de Marcos Cláudio. Bem
menos ambicioso que os tios, ele abriu uma loja virtual para vender
artigos com a imagem do avô, como camisas e canetas.
Luís Claudio com o pai: patrocínios milionários em empresa de marketing esportivo
No
atual clã presidencial, a história não é tão diferente. Ao longo de
quase três décadas como deputado federal, Jair Bolsonaro usou sua
influência para eleger a ex-mulher Rogéria e os três filhos que teve com
ela: Flávio, Eduardo e Carlos. Montou uma espécie de rede de gabinetes,
que absorveram mais de uma centena de parentes e amigos, movimentando
no período mais de 65 milhões de reais em salários, gratificações e
outros benefícios — cerca de 21 milhões de reais foram pagos a
familiares diretos. Na denúncia, arquivada recentemente pelo Tribunal de
Justiça do Rio, o Ministério Público diz que parte expressiva desse
dinheiro retornou aos cofres da família, por meio de saques dos salários
dos funcionários, pagamentos de contas pessoais e compra de imóveis.
Seguindo o roteiro percorrido por Lulinha, o primogênito dos Bolsonaro
se tornou ‘leading case’ da família, caiu nas garras da Justiça, mas
acabou se livrando dos processos após muita chicana jurídica. No ano
passado, comprou uma mansão de 6 milhões de reais
em Brasília, tirou a carteirinha da OAB para atuar no Distrito Federal e
se aproximou de escritórios de lobby — não necessariamente nesta ordem.
O
irmão Eduardo não ficou para trás. Insatisfeito com a vida de escrivão
de polícia, resolveu entrar para a política em 2014 e não saiu mais. Na
eleição que levou seu pai ao Palácio do Planalto, há quatro anos, foi
eleito deputado federal com a maior votação da história (1,8 milhão de
votos), superando Enéas Carneiro. Aproximou-se de empresários paulistas
de perfil conservador e foi alçado a porta-voz do trumpismo no Brasil.
Em 2019, tentou em vão virar embaixador nos EUA, mas seu passado de
chapeiro de lanchonete não ajudou. Ao defender a indicação do filho para
a embaixada em Washington, Bolsonaro não escondeu suas intenções.
“Pretendo beneficiar um filho meu, sim. Se eu puder dar um filé mignon
para o meu filho, eu dou, sim“, admitiu, numa de suas lives. Vetado
informalmente pelo Senado, o 03 retirou sua candidatura a embaixador e
abandonou a ideia de virar diplomata. Virou representante sul-americano
do ‘The Movement‘,
grupo de extrema-direita criado por Steve Bannon e passou a fazer lobby
para fabricantes de armas e donos de cassinos. Com menos desenvoltura
para os negócios que os irmãos, Carlos Bolsonaro também passou a vida
pendurado na teta do Estado. Eleito vereador com apenas 17 anos, nunca
entrou numa fila de emprego. Três anos depois de assumir o primeiro
mandato, comprou seu primeiro apartamento por 150 mil reais — na
ocasião, seu salário era de apenas 4,5 mil reais. Nos anos seguintes,
adquiriu outros quatro imóveis. O mais recente foi um flat, de 470 mil
reais, em Brasília, pago à vista. Está em seu sexto mandato de vereador e
dedica-se diuturnamente à estratégia digital do pai, tendo sido
apontado por investigações parlamentares e judiciais como chefe do
‘gabinete do ódio’. Também virou alvo do Ministério Público do Rio por
suspeita de empregar funcionários fantasmas para desviar salários.
Caçula
da família, Jair Renan ainda não entrou na política, mas já vive dela.
Logo após a eleição do pai, aproveitou o sobrenome para angariar
seguidores no TikTok e vender acesso ao poder. Com ajuda de um lobista
citado na CPI da Pandemia, montou uma empresa de eventos (Bolsonaro Jr
Eventos e Mídia) e passou a circular pela Esplanada. Acabou virando alvo
da Justiça por suspeita de tráfico de influência, acusado de levar
empresários para agendas com ministros. Em troca, teria recebido
presentes caros, como um veículo elétrico avaliado em 90 mil reais. As
investigações avançam e já descobriram que seu escritório, sediado no
estádio Mané Garrincha, foi bancado pelo empresário Luís Felipe
Belmonte, apontado como um dos organizadores dos atos antidemocráticos.
Ex-advogado de Luiz Estevão, Belmonte ficou milionário negociando
precatórios. Ele já foi filiado ao PSDB, elegeu a mulher, Paula
Belmonte, deputada federal pelo Cidadania e seria o vice-presidente do
Aliança pelo Brasil, partido que Bolsonaro tentou criar. No ano passado,
o delegado que investigava o filho 04 do presidente foi removido do
cargo. Em entrevista recente, Jair Renan negou as acusações e se disse
“revoltado”. Em Brasília, ele mora numa mansão avaliada em 3,7 milhões
de reais, supostamente alugada pela mãe, Cristina Valle, também suspeita
de integrar o esquema de rachadinhas investigado pelo MP do Rio.
O filhotismo (leia artigo de Roberto DaMatta)
não é uma característica exclusiva de Lula e Jair Bolsonaro, mas mostra
como eles são “homens de família” na pior tradição política brasileira.
A frase de Jair Bolsonaro sobre a indicação de Eduardo Bolsonaro para a
embaixada nos EUA — “Pretendo beneficiar um filho meu, sim. Se eu
puder dar um filé mignon para o meu filho, eu dou, sim” — é ilustração
perfeita de uma distorção que nos acomete desde os nossos primórdios
como nação. O filhotismo é uma extensão natural do patrimonialismo, uma
herança absolutista que está acima de quaisquer ideologias no Brasil. No
patrimonialismo, não existe distinção entre público e privado, entre o
que é dos cidadãos e o que é da família cujo patriarca ascendeu ao
poder, não importa por qual via. Ele e os seus parentes diretos
sentem-se livres para se apropriar indevidamente do que deveria ser da
sociedade. Sentem-se livres e, pior, a expectativa geral é que se
comportem dessa maneira mesmo, tal é o grau de entranhamento do tumor
patrimonialista no tecido sociopolítico nacional. Na sua forma mais
arcaica, ele se manifesta por meio da usurpação de direitos e do
cancelamento de deveres; na sua forma mais moderna, por meio do tráfico
de influência e da corrupção.
As
origens do patrimonialismo foram perfeitamente identificadas e
analisadas em clássicos da sociologia e da história, como Casa-Grande
& Senzala, de Gilberto Freyre, e Os Donos do Poder, de Raimundo
Faoro. Este último sintetizou o problema da seguinte forma:
“De
Dom João I a Getúlio Vargas, numa viagem de seis séculos, uma estrutura
político-social resistiu a todas as transformações fundamentais, aos
desafios mais profundos, à travessia do oceano largo. O capitalismo
politicamente orientado — o capitalismo político, ou o pré-capitalismo
—, centro da aventura, da conquista e da colonização moldou a realidade
estatal, sobrevivendo, e incorporando na sobrevivência o capitalismo
moderno, de índole industrial, racional na técnica e fundado na
liberdade do indivíduo — liberdade de negociar, de contratar, de gerir a
propriedade sob a garantia das instituições. A comunidade política
conduz, comanda, supervisiona os negócios, como negócios privados seus,
na origem, como negócios públicos depois, em linhas que se demarcam
gradualmente. O súdito, a sociedade, se compreendem no âmbito de um
aparelhamento a explorar, a manipular, a tosquiar nos casos extremos.
Dessa realidade se projeta, em florescimento natural, a forma de poder,
institucionalizada num tipo de domínio: o patrimonialismo, cuja
legitimidade se assenta no tradicionalismo — assim é porque sempre foi.”
De
Getúlio Vargas a Lula e Bolsonaro, o patrimonialismo resiste e se
reproduz por meio do filhotismo, que também serve para renovar as velhas
oligarquias e as substituir, no fio do tempo, por outras, de agregados
que souberam infiltrar-se na casa-grande dos patriarcas, tornando-se
eles próprios chefes de clãs. Luís Cláudio Lula da Silva tem razão ao
chamar Jair Bolsonaro de “patriarca egocêntrico“, mas deveria olhar
também para dentro de casa. Uma casa-grande, apesar de todo o verniz
esquerdista.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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