Os estudos destes dois anos revelam que a pandemia tendeu a reforçar o poder dos governos que alimentaram e geriram de forma adequada o medo das populações. Patrícia Fernandes para o Observador:
Um
autor incontornável no domínio da teoria política é o filósofo inglês
Thomas Hobbes, que viveu entre 1588 e 1679 e experienciou um dos
períodos mais traumáticos da história inglesa: a guerra civil que, entre
1642 e 1651, opôs os partidários do rei aos parlamentaristas e conduziu
à execução de Carlos I. Foi essa experiência que levou Hobbes a
acreditar ter tido um vislumbre da vida humana em estado de natureza,
isto é, numa condição em que não existe lei, poder e ordem – afinal,
numa guerra civil o estado colapsa e as instituições políticas e sociais
deixam de funcionar. Esse vislumbre levou-o a escrever o seu livro mais
popular: publicado em 1651, Leviatã
assenta numa visão pessimista da natureza humana, de que resulta a
necessidade de um poder absoluto do soberano para que a segurança seja
garantida e a ordem mantida. Recordemos brevemente o seu argumento.
Inaugurando
o espírito da modernidade, Hobbes afirma que a natureza fez todos os
homens iguais. Mas desta igualdade quanto à capacidade deriva a
igualdade quanto à esperança de atingirmos os nossos fins, o que nos faz
desconfiar do outro, que pode desejar o mesmo que nós e querer
desapossar-nos do que temos, até da nossa vida. Essa desconfiança
leva-nos a considerar todos os outros homens como inimigos e passamos a
agir por antecipação, pelo que a vida se traduz em constante conflito e
discórdia. Três aspetos da nossa natureza concorrem para essa discórdia
constante: a competição, que nos faz querer lucro, a desconfiança, que
nos faz querer segurança, e a glória, que nos faz querer reputação. Para
Hobbes, somos então naturalmente competitivos, desconfiados e ávidos de
glória e se não existir “um poder comum capaz de nos manter a todos em
respeito” (o mesmo é dizer, se vivermos em estado de natureza),
viveremos numa condição de guerra de todos os homens contra todos os
homens.
De acordo com Hobbes, neste estado de natureza:
“não há lugar para a indústria, pois o seu fruto é incerto; consequentemente, não há cultivo da terra, nem navegação, nem uso das mercadorias que podem ser importadas pelo mar; não há construções confortáveis, nem instrumentos para mover e remover as coisas que precisam de grande força; não há conhecimento da face da Terra, nem cômputo do tempo, nem artes, nem letras; não há sociedade; e o que é pior do que tudo, um constante temor e perigo de morte violenta. E a vida do homem é solitária, pobre, sórdida, selvagem e curta.”
Esta
passagem de Leviatã simboliza uma razão política particular: aqueles
que subscrevem um certo pessimismo antropológico, ao estilo de Hobbes,
tenderão a considerar que, para a sociedade se organizar em ordem e
segurança, é necessário um poder político forte e estruturas sociais
baseadas em princípios de autoridade e hierarquia. Precisamos de leis
estatais e instituições políticas fortes por forma a assegurar a paz e a
estabilidade, pois o homem deixado à sua natureza tenderá a produzir um
estado de caos e de conflito. Já aqueles que, tendencialmente,
perfilharem entendimentos mais positivos da natureza humana apresentarão
visões do poder mais benevolentes e até libertárias. Assim, a leitura
de Hobbes leva-nos a que nos confrontemos com esta reflexão política
básica: qual é a nossa visão sobre a natureza humana? Isso dirá muito
sobre a nossa visão política – e é por isso que a natureza humana é uma
das grandes questões políticas da modernidade.
Após
esta descrição da natureza humana e do estado de natureza, Hobbes
continua a sua análise: a natureza dotou os homens de dois elementos que
os farão tender para a paz, as paixões e a razão. As paixões são o medo
da morte, o desejo daquelas coisas que são necessárias para uma vida
confortável e a esperança de as conseguir através do trabalho. Já a
razão sugere aos homens leis da natureza que os permitirão chegar a um
acordo para saírem daquele estado de natureza. Este acordo – que, mais
tarde, designaremos por contrato social – será realizado por todos os
indivíduos e dará origem ao estado soberano.
Qual
é a particularidade deste soberano? Hobbes descreve-o como
correspondendo a um Leviatã, cujo poder não se compara a qualquer outro:
é, nessa medida, um poder absoluto, que não se divide, não se limita,
não se questiona e exige dos cidadãos um dever de obediência consciente.
Eis a inspiração estatista e autoritária de Hobbes, como lhe chama João Paulo Monteiro,
e que decorre da sua visão antropológica: só um soberano com esta
natureza será capaz de evitar um estado de guerra permanente e garantir a
segurança e a vida dos seus cidadãos. O objetivo do grande Leviatã é a
Salus Populi (a segurança do povo) e esta é a razão pela qual os
cidadãos hobbesianos aceitam este tipo de soberano e se comprometem a
obedecer sem se rebelarem: é a única forma de evitar o regresso ao
estado de natureza e à vida sob a ameaça constante de morte.
Importa
ter em conta o contexto teórico mais amplo em que Hobbes escreve: ao
subscrever a lógica contratualista, Hobbes afasta-se daqueles que, como Jacques-Bénigne Bossuet e Robert Filmer,
defendiam teorias do direito divino dos monarcas para legitimar o poder
político no estado moderno. Mas não se afasta da defesa de um poder
absoluto que decorria daquelas teorias, pelo que deverá ser entendido em
oposição a John Locke, o segundo grande contratualista, que inaugurará a tradição liberal de limitação do poder político quatro décadas mais tarde.
Qual
é a relevância de recordarmos Hobbes e o seu Leviatã em 2022? Trata-se
da relevância dos clássicos: quando nos deparamos com acontecimentos
políticos que não esperávamos e que temos dificuldade em interpretar,
podemos sempre recorrer a eles. O mesmo é dizer: perante o resultado
eleitoral inesperado do dia 30 de janeiro, regressar a Hobbes e ao seu
argumento ajuda-nos a compreender melhor o que aconteceu.
Como
algumas vozes têm feito notar, a paixão principal que parece ter
motivado mais de 40% dos eleitores a escolher o Partido Socialista foi o
medo. Medo da instabilidade política, medo da mudança, medo de um
regresso ao passismo, medo de possíveis acordos com o Chega, medo do
pedronunismo. Na verdade, a política do medo tem feito um percurso
consistente na política democrática ocidental, mas estas eleições
legislativas ocorreram em condições particulares que facilitaram o seu
efeito: tendo-se instalado a ameaça de morte no espaço público, os dois
últimos anos foram marcados pelo signo do medo. E contrariamente à
esperança de que a pandemia criasse um homem novo, mais empático e
solidário, o que encontramos foi a lição de sempre: sob o jugo do medo,
somos capazes das atitudes mais mesquinhas e vis, desde a denúncia
pública de comportamentos inofensivos dos nossos vizinhos às
ultrapassagens pela direita nas listas de prioridade vacinal.
Os
estudos dos últimos dois anos revelam que a pandemia tendeu a reforçar o
poder dos governos em exercício que souberam alimentar e gerir de forma
adequada o medo das suas populações. Em Portugal, António Costa foi
particularmente hábil nessa gestão, sabendo interpretar os desejos de
uma população receosa, sem forçar medidas tão abusivas como assistimos
em outros países. O seu papel de líder saiu reforçado e a recusa, à
esquerda, de aprovação do orçamento acabou por lhe ser favorável: para
além da segurança, poderia agora invocar estabilidade e previsibilidade
políticas – era isso que significava o gesto de acenar o orçamento no
debate com Rui Rio.
O
mecanismo psicológico descrito por Hobbes revelou-se aqui exato: o medo
leva-nos a repensar as nossas expectativas e escolhas políticas e
reagimos à informação que nos foi sendo dada pelas sondagens e pelos
media. Tudo indica que os eleitores que votaram no PS não estavam a
considerar, individualmente, a perspetiva de maioria absoluta – mas eis o
modo como funciona a democracia liberal: se uma parte significativa da
população sentir os mesmos medos, o resultado é um governo que espelhará
o seu desejo de segurança e estabilidade.
Curiosamente,
António Costa pareceu estar a pensar em Hobbes quando, no discurso de
vitória, afirmou que “uma maioria absoluta não é o poder absoluto, não é
governar sozinho”. Hobbes também reconheceria que o soberano, apesar de
deter um poder ab-soluto (isto é, um poder livre ou solto), está ainda
assim sujeito aos ditames da razão. Regressemos a João Paulo Monteiro:
“É uma das marcas do Leviatã: um veemente apelo aos soberanos da Europa
para que instaurem um autêntico governo moderno, respeitador das
liberdades fundamentais dos cidadãos e voltado para a construção do
progresso, da prosperidade e da justiça.”
O
governo maioritário que tomará posse em breve reivindicará os mesmos
ditames da razão, mas certamente reconheceremos nele as características
do estado protoburocrático de Hobbes: “uma forma de organização da
sociedade onde o lugar dominante é ocupado pelos titulares de posições
no aparelho estatal, mais do que por qualquer outro grupo social (…). No
estado hobbesiano a posição dominante só poderia vir a caber a uma
intelligentzia transformada em núcleo central de uma burocracia
estatal.”
Nas duas últimas semanas, multiplicaram-se as reflexões da ciência política sobre os perigos dos governos maioritários
e, eventualmente, das suas vantagens. Mas a principal lição continua a
ser a de Hobbes: enquanto os portugueses temerem o futuro, aceitarão
passivamente os excessos do novo soberano.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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